Malkmus e os seus Jicks desta vez produzidos por Beck, num excelente álbum que continua a ser interessante de ouvir passados sete anos.
A notícia caiu com estrondo no dia 16 de Setembro de 2009 – os Pavement iam fazer uma longamente aguardada tour em conjunto durante o ano de 2010. E assim foi que Mark Ibold, Scott Kannberg, Stephen Malkmus, Bob Nastanovich e Steve West se lançaram, entre Maio e Setembro desse ano, numa volta ao mundo para espalhar a magia dos Pavement. Num total de 75 datas, percorreram Estados Unidos, festivais da Europa, Austrália, Japão, Brasil e Argentina. Só mesmo Portugal ficou de fora, restando a alguns privilegiados a possibilidade de ida ao Primavera de Barcelona. Como Malkums fez questão de deixar claro desde o início, seria só mesmo para tour e nada de álbuns novos. Assim, terminou 2010 e voltou aos seus Jicks para este Mirror Traffic.
A influência da tour, da partilha com os seus antigos comparsas, foi, no entanto, notória. Enquanto até aqui na sua carreira a solo Malkmus parecera mais perfecionista, compondo de forma mais elaborada, Mirror Traffic foi um regresso a um forma de criar música mais descontraída, um pouco à semelhança do modus operandi nos Pavement. Sem perder muito tempo em polimentos de estúdio, conseguimos assim ter acesso a 50 minutos de música, espalhados por 15 músicas (número só superado por Wowee Zowee).
Se quisermos destacar algumas músicas para mostrar como vale a pena ouvir o álbum no seu todo, podemos fazê-lo com “Senator” e o seu estrondoso verso “I know what the Senator wants / what the Senator wants is a blowjob.”, com “Tigers” que abre o disco e tem referência ao símbolo do clube de Malkmus, o Hull City, “Brain Gallop” mais rockeira e contundente. Repito, isto são meros exemplos, porque se há coisa que bem conhecemos em Malkmus, nunca faz um single orelhudo para facilitar a audição (e para agradar aos senhores da editora). Faz sim um disco com cabeça, tronco e membros, tocando em várias vertentes ligadas à sonoridade rock. Este é mais um desses.
Eleanor Friedberger é uma mulher de fôlego. Determinada a deixar o passado no lugar onde merece estar, e ex-The Fiery Furnaces está de regresso com Rebound. Saudêmo-la!
Sejamos claros: Eleanor Friedberger cortou há muito e definitivamente com o seu passado musical. Dos tempos em que andava de braço dado com o irmão Matthew, já nada sobra. O mesmo é dizer que Eleanor, provavelmente, já nem terá vontade de recordar os temas e os álbuns intrincados dos The Fiery Furnaces, sobretudo dos dois primeiros discos da banda norte-americana. Já não a motivam ou inspiram. Assim sendo, se Gallowbird’s Bark e Blueberry Boat são águas passadas, por onde navega agora a menina bonita da indie mais clever clever que se faz nas terras do Tio Sam? As recentes e frescas notícias dão-nos conta de Rebound, o quarto disco da sua carreira a solo. Já o ouvimos, é bonito e recomendamos. Muito.
As cores vibrantes e intensas da imagem da capa do álbum Rebound podem ser enganadoras. Onde se adivinha, pelo que se infere dela, festa e espírito de verão, podemos perceber, afinal, outras realidades. Este quarto disco de Eleanor Friedberger segue os caminhos dos anteriores, não corta a direito, mas apresenta um twist ou outro que é significativo registar. Parece ser, se atentarmos bem nas letras dos temas que canta, um pequeno tratado autobiográfico, explorando inquietações, estados de alma, mas também buscando caminhos novos na sua maneira de fazer música. A sua alma, como se percebe, é irrequieta e perde tempo a interrogar-se. Por vezes, parece querer partir do zero, esquecer tudo para poder fazer tudo de novo com um espírito mais aberto e obrigatoriamente diferente do anterior. É necessária uma boa dose de coragem para levar a bom porto esse (re)encontro consigo mesma. Veja-se, por exemplo, o que canta em “My Jesus Phase”, o tema de abertura de Rebound: “Let me forget the words / Let me forget the time / I’ll drink whiskey for / Courage, something more”. Esclarecedor?
Rebound está recheado de belas canções. Poderemos mesmo dizer que podem muito bem vir a alegrar o nosso verão, embora não sejam temas tão cheios assim da luz da estação que se avizinha, muito menos do calor alegre e divertido típico dos meses de sol intenso e cerveja gelada nas mãos. Talvez seja “Make Me a Song” o tema que mais convida à dança, embora de forma moderada. Mas é uma canção de exceção, bonita como poucas, e se tivesse o impacto rítmico da genial “My Mistakes”, tema que abre Last Summer, o primeiro do seu percurso em nome próprio, seria um caso muito sério nas pistas de dança de bares e discotecas mais alternativas. Não tendo, como de facto não tem, é apenas uma enorme canção!
