segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O Falo de Deus

Não era fácil ser jovem na Alemanha lá pela metade dos anos 60. Um rapaz sair por aí desfilando roupas extravagantes e cabelos compridos ao vento poderia resultar até em tiro (e não era bala perdida). Isso obrigava a rapaziada mais antenada a andar em turma e a se isolar em comunidades. Nem a música ajudava. Enquanto a Inglaterra, a França e a Itália já tinham seu próprio som dominando as paradas, na Alemanha 90% da programação de radio era estrangeira e os 10% restantes era a música melosa de cantores do quilate de um Udo Jürgens ou de um Heino.

No sul do país, mais precisamente na região da Baviera e mais precisamente ainda na cidade de Munique, alguns jovens decidiram lutar contra a intolerância e formaram o que viria a ser a mais famosa comunidade alemã, uma espécie de matriz para muitas outras que viriam no futuro, chamada de Amon Dull.
E lutar era a palavra exata. Essas comunas sabiam que chocar não era tudo, era preciso lutar para ser aceito pelas pessoas. Seus integrantes eram mais do que idealistas, artistas ou simplesmente hippies. Eles eram ativistas.
A comunidade Amon Dull
Bom, mas como o assunto aqui é música e o Amon Duul foi pródigo nesse quesito, vamos nos concentrar no som, embora eventualmente seremos obrigados a nos desviar para os aspectos políticos da comuna, já que eles foram responsáveis por importantes mudanças no grupo.
O marco zero da futura história musical do Amon Dull aconteceu em 1966, numa formação que incluía Chris Karrer na guitarra, Lothar Meid no baixo e Christian Burchard (que mais tarde formaria o Embryo) na bateria. Era um trio de free-jazz alucinado por Coltrane e Ornette Coleman e que buscava inspiração e aprendizado circulando pelos clubes de jazz de Munique e de Barcelona. Nada dessa fase existe como registro sonoro e ela acabou no ano seguinte, no momento em que Karrer, segundo suas próprias palavras, seguiu uma garota até um clube recém inaugurado e que apresentava o show de um guitarrista em excursão pelo país. O nome do guitarrista: Jimi Hendrix.
Ver aquele negão detonando a poucos metros de distância, num pequeno palco e circundado por imensos amplificadores Marshall, foi uma experiência tão intensa que do free-jazz Chris passou a buscar a free-psicodelia. E os companheiros que ele procurava para levar adiante essa revelação acabou encontrando nas figuras de Rainer Bauer, Ulrich e Peter Leopold , todos da comunidade Amon Dull, que iria se expandir com o ingresso da irmã de Bauer, Ella, mais Helge e Angelika Filanda, Uschi Obermeier e várias crianças, gatos e cachorros. Como disse Julian Cope no livro Krautrocksampler, era uma comuna de 10 ou 12 músicos comprometidos em criar arte política.
Por arte política ao estilo Amon Dull entenda-se longas e caóticas jams acústico-percussivas envolvendo todos no palco. O registro que ficou para a posteridade, e que Karrer jura não haver tomado parte, é uma sessão de 48 horas ininterruptas de improvisos que resultaram em 4 dos 5 discos lançados pela banda. O primeiro deles, Psychedelic Underground, veio à luz em 1969 pelo selo Metronome e acrescentou toda sorte de efeitos de estúdio ao som improvisado da banda. Os outros discos foram CollapsingDisaster e Experimente, com uma qualidade de som variando entre o razoável e o bootleg tosco.
Embora Julian Cope tenha sido generoso ao dizer que a comuna abrigava uma dúzia de músicos, na realidade só quatro membros podiam ser encarados como tal. O resto fazia era batucada de branco, abusando dos bongôs e das maracas. Isso acabou por desgostar Chris Karrer que estava muito mais voltado para o poder da música do que o da política.
Em algumas entrevistas ele fala inclusive da obrigação de prestar contas de tudo o que fazia para a comunidade e até de aspectos bem bizarros, como ser cobrado por não fazer sexo com as moças com a freqüência exigida. Sexo à parte, Karrer acabou caindo fora da comuna cada vez mais politizada e formando uma dissidência musical que deu início ao grupo conhecido depois como Amon Dull II, com Renate Knaup, Lothar Meid, Peter Leopold, John Weinzierl, Christian Strat Thiele e Danny Fischelscher. A banda assinou com a Liberty e a estréia dessa formação no vinil foi o grande Phallus Dei, uma das pedras fundamentais do space-rock, levando ao extremo o que bandas como Pink Floyd e Jefferson Airplane apenas esboçaram até aquele momento. E olha que isso foi apenas o começo.
A seqüência foi Yeti, um álbum duplo, hipnótico, psicodélico até as entranhas. Com toda a certeza um dos primeiros assaltos sônicos registrados em vinil. Neste disco encontram-se a totalmente maníaca “Soup Shop Rock” e a devastadora “Archangel Thunderbird”, três minutos e meio de blitz sonora bem ao estilo alemão, com um duelo de guitarras injetando doses maciças de adrenalina em nossos corpos.
Lá pelo final de 1970 Peter Leopold teve uma recaída e retornou para a comunidade original do Amon Dull, participando do LP Paradieswarts Dull, um álbum que não se pode dizer que é rock, mas um folk tranqüilo e de uma beleza surpreendente, porém sem grande futuro. Álbum lançado, Peter Leopold caiu na real e voltou correndo para o AM2.
