terça-feira, 4 de novembro de 2025
CAPAS DE DISCOS - 1968 The Book Of Taliesyn - Deep Purple
Beth Orton – Kidsticks (2016)

Beth Orton entrou nos radares do mundo em 1996, com Trailer Park, que juntamente com os sucessores Central Reservation e Daybreaker estabeleceram o seu som: a folk acústica na base de tudo, mas com recurso inteligente e subtil a electrónicas, e com a voz personalizada de Orton a dar estrutura ao que sempre foram, sobretudo, canções.
Agora, 20 anos depois, muita coisa mudou. A inglesa Orton mudou-se para a California com o marido americano, perdeu a mãe num processo naturalmente doloroso, tem duas crianças e sentiu que era altura de começar de novo. Em entrevista ao Guardian, explica: “Bom, eu já tinha feito aquilo da singer-songwriter inglesa e cheguei a um ponto em que precisei de deitar tudo fora e encontrar um novo lugar, tanto psicologicamente como criativamente”.
Daí a estranheza deste novíssimo Kidsticks. Só a voz de Orton, que continua inconfundível, trai a origem do disco. É que, no resto, poderíamos estar perante o trabalho de qualquer outro artista que nunca tivéssemos ouvido. No processo de composição, a costumeira guitarra acústica foi trocada pelos teclados, e isso, mais uma vez, faz toda a diferença nos caminhos escolhidos.
Na verdade, explica ela, inicialmente a ideia era fazer um disco totalmente electrónico, mas algumas canções foram impondo outros caminhos mais convencionais, e nós até agradecemos por isso.
Aquilo que temos, na verdade, é o disco mais arrojado, arriscado e aventureiro disco da carreira de Beth Orton. Temos muita electrónica sim; temos um arranque quase ao estilo dos Animal Collective, com “Snow”; a subtileza ‘spoken word’ da muito serena e bonita “Corduroy Legs”; temos ecos de The xx e até de Bjork; temos uma atmosfera maioritariamente densa e marcada pela percussão; e temos muitas outras coisas, num caminho exploratório que não seria de esperar.
Infelizmente, isso nem sempre é bom. Mesmo ultrapassando a desilusão de Beth Orton já não querer fazer aquele som que a ela nos levou originalmente, o novo rumo parece ser ainda de busca, de um grito de energia e criatividade, mas sem um foco definido, que falta a este Kidsticks.
Ganha pontos pelo risco nesta fase da sua carreira, mas como produto isolado talvez o salto tenha sido demasiado abrangente.
Kula Shaker – K 2.0 (2016)

Numa altura de revivalismos psicadélicos e espaciais seria de todo redutor não referir um dos nomes que mais fez para ressuscitar um género tão cravado numa época específica e que pouco sentido fez a partir daí. O facto de não fazer tanto sentido não implica que o género não seja revisitado e tão bem emulado como os Kula Shaker o fizeram. A banda de Crispian Mills não se limitou a roubar riffs ou looks. Não. Os Kula Shaker roubaram um pouco de 1966-67, abraçando o misticismo e espiritualidade da cultura oriental trazendo-os para a britpop da metade dos anos 90. O resultado, embora de curta duração, foi esplendoroso. Como esquecer pérolas como “Hush” (excelente cover de Deep Purple), “Govinda” ou “Tattva”?
Em 1996, ano de lançamento de K, os Kula Shaker pareciam um ovni na indústria musical. O grunge tinha implodido dois anos antes com o suicídio de Kurt Cobain e pouco restava do tal movimento que nunca o tinha sido verdadeiramente. A britpop estava no auge. A luta titânica entre Blur e Oasis ainda estava nas parangonas dos tablóides ingleses, sedentos pelo sangue que os irmãos Gallagher prometiam tirar da banda de Londres. Mesmo considerando que os Radiohead já andavam por aí, eram os Kula Shaker que mais chamavam a atenção não só pelo seu som inusitado para época mas também por serem uma banda que abraçou a cultura oriental, especialmente a indiana, de uma forma que já não se via desde os anos 60. Tendo em conta que já se tinham passado trinta anos, este revivalismo foi quase como uma revelação para uma geração que não viveu a década do Verão do Amor original.