Rebound soa bem do princípio ao fim. Na sua oferta de dez canções, encontramos um típico lado retrô que Eleanor Friedberger sempre gostou de explorar. Um certo tom eighties percorre essa dupla mão cheia de temas, ora levando-os mais para caminhos de alguma melancolia (“Nice To Be Nowhere”), ora afastando-se dela para chegar a territórios mais oníricos (“The Letter”, um dos mais bonitos momentos do álbum), não esquecendo os instantes sonoros mais dançáveis, embora sem exuberâncias exageradas (como a já referida “Make Me a Song”, mas também a irrequieta “Everything” poderá servir de exemplo de momentos mais ritmados).
Eleanor Friedberger continua a transportar muito bem a sua bandeira artística. Passou com bom aproveitamento este quarto teste, e tem conseguido manter alta a barreira da sua própria exigência. Enquanto assim for, vamos continuando a tratá-la bem e a querer ouvi-la sempre com alguma urgência. Há que aproveitar as coisas boas e os infinitos prazeres que só elas nos podem dar.
Hair, o musical que conta já com cinco décadas de vida, foi um incómodo piolho nas cabeças bem comportadas e moralistas, obrigando muita gente a coçar os seus escalpes finos e empertigados para que conseguissem perceber, afinal, o que tinha acontecido. Mais do que uma pedrada no charco, Hair foi uma pedrada social, política, cultural, e por isso se celebra ainda hoje o espírito livre desse momento.
As coisas estavam a mudar e não era apenas em São Francisco. Tudo começou a ficar mais evidente em 1967. Na Lower East Side de Nova Iorque, estranhascriaturas começavam a aparecer em cada esquina. Cabelos longos, roupa colorida, bizarros perfumes, liberdades várias que a expressão peace and love imortalizou. Mas também uma vontade crescente de abolir diferenças raciais, de tornar pública a convicção anti-guerra (o efeito Vietnam tornava-se insuportável) que já ninguém conseguia esconder. Tudo isso e muita droga, experimentações e usos em variedade e quantidade suficientes para que o ar tivesse um novo aroma: o da liberdade.
Foi ainda em 1967 que a dupla Jim Rado e Gerome Ragni começou a tirar proveito desses novos tempos. A ideia de criar um musical, à maneira da Broadway, ganhou dimensão e com a boa ajuda de Galt MacDermot na feitura das músicas, chegaram ao grande palco da cidade novaiorquina a 29 de abril de 1968, aí perdurando durante cerca de 1750 apresentações públicas. No entanto, e ainda hoje, o revivalismo hairiano vai permanecendo mais ou menos ativo. As produções foram-se espalhando por vários continentes. Argentina, Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, Dinamarca, Finlândia, Itália, Japão, Noruega e Suécia são apenas alguns exemplos de países que aderiram à moda dos cabeludos hippies em pouco mais de ano e meio. Nem a comunista Jugoslávia resistiu ao impacto de Hair. O sucesso ganhou escala mundial e a chave dessa esmagadora popularidade teve como base dois ou três aspetos importantes: a simplicidade do que nele vinha dito, as melodias intemporais das suas perfeitas canções, e uma enorme vontade de eleger a felicidade como o mais importante caminho a seguir.
Quem não reconhece, logo aos primeiros sons, canções como “Aquarius”, “Donna”, “Sodomy” e os seus icónicos versos (Sodomy / Fellatio / Cunnilingus / Pederasty / Father, why do these words sound so nasty? / Masturbation / Can be fun / Join the holy orgy / Kama Sutra / Everyone!), “Manchester England”, “I’m Black”, “Ain’t Got No”, “Air”, “I Got Life”, “Hair”, “My Conviction”, “Easy To Be Hard”, “Frank Mills”, “Where Do I Go?”, “Good Morning Starshine” ou “Let The Sunshine In”? São muitas, como se vê, e todas fazem parte da grandeza ímpar de Hair.
É bastante curioso o facto de, nos tempos iniciais de Hair, podermos encontrar, no lote de participantes da peça, os nomes de Diane Keaton, Michael Harris e Meat Loaf, por exemplo, todos em (pré) início de carreira. No entanto, e para além disso, a verdade é que Hair foi um enorme acontecimento, e a crítica especializada, na sua esmagadora maioria, rendeu-se à qualidade daquilo a que assistiram e nem mesmo as polémicas cenas de nudez, linguagem menos adequada, incitamento ao uso de drogas, amor livre e apelo ao fim do belicismo americano foram suficientes para que as vozes mais conservadoras (e sempre muito poderosas) conseguissem silenciar a onda que se foi agigantando em finais dos anos sessenta. Foi uma vitória categórica a todos os níveis, portanto, e que se mantém triunfal até aos dias que correm!