Continuando de onde Yeti parou surge Tanz Der Lemminge, o terceiro álbum do Amon Dull II, também duplo e igualmente um clássico. Estamos agora diante de um épico de ficção científica escrito com instrumentais extraterrestres ao longo de seus quatro lados. Um disco que virtualmente explodiu as mentes alemãs e fez o que nem milhares de toneladas de bombas nazistas conseguiram: conquistou a Inglaterra.
Uma turnê pela ilha de sua majestade foi prontamente planejada, mas parece que o som da banda não produzia faíscas apenas nos ouvidos da platéia: durante uma apresentação preliminar em Colônia, um incêndio destruiu todo o equipamento do grupo e o jeito foi ficar em casa mesmo. Bom, fica para a próxima, eles pensaram. Mas a coisa novamente não deu certo quando a união dos músicos ingleses vetou o visto de trabalho da banda no país. E a frustração foi grande porque algumas mudanças de pessoal se fizeram notar no próximo trabalho da banda, Carnival in Babylon, agora pelo selo United Artists.
O ano é 1972 e este disco marca o início de uma guinada no som, menos psicodélico e mais progressivo. As guitarras e os vocais são excelentes e fazem do álbum um registro marcante da união do grupo para superar a má sorte e acabar com todas as crises internas. As boas vibrações e a energia positiva acumulada não tardaram a apresentar suas conseqüências: o fantástico Wolf City saiu dos estúdios e o grande Amon Dull II entrou na Inglaterra, com direito ao tapete vermelho da crítica e as boas-vindas de uma verdadeira legião de fãs ingleses.
O sucesso foi tão grande que mais duas excursões se sucederam e um álbum foi registrado só na Inglaterra, uma edição limitada chamada Live in London. Por essa época o grupo tinha Chris Karrer na guitarra, violino, sax e vocais, Danny Fichelscher e Peter Leopold na percussão, Lothar Meid no baixo, Renate Knapp nos vocais e Falk Rodger nos teclados. Com essa formação eles gravaram um novo álbum, Vive la Trance, e se estabeleceram como um dos grupos top da Alemanha.
Show londrino do Amon Dull II
Comparado a Wolf CityVive la Trance foi um álbum mais refinado, porém intencionalmente muito mais comercial, principalmente no lado B, onde quatro músicas nos fazem duvidar que esse seja um disco genuinamente Amon Dull II. Foi, de certa forma, uma ducha de água fria a quem esperava outra obra prima do grupo, embora com os ouvidos condescendentes de hoje em dia possamos apreciá-lo melhor.
Por volta de 1973, Lothar Meid tirou uma licença do grupo para se dedicar a outros projetos: a formação do grupo 18 Karat Gold e o lançamento de Utopia, uma espécie de álbum solo, mas assistido por vários membros do Amon Dull II e de outro grupo alemão, o Embryo. Neste disco particularmente o trabalho vocal de Renate Knapp é maravilhoso.
A volta de Lothar Meid se deu no álbum Hijack, que parece ter colocado o AM2 de novo nos trilhos. O som voltou a despertar para o espacial e as letras de Chris Karrer retomaram sua famosa temática de ficção científica.
A coletânea Lemmingmania
(Esse disco saiu no Brasil)
Lemmingmania saiu também por essa época. Trata-se da melhor entre as várias coletâneas lançadas pela banda, cobrindo a época pós Phallus Dei até Wolf City, juntando no formato 12 polegadas todos os lados A e B dos singles lançados pela banda. São versões variando entre 3 e 4 minutos, mostrando que o grupo também tinha excelente potencial para tocar no rádio.
Apesar do sucesso internacional do Amon Dull II, era hora da banda provar mais uma vez suas origens essencialmente germânicas. Made in German foi para as ruas como a primeira ópera rock teutônica, contando a história da Alemanha desde os dias do rei Ludwig da Bavária até o negro período nazista com uma boa dose de ironia e dramaticidade. Um disco duplo realmente ambicioso, forjado por uma banda ávida por reviver seus primeiros tempos de Yeti e Tanz der Lemminge. O problema é que aqui o amadurecimento técnico dos músicos fez perder parte da ousadia inicial.
De toda forma, podemos dizer que Made in German foi o último grande trabalho do Amon Dull II. Infelizmente, como aconteceu com muitos outros grupos alemães que sentiram a guinada da música pop mundial para um som mais dançante e descartável, os próximos discos do AM2 ao longo da década foram se tornando cada vez mais uma sombra dos dias de glória, com vários membros, como Renate Knaup, debandando de vez. Houve ainda uma tentativa de reunião para o álbum Vortex de 1981 e, após mais um longo intervalo, o Amon Dull II voltou em toda a sua majestade para os discos Nada Moonshine (1995), Live in Tokyo (1996) e Flawless (1997).
Para finalizar, vale a pena gastar algumas palavrinhas para comentar uma tentativa de resgate do nome Amon Dull nos anos 80 por dois ex-membros das várias formações da banda, o guitarrista John Weinzierl e o baixista Dave Anderson. Por estar baseada na Inglaterra, ela ficou conhecida com Amon Dull UK, mas na realidade a coisa é meio confusa porque Anderson, com o desconhecimento de Weinzierl, andou lançando alguns álbuns com capas ostentando fotos de Karrer, Knaup e Falk no final dos anos 60. Uma picaretagem sem tamanho, que só serviu para desgostar os membros originais do grupo. Como resultado, tanto o guitarrista, que alegava não ter nada a ver com o peixe, quanto o baixista foram condenados ao ostracismo. Anderson até lançou um disco como Amon Dull junto com o letrista do Hawkwind , Bob Calvert, um pouco antes deste morrer. Neste disco também toca o lendário guitarrista do Groundhogs, Tony MacPhee, o que só contribuiu para por mais vinagre nessa salada.

