
"Você já se sentiu solitário? Apenas em meio às pessoas".
Para além do simples disco de estreia do A B I S M O, All Beyond Perception é, antes disso, um tratado sonoro sobre as angústias do nosso tempo. Um recorte de música torta e aflita diante da facilidade com que solidão, arrogância, futilidade e demais mazelas semelhantes se entranham na sociedade. Como as pessoas podem ser tão prepotentes?
O verso destacado no início surge apenas na terceira faixa, "Beyond the Red", mas os questionamentos e esse denso conteúdo lírico estão presentes no álbum desde a abertura, com "Protofuture". Assim que o primeiro riff ecoa do lado esquerdo da caixa de som, o que se ouve é um doom metal que logo entrega o desejo de não se prender somente ao básico. A primeira música talvez até seja a mais tradicional e fiel ao gênero. Porém, o vocal limpo, a mescla de inglês e português e o solo de guitarra já dão indícios de um tom meio exótico que irá permear boa parte do trabalho. Exótico no bom sentido. Nada cafona. A bateria também apresenta seu cartão de visitas com uma batida maciça, preenchida por dentro.
"The Edge" é o ponto de partida explícito para que as influências de Black Sabbath comecem a ser derramadas, sobretudo na parte instrumental. Já o timbre de voz, por algum motivo, remete ao Devil norueguês, da fase Time to Repent (2011). Melhor elogio não poderia haver. O riff no finalzinho é apoteótico. Bela cartada. Em seguida, "Beyond the Red" rouba a cena não só pela letra intrigante, mas pela guinada brusca que dá ao disco. Do doom ao post punk em um piscar de olhos. Com direito a refrão que gruda no ouvido e uma levada mais inocente. Algo que lembra o Futuro. A produção e mixagem do disco, aliás, ficaram a cargo de Pedro Carvalho, guitarrista/vocalista da banda paulistana.
Após o breve interlúdio "Miragem", surgem as primeiras notas de "Onironaut", cuja semelhança com "Supernaut" fica apenas no nome mesmo. Nela, a referência clara ao Black Sabbath nos leva direto a "Children of the Grave", já que o riff do canto é bastante parecido. "The Right to be Forgotten/Exiled in Itself" tem uma ótima introdução, com acordes dissonantes, antes de desembocar novamente no doom hermético de outrora. Alguém falou em Saint Vitus?
O que dizer de "L.u.p.i./Talking Walls"? Ao mesmo tempo, síntese e ápice de All Beyond Perception. A melhor música do disco combina um solo melancólico brilhante com uma segunda parte rapidinha que é genialidade pura em doses de sutileza metal punk. A letra cabe como metáfora exata do quão assustador pode ser o vazio planejado de Brasília. Deserto de concreto no cerrado, a cidade é o lar dos quatro responsáveis pela abertura do A B I S M O: Poletto (bateria), Stefano (guitarra), Pícaro (baixo) e Poney (guitarra e voz), que aqui experimenta reduzir a velocidade da palhetada e mergulhar no doom, embora o thrash metal do Violator vá muito bem, obrigado.
Último ato, "Sun" se apresenta já com o jogo ganho, mas mantém o sarrafo lá no alto. Seja com a guitarra viajadona ou com a alternância na linha vocal.
Lançado no dia 6 de abril, All Beyond Perception tem uma aura obscura e bacana de ir sendo digerida aos poucos, sem pressa, de preferência com atenção na estética lírica. Além disso, outro de seus méritos é conseguir escapar de clichês quase obrigatórios no doom, mas nem sempre eficazes: músicas quilométricas e auto-indulgentes com a própria monotonia. Definitivamente, não é o caso. Pouco polido, o álbum tem nos detalhes uma beleza rústica que certamente não saltará aos olhos de todos. Mas que brilhará forte na mente de alguns. Tudo além da percepção.
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