Ouvir Hair em 2018 é ainda uma experiência extraordinária. E se quisermos ir um pouco mais a fundo na tentativa de um melhor conhecimento da tentacular presença da peça no mundo, ficaremos não só a saber das dezenas de produções discográficas existentes, mas também do incontornável filme de Miloš Forman, estreado em 1979. Em tudo o que se leia, ouça ou veja, a magia de Hair permanece firme e gloriosa, jovem e fresca, apesar do seu meio século de vida. Celebremos Hair como uma das mais estupendas vitórias do homem livre, do homem vivo, do homem bom, do homem pacífico, do homem que mandou às urtiga estigmas raciais e sexuais, do homem que aspirou à plenitude das suas vontades e dos seus desejos mais fraternos. A receita está dada e é simples: basta deixar o sol entrar!
Duas lendas septuagenárias do country-rock fazem um dos discos mais bonitos e profundos dos últimos anos.
Em 1968, Stephen Stills e Judy Collins viveram um romance arrasador, que acabou mal. Stills estava a subir na vida, depois do sucesso com os Buffalo Springfield, que tinham chegado ao fim, e preparava-se para se estrear a solo e embarcar na sempre atribulada viagem com os Crosby, Stills & Nash, aos quais se juntaria, pouco depois, o imprevisível Neil Young. Já Judy Collins, um pouco mais velha, começara na música de protesto e na folk, e tinha já uma carreira bem sucedida com a sua mistura de folk, country e composições pop.
Stills apaixonou-se por Judy e arranjou maneira de se juntar à sua banda de estúdio, envolvendo-se de imediato com a cantora, compositora e guitarrista. O romance foi curto mas atribulado, e fecundo. Quando Judy voltou para Nova Iorque, um destroçado Stills ficou na costa Oeste e virou-se para a música, compondo temas que falavam abertamente da relação e da sua tristeza, como o clássico “Suite: Judy Blue Eyes”, que gravou de seguida com os Crosby, Stills & Nash. Se ele escreveu de imediato sobre o sucedido, Collins também o fez, com “Houses”, mas apenas seis anos depois.
Os antigos namorados continuaram a dar-se e foram falando da hipótese de fazerem um disco juntos. Disco que chega agora, cinquenta anos depois do público romance que apaixonou a comunidade de Laurel Canyon, com ambos os autores bem acima dos 70 anos de idade.
Everybody Knows joga sempre com a relação de ambos, o passado, a separação, o reencontro, o carinho mútuo. Dos dez temas, só metade são da pena de Stills e/ou de Collins, e com canções já editadas noutras roupagens. O resto vem da inspiração de gente tão respeitável como os Traveling Wilburys, Leonard Cohen ou do próprio Dylan, sendo que o segredo está no tratamento uniforme que Stills e Collins lhes dão e na forma como as músicas encaixam na narrativa que está sempre subjacente ao disco.
Num álbum com um nível sempre alto, destacamos o tema-título, de Cohen; a beleza das harmonias vocais de “So begins the task” – escrita há várias décadas por Stills – sendo a tarefa esquecer a antiga namorada; o country-rock clássico e relaxado de “Judy”; e, acima de tudo, a lindíssima “River of gold”. Composta por Collins, é uma desarmante balada sobre a natureza, o passado, a passagem do tempo. Uma música arrasadora e comovente que só um empedernido cínico poderia alguma vez ignorar.
Everybody Knows é um disco maduro, carinhoso, bonito, um clássico moderno de country-rock. Só quem não tem nada a provar, do alto dos seus mais de 70 anos e de muitas décadas de carreira, poderia fazer uma obra assim. Obrigado por tamanha beleza.
Em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, SOPHIE estreia-se finalmente no formato LP e revela-se um dos nomes mais interessantes e revelantes da nova vaga do pop underground britânico.