A capa do segundo disco do Amon Dull II, Yeti, é um dos maiores ícones do krautrock. Ironicamente, ela mostra a foto de um membro da primeira comunidade Amon Dull, um bom amigo de Renate e Chris que não quis se juntar aos dois quando estes caíram fora da comuna em 1968. O nome da figura era Wolfgang Krischke e ele morreu dois meses depois da formação da banda, congelado na neve após uma trip de ácido na casa de seus pais. A idéia de usá-lo na capa foi do supervisor artístico e eventual tecladista Falk Rogner, que selecionou uma foto onde Krischke posa de vestido segurando uma foice, numa alegoria a Der Schnitter, O Ceifador, aquele que ceifava a vida das pessoas na simbologia mitológica alemã.

Apesar do sucesso que o Amon Dull II alcançou na Europa, eles nunca emplacaram nos EUA. O primeiro disco da banda a pisar em solo gringo foi Dance of the Lemmings (Tanz Der Lemminge), alguns meses depois do lançamento americano do álbum Psychedelic Underground do primeiro Amon Dull pelo selo Prophesy. Isso causou a maior confusão na cabeça pequena dos americanos que não conseguiam entender dois álbuns tão diferentes, mas de bandas com o mesmo nome. Ao mesmo tempo, a crítica especializada do país do sr. Nixon manteve-se sempre caladinha em relação a qualquer evolução musical que não fosse americana ou no máximo inglesa. Outra prova da “genialidade” americana foi a do lançamento do disco Made in Germany. Os executivos da United Artists simplesmente cortaram o disco duplo pela metade, pois ele falava de nazismo e isso era tabu para os ouvidos ianques. Essa inclusive foi a versão que saiu no Brasil e desfigurou completamente um ótimo disco conceitual.


Amon Duul II x Can. Coisa de cinema.
Nem tudo era solidariedade na incipiente cena do rock alemão. No começo dos anos 70, limitados geograficamente dentro de um país do tamanho de Minas Gerais e acostumados a tocar juntos em festivais locais, as bandas ainda achavam espaço para os dissabores. Um bom exemplo disso foi causado pelo grupo Can, outro baluarte do krautrock. Numa época onde o cinema underground alemão ganhava a cena, diretores como Winn Wenders e Fassbinder procuraram os jovens grupos de rock alemães para participarem das trilhas sonoras de seus filmes. Numa reunião entre as bandas ficou acertado de que eles cobrariam 10% da bilheteria arrecadada pelos filmes, porém o Can resolveu boicotar essa decisão e foi aos diretores dizendo que não importava o quanto os outros grupos pedissem, eles fariam por menos. A conclusão você pode conferir no segundo disco do Can, Soundtracks, só de trilhas sonoras feitas pela banda. Depois disso, Amon Dull II e Can nunca mais sentaram na mesma fila dentro de um cinema.
Yoko Knaup e Renate Ono
Isto é só para desencargo de consciência. Se você ouvir a voz de Renate Knaup nos primeiros discos do Amon Dull II e compará-la aos trabalhos solo da sra Lennon, fatalmente vai constatar que são vozes gêmeas. Impressionante como os trinados Onomatopéicos encontravam eco nos gargarejos Knaupianos.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Jefferson Starship (Jefferson Airplane) - Dragon Fly (1974)

  Ano: Outubro de 1974 (CD 1997) Gravadora: RCA Records (EUA), 07863 66879-2 Estilo: Pop, Rock País: São Francisco, Califórnia, EUA Duração:...