No entanto, os anos 90 não eram os anos 60. Aquele revivalismo trazido com K foi sol de pouca dura. Não só porque os tempos eram realmente outros mas também pela conjugação de vários factores. Comecemos por aí. A britpop desvaneceu-se tão rapidamente como surgiu. A guerra Blur-Oasis foi pífia. Após dois grandes discos, os Oasis começaram a sua queda até ao quase esquecimento, enquanto os Blur começaram a trilhar um caminho mais adulto e fora das guerrinhas adolescentes que tanto gozo deu aos manos Gallagher. O rock começou a ter outros caminhos, surgiu o grotesco nu-metal, começaram a criar-se nichos e a própria MTV achou que o que vendia mais eram os programas que nada tinham de música do que telediscos musicais que já ninguém ligava muito a menos que tivesse sangue ou mulheres bem despidas. Os Radiohead lançam, em 1997, Ok Computer e dão um pontapé final na britpop. Enquanto isto decorria, Crispian Mills, líder dos Kula Shaker entrava numa onda de arrogância e mania de que ele tinha descoberto a verdadeira espiritualidade e de que todos estavam errados. Só a sua música salvava. Não foi de estranhar que em 1999, quando a banda lança o seu disco de originais, Peasants, Pigs & Astronauts, já ninguém lhes ligou e o seu lugar na história da música estava definido e fechado. Seriam para todo o sempre aquela banda exótica que discutia lugares na tabela com Oasis e Blur.
Apesar de já ter tido pouca aceitação, o segundo disco dos Kula Shaker nada ficou a dever a K. Músicas como “Great Hosannah”, “Mystical Machine Gun”, “Shower You Love”, “Timeworm” ou “Sound of Drums” nada ficam a dever às melhores malhas do rock psicadélico e mereciam um pouco mais de respeito global.
Magoado com a fraca aceitação de Peasants, Crispian Mills decide dar uma volta à sua vida e abandona os Kula Shaker e forma os The Jeevas em 2002, banda que lançaria dois discos que 94% da população mundial não ouviu. Uma banda com um registo mais americano, esquecendo as raízes orientais dos Kula Shaker. Apesar de conterem algumas músicas interessantes, os dois discos dos Jeevas são esquecíveis e servem de coleccionismo para fãs de Kula Shaker e, principalmente, Crispian Mills.
O projecto Jeevas veria, naturalmente, o seu fim pouco tempo depois fazendo com que Crispian voltasse a tocar com os seus antigos membros dos Kula Shaker. A banda voltou a tocar ao vivo e, tendo sido a experiência tão positiva, resolveram entrar em estúdio para gravar mais um disco (Strangefolk), que acabaria por ver a luz do dia em 2007. O público não lhe ligou nenhuma. Víviamos a altura nobre do indie rock, onde bandas como Arcade Fire, Franz Ferdinand, LCD Soundystem ou Arctic Monkeys reinavam. Já ninguém queria saber dos velhotes do rock psicadélico.
Tendo aceite que já não faziam parte da “movida”, os Kula Shaker embarcaram na senda de fazerem discos para si próprios e para quem gosta do seu tipo de som. Daí nasceu Pilgrim’s Progress (2010). Um disco já mais em forma do que o anterior. Uma banda com um som mais coeso e com vontade de acrescentar algo ao panorama musical que parecia já começar a querer aceitar, uma vez mais, o seu estilo de som, vide Tame Impala.
No entanto, Crispian Mills e os restantes Kula já não jovens de 20 anos. E, não tendo tido o sucesso de outras grandes bandas que continuam sempre na estrada, a banda só se reúne esporadicamente, tendo demorado seis anos para gravar este K 2.0, vinte anos depois do seu disco inaugural.
Como já foi dito, os Kula Shaker há muito que deixaram de ser uma banda importante no panorama musical. E, parece-me, pouco andam importados com isso. Sabem que haverá sempre um pequeno lugar na História para eles e aceitaram-no. Curioso é o facto de a partir de 2010, com a chegada dos Tame Impala, o rock psicadélico começou a ganhar cada vez mais fãs, tendo atingido o pico há um par de anos com mais nomes como Temples, Unknown Mortal Orchestra, Foxygen, King Gizzard, Pond, Goat, Jacco Gardner