Podemos cismar se terá sido coincidência o lançamento do muito aguardado álbum de estreia da produtora multi-talentosa escocesa Sophie Xeon, ou SOPHIE, ter aterrado no epicentro de junho, mês eleito para celebrar, reinvidicar e lutar pelos direitos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais). Apesar de ter surgido num vulto de anonimidade e de ser ferozmente insistente na missão de “deixar a música falar por si própria”, foi com “It’s Okay To Cry”, vivificante balada que abre “Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, que SOPHIE se revelou ao mundo como não apenas ser humano de carne e osso, em voz e aspeto, mas enquanto pessoa transsexual. O sabor peculiar da pop que tem vindo a produzir, de Glasgow para o mundo, ao longo da última década, seja ele em nome próprio (estreou-se em formato de álbum de compilações com Product, em 2015) ou por entre as sombras do mundo da produção (tendo já trabalhado para colegas da PC Music como Charli XCX ou QT, mas também gigantes como Madonna), fala, sim, por si mesmo. E se falasse, traduzir-se-ia num discurso bizarro, abrasivo, quase violento, pitoresco: belo em categorias que não conseguimos ainda classificar muito bem – diferente. Se a sonoridade que SOPHIE apresenta em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides pode toda ser resumida nessa palavra tão abrangente – diferente – também podemos classificá-lo como um refúgio cuidadosamente preparado para receber aqueles que são obrigatoriamente diferenciados pela sociedade.
“LGBT Music” é um termo guarda-chuva cunhado para catalogar toda a música que lide, de uma forma ou de outra, com assuntos de foro da comunidade Lésbica, Gay, Bissexual e Transsexual. Curiosamente, ao contrário do que se poderia pensar, lembra-nos a Wikipédia, nem toda a música LGBT tem necessariamente de ser produzida por indivíduos pertencentes à comunidade em si: vejamos, por exemplo, o hino gay “I’m Coming Out”, gravado originalmente pela Diana Ross em 1979, que se multiplicou em significados aquando re-apropriado pela comunidade LGBT americana da década de oitenta. SOPHIE produz “LGBT Music”? Apesar do conteúdo lírico de “Oil Of Every Pearl’s Un-Insides” nunca se entregar a literalidade, podemos procurar pistas na forma como semeia mensagens de otimismo ferrenho (na já mencionada “It’s Okay To Cry”), de transformismo hiper confiante em “Faceshopping” e até a dúvida amedontrada de “Is It Cold In The Water?”. Sem dúvida, serão sentimentos de cariz mais ou menos universal, mas, no solarengo mês de junho, no qual cidades um pouco por todo o mundo se enchem de bandeiras coloridas, festa e luta de uma comunidade ainda severamente marginalizada até no ocidente, a temática explorada em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides ganha novo fôlego e SOPHIE comprova merecer o lugar acarinhado que encontrou dentro da comunidade LGBT.
Mas não nos fiquemos por aí: a explosividade da sua música tem pernas suficientes para trepar para fora de qualquer redoma. Temas como “BIPP”, de 2013, ou “Lemonade”, do ano seguinte, já nos tinham dado um cheirinho das possibilidades que os talentos de produção e composição de SOPHIE poderiam oferecer ao universo da música alternativa britânica, possibilidades estas que se viriam a confirmar à medida que o seu currículo aumentava com as convocações sucessivas para auxílio atrás da mesa, particularmente em colaboração com a vanguardista editora londrina PC Music. Mas em Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, finalmente somos convidados a mergulhar no mundo de Sophie Xeon em toda a sua fascinante totalidade.
Se o mundo da música pop contemporânea é tão frequentemente contaminado por pastiches, regressões, imitações mascaradas de tributos a lendas-vivas ou lendas-mortas do passado, SOPHIE é o futuro: no seu álbum de estreia, navega por uma estrada inexplorada, por vezes confusa ou mesmo aterradora ao ouvido desabituado, mas não por isso menos aliciante, como um buraco negro de sintetizadores sufocantes, vocais moduladas até mais se assemelharem a presenças robóticas (mas não por isso menos carregadas de paixão ou humanidade), ritmos pulsantes e baixos furiosos. À gentil “It’s Okay To Cry”, segue-se a fantasmagórica “Ponyboy”, na qual a hiper-femininidade e a hiper-masculinidade se fundem numa simbiose protegida pelos baixos alarmantes. Simultaneamente violenta é “Faceshopping”, que mais se assemelha a um manifesto andróide maquinizado de transformidade radical;“my face is the front of shop / my face is the real shop front / my shop is the face is front / i’m real when I shop my face”, profere a sua voz numa calma autoritária. O vídeo que acompanha o single caminha lado a lado com a agressão sonora do tema, num assalto visual desaconselhado para indivíduos suscetíveis a ataques epiléticos.
Mas SOPHIE abre-se como uma concha reluzente numa miríade de ambientes que não refletem apenas a sua energia colérica irresistível: “Infatuation”, mais uma canção de amores perdidos que nas suas mãos experientes ganha novas texturas perfeitamente emolduradas por guinchos de guitarra que elevam a palavra repetida até à exaustão, é um dos momentos mais memoráveis do álbum; assim como “Immaterial”, puro bubblegum em esteróides que se tornará com a maior das facilidades um hino incontornável de todas as festas que já se organizaram para durar para lá das três da madrugada.
Com Oil Of Every Pearl’s Un-Insides, SOPHIE estende-nos um convite para nos perdermos no seu mundo cor-de-rosa, e, por muito alienígena que nos pareça, sentimo-nos acolhidos pela sua mensagem universal de aceitação do nosso eu, mesmo sendo ele um eu que agora vemos robotizado, maquinizado, sincero na sua máscara, autêntico na sua construção. É apenas o início de uma excursão por um caminho que SOPHIE escolheu para si e para nós: o admirável novo mundo do futuro da música pop.
As sementes para o tópico deste artigo foram plantadas em 1959. Keith Jarrett estava entrando no ensino médio naquele ano e ainda não fazia parte da história. 1959 foi um ano decisivo para o jazz, com alguns dos álbuns clássicos do gênero, incluindo Kind of Blue de Miles Davis, Mingus Ah Um de Charles Mingus, Time Out de Dave Brubeck, Giant Steps de John Coltrane e The Shape of Jazz to Come de Ornette Coleman, todos lançados naquele ano. Esse último álbum desempenha um papel na história, que se desenrola com uma lembrança do baterista Paul Motian: "Conheci Charlie quando estava tocando com Bill Evans no Vanguard, e Scott LaFaro me disse: 'Sabe, tem um baixista realmente ótimo tocando no Five Spot com Ornette Coleman. Quero apresentá-lo. Quero que você o conheça. Venha.' Então fui até lá e Scott me apresentou a Charlie. Isso tinha que ser em 59." Entra Charlie Haden na história.
Paul Motian e Charlie Haden estavam tocando na época com dois dos melhores grupos de jazz da cidade: Paul Motian tocava bateria com o The Bill Evans Trio e Charlie Haden era baixista com o quarteto de Ornette Coleman. O quarteto estava na moda naquele ano quando visitou Nova York pela primeira vez, com um compromisso no The Five Spot Café. A história deles é contada em outro artigo neste blog.
Avançando para meados da década de 1960, um jovem Keith Jarrett, recém-saído de um período de um ano na Berklee College of Music, está pagando suas dívidas em jam sessions gratuitas em clubes de Nova York. A competição é acirrada, mas uma noite no Dom Club ele consegue 5 minutos no piano e chama a atenção do clarinetista Tony Scott, que convida Jarrett para tocar com ele. Scott também conhecia Paul Motian de volta de quando o baterista e Bill Evans o apoiaram em vários shows no final da década de 1950. Motian continua a história: "Tony Scott liga e diz: 'Eu tenho esse show para você, cara', e eu disse: 'Não, é minha noite de folga', e ele disse: 'Não, vamos lá, você tem que fazer esse show.' Então eu fui e fiz o show, e quando entrei no clube Keith Jarrett estava tocando piano. Eu disse: 'Cara, quem é esse? Cat soa muito bem!' Ele disse: 'Ah, esse é Keith Jarrett; eu o descobri.'”
Em 1966, Keith Jarrett se juntou ao quarteto Charles Lloyd, uma banda fantástica que também incluía o baixista Cecil McBee e o baterista Jack DeJohnette. A banda excursionou pelo continente europeu extensivamente pelos próximos três anos e lançou uma série de álbuns. Eles foram gerenciados pelo famoso produtor de jazz George Avakian, o homem que trouxe Miles Davis para a Columbia Records uma década antes. Avakian ficou impressionado com o talento do jovem pianista da banda e se tornou seu empresário pessoal. Em 1967, Jarrett teve a oportunidade de gravar seu primeiro álbum como líder para a Vortex, uma subsidiária da Atlantic Records. Ele decidiu por um formato de trio e considerou quem deveria preencher os papéis de baixo e bateria. Para a posição de baixo, seu primeiro pensamento foi Steve Swallow, que tocava contrabaixo na época e foi um acompanhante em excelentes discos de Jimmy Giuffre, George Russell, Paul Bley, Pete La Roca e Art Farmer. Mas não foi isso que aconteceu, como Keith Jarrett lembra: “Steve estava ocupado com Gary Burton, tinha muitos shows e não podia estar disponível.”
Olhando para outro lugar, Jarrett não foi além de um dos músicos de jazz mais influentes da década de 1960, Ornette Coleman. Sua música deixou uma impressão em Keith Jarrett, que citou combos de jazz sem piano como uma grande influência para ele no início de sua carreira. Steve Swallow indisponível, ele recorreu ao baixista de Coleman: "Então o próximo cara que experimentei foi Charlie, e pensei 'Uau. Certo. É disso que preciso. Por que não pensei nisso antes?'" Charlie Haden tocou com Coleman nos álbuns que trouxeram seu quarteto à atenção da comunidade do jazz em 1959 e 1960: The Shape of Jazz to Come, Change of the Century e This Is Our Music. Ele foi uma escolha perfeita, e mais tarde disse sobre a primeira vez que tocou com Jarrett: "Foi um sentimento intuitivo instantâneo, como se já tivéssemos feito isso antes. Ele foi o primeiro pianista com quem toquei que deixou a estrutura de acordes em certas músicas e tocou livremente."
Outra influência em Jarrett foi a execução lírica de Bill Evans e as gravações de seu trio clássico com Scott LaFaro e Paul Motian. No entanto, para o assento do baterista, Jarrett estava procurando alguém que tocasse em um ambiente rítmico menos restritivo, menos domesticado. Em um ponto, ele ouviu uma gravação do pianista Lowell Davidson e gostou da liberdade com que o baterista estava se expressando. Ele ficou surpreso ao descobrir que este era ninguém menos que Paul Motian. Ele não perdeu tempo pedindo ao talentoso baterista para tocar em seu álbum. Anos depois, ele acrescentou: "Eu sabia que ele tinha sido o baterista de Bill Evans e tudo o que eu tinha ouvido dele era muito saboroso e muito musical, mas um tanto rígido, eu pensei. Mais tarde, descobri que era porque ele foi convidado a tocar dessa forma." E assim o trio de Keith Jarrett nasceu.
O primeiro álbum do trio de Keith Jarrett com Charlie Haden e Paul Motian foi Life Between the Exit Signs, gravado em 4 de maio de 1967, pouco antes de Jarrett voar para a União Soviética para uma série de concertos únicos com o Charles Lloyd Quartet. Nas notas do encarte do álbum, Jarrett escreveu: “Pediram-me para dizer algo sobre a música deste álbum. Eu gostaria muito de fazê-lo. No entanto, se houvesse palavras para expressá-lo, não haveria necessidade da música.”
Um bom exemplo desse artefato muito antigo de sua carreira solo é Everything I Love, uma peça que surpreendentemente soa muito no estilo de seu trio muito posterior com Gary Peacock e Jack DeJohnette e poderia facilmente ser confundida com uma gravação feita 20 ou 30 anos depois. Keith Jarrett tinha 20 anos quando gravou aquele álbum.
Em uma entrevista de Chuck Braman em 1996, Paul Motian foi questionado sobre o álbum após ouvir a faixa. Ele disse: “Faz muito tempo que não ouço isso, cara. Parece muito, muito bom. Cara, Charlie também não está tocando 4/4, está? É quase como se eu estivesse ouvindo algo pela primeira vez, não sou eu! Você sabe o que quero dizer?”
Após a gravação do álbum, Jarrett estava ocupado em turnês constantes com Charles Lloyd. A banda era uma unidade de jazz muito bem-sucedida para sua época, cruzando para os fãs de rock após se apresentar em locais como o Fillmore West. Quando Jack DeJohnnette deixou o grupo no início de 1968, Paul Motian o substituiu em shows ao vivo até a banda se separar um ano depois. Isso deu a ele e Keith Jarrett outra avenida para tocarem juntos.
Keith Jarrett teve mais uma oportunidade de gravar com Charlie Haden e Paul Motian em agosto de 1968. Durante uma pausa em uma turnê pela costa oeste com Charles Lloyd, o trio teve um compromisso de duas noites no Shelly's Manne-Hole em Hollywood, Califórnia. Nessa época, os músicos de jazz estavam percebendo a popularidade do rock e integrando-o à sua música. A experiência que Jarrett teve tocando em locais como o Fillmore East and West com Charles Lloyd foi profunda e encontrou seu caminho para a música que ele tocou com o trio. No Shelly's Manne-Hole, eles tocaram um cover solto da fantástica música My Back Pages de Bob Dylan. Paul Motian sobre ser influenciado pela música popular: "Naquela época, acho que tinha cerca de dez álbuns de Bob Dylan, dos Beatles e tudo mais. Eu ouvia toda essa merda, cara, essa merda era forte. Isso influenciou Keith, influenciou todos nós, especialmente Keith, e a música que ele estava escrevendo também. Então, estávamos entrando em outras áreas. Nunca tocaríamos coisas do tipo semi-rock and roll com Bill Evans, nunca. Mas com Keith, essa era a época, sabe? Estamos falando do final dos anos 60 e começo dos anos 70.”
O trio ganhou alguma visibilidade quando se apresentou em abril de 1969 no famoso clube Village Vanguard em Nova York, alternando sets com o Herbie Hancock Sextet. Esses foram os últimos dias do grupo Charles Lloyd, e no verão daquele ano o grupo não existia mais. Keith Jarrett embarcou em uma turnê europeia no outono de 1969, mas a turnê foi realizada com um orçamento tão apertado que Charlie Haden e Paul Motian recusaram o convite e Jarrett viajou com um trio diferente, incluindo August “Gus” Nemeth no baixo e Bob Ventrello na bateria. As filmagens de Lugano, Suíça, em outubro de 1968 sobreviveram e demonstram uma ótima execução com essa formação.
Em 3 de novembro de 1969, o trio se apresentou em Paris, e quem deveria estar presente, além dos membros do quinteto perdido de Miles Davis? Jarrett teve a oportunidade de tocar com Jack DeJohnette e Dave Holland, e impressionou Miles o suficiente para desencadear um convite no ano seguinte para se juntar à sua banda elétrica. Jack DeJohnette disse o seguinte sobre Jarrett e sua execução de piano: "A única coisa que me impressionou sobre Keith foi que ele realmente tinha um caso de amor com o piano, é um relacionamento com esse instrumento. As mãos de Keith são realmente muito pequenas, mas por causa disso ele pode fazer coisas que outros pianistas não conseguem fazer. Isso permite que ele sobreponha certas sequências de acordes e faça coisas rítmicas e linhas contrapontísticas e obtenha esses efeitos de quatro pessoas tocando piano."
Paul Motian substituiu Bob Ventrello no restante dos shows europeus do trio, e outra música de Bob Dylan, Lay Lady Lay, foi adicionada ao repertório.
O trio fez uma longa pausa devido à entrada de Keith Jarrett no Miles Davis em maio de 1970. Jarrett ficou com Miles Davis por cerca de um ano e meio, contribuindo com seus talentos para sessões que mais tarde apareceram nas gravações completas de Jack Johnson e nos álbuns Miles at the Fillmore e Live-Evil. A agenda agitada de apresentações ao vivo o manteve ocupado até o final de 1971, quando ele deixou aquela banda lendária.
Ainda assim, em julho de 1971, imediatamente após se apresentar com Miles Davis no Newport Jazz Festival, Jarrett conseguiu encaixar 4 sessões com o trio mais o saxofonista Dewey Redman. Essas gravações têm um significado histórico, pois representam a primeira vez que o futuro Keith Jarrett American Quartet gravou junto. As sessões renderam três álbuns, o último que Jarrett lançaria pela Atlantic Records.
O primeiro desses álbuns apresentou o trio com faixas gravadas em três dessas datas, 8, 9, 16 de julho de 1971 e uma data adicional somente para o trio um mês depois. Incluía um cover da música All I Want de Joni Mitchell do álbum Blue, lançado apenas algumas semanas antes dessas gravações serem feitas. Também começamos a ver novos instrumentos surgindo nas sessões de gravação, incluindo tambores de aço, congas, flauta doce e sax soprano. Essas grandes melhorias na paleta sonora do grupo só aumentarão em gravações futuras. O destaque do álbum é sua faixa-título, The Mourning of a Star, uma excelente vitrine para todos os três músicos, com Jarrett vocalizando enquanto se inspira em sua própria execução. Haden fornece um groove insistente e Motian toca ritmos tribais.
Mais dois álbuns foram lançados com faixas dessas sessões, dessa vez como um quarteto com o saxofonista tenor Dewey Redman, um regular no grupo de Ornette Coleman entre 1968 e 1972. Jarrett se lembra bem da primeira vez que conheceu Redman: “Ouvi Ornette com Dewey, na lama, em um festival na Bélgica, eu acho. Era como andar em areia movediça, e então eu tive que ir para o camarim e tocar depois deles. E eu saí do palco depois de tocar e ouvi Dewey tocar pela primeira vez, e ele me ouviu tocar pela primeira vez. Passamos um pelo outro no camarim e ambos dissemos: 'Ei, cara, quero trabalhar com você algum dia.'”
No álbum Birth, podemos ouvir Jarrett e Redman tocando vários instrumentos. O pianista adiciona saxofone soprano, flauta doce, banjo e tambores de aço ao seu arsenal, e o saxofonista não fica muito atrás com musette chinesa, sinos e percussão. O álbum inclui a faixa Piece for Ornette, muito inspirada no quarteto sem piano Ornette Coleman do qual Charlie Haden fazia parte. Jarrett está tocando sax soprano, um instrumento que ele preferia no início dos anos 1970 e infelizmente parou de tocar mais tarde em sua carreira.
Outra faixa, Mortgage on My Soul (Wah-Wah), apresenta a mesma instrumentação. O ingrediente-chave aqui é Charlie Haden, que está tocando seu contrabaixo por meio de um pedal wah-wah. A abertura da peça soa como uma música de Jimi Hendrix. Este é o trabalho de uma banda eclética que está absorvendo todas as influências sonoras ao seu redor.
O terceiro e último álbum com faixas das sessões de julho de 1971 é El Juicio (O Julgamento), lançado quatro anos depois, em 1975. Naquela época, a banda estava lançando álbuns pelo selo Impulse, e a Atlantic decidiu aproveitar o dinheiro investido nessas sessões em julho de 1971.
A abertura do álbum, Gypsy Moth, é uma composição clássica de Keith Jarrett, com um vamp cativante que não soaria deslocado em uma gravação de Ramsey Lewis. Mas o quarteto a estende além dos limites confortáveis e lhe dá um toque único. Solos excelentes aqui por todos os membros da banda.
A primeira apresentação ao vivo do quarteto teve que esperar um pouco devido à agenda lotada de Keith Jarrett com Miles Davis até o final de 1971. Em fevereiro de 1972, eles foram contratados para várias noites no Slug's Saloon em East Village, Nova York. O público foi baixo, talvez devido ao fato de que três noites antes Lee Morgan foi baleado e morto no clube por sua esposa.
O início dos anos 1970 foi difícil para os artistas de jazz. Suas chances de sucesso estavam na cena emergente de jazz/rock ou no lado mais leve com gravadoras como a CTI. George Avakian lembra: “A primeira gravação na Atlantic vendeu muito bem, mas era difícil conseguir reservas nos EUA por um bom dinheiro porque o mercado simplesmente não estava lá. Então a Atlantic cancelou o contrato.”
Keith Jarrett não ficou muito tempo sem um contrato de gravação, pois uma oportunidade se abriu com a Columbia Records, a gravadora de seu então empregador, Miles Davis. E para completar, eles decidiram por um álbum duplo, com uma formação expandida que incluía os membros do trio com Dewey Redman, mais Airto Moreira (então também com Miles Davis) na percussão e Sam Brown na guitarra. As sessões de gravação ocorreram em abril de 1972, rendendo o fantástico álbum Expectations com uma ampla gama de composições e performances. Um bom exemplo é a faixa energética Sundance, da qual as notas do encarte dizem: "É no Sundance que a alegria contagiante da música de Jarrett é realmente focada. É uma fantástica obra de arte para os instintos rítmicos ferozes de Jarrett, enquanto ele guia a banda por um groove afro-cubano estrondoso em uma dança xamânica saída diretamente do livro de Ornette."
O álbum foi bem recebido pela crítica e ganhou o Grand Prix du Disque francês em 1972. Um artigo no jornal norueguês Arbeiderbladet escreveu isso sobre Jarrett: “Tente visualizar um jovem que tem a técnica de um grande pianista de concerto, o conhecimento do compositor moderno sobre efeitos possíveis e impossíveis, e a riqueza de ideias do grande jazzista e sua maestria em tudo o que faz. Tudo isso – e muito mais – é Keith Jarrett.”
No entanto, boas críticas não foram suficientes para os executivos da Columbia. Sentindo que dinheiro pode ser feito com jazz eletrificado, eles optaram por dispensar Keith Jarrett em favor de Herbie Hancock. Boa jogada para os executivos, pois Hancock entregará a eles o álbum Headhunters um ano depois, um dos álbuns de maior sucesso na história do jazz. Mas isso também foi uma bênção para Keith Jarrett, pois no final de 1971 ele fez seu primeiro contato com Manfred Eicher, do então incipiente selo ECM, resultando no álbum solo de piano Facing You. Isso deu início a um relacionamento bem documentado e muito produtivo entre Jarrett e o selo por muitas décadas.
Após a gravação de Expectations, o trio de Keith Jarrett fez uma curta turnê europeia em junho de 1972. Sua apresentação em Hamburgo em 14 de junho foi capturada em filme e lançada muitos anos depois pela ECM Records no álbum Hamburg '72. Esta é uma ótima oportunidade de assistir e ouvir o trio daquele período, uma encruzilhada na carreira de Keith Jarrett. Ele estava apenas começando sua carreira de apresentação solo de piano em paralelo ao seu trabalho com bandas. Esta foi uma das últimas apresentações do trio, embora certamente não seja a última vez que Jarrett dividirá o palco e o estúdio de gravação com Charlie Haden e Paul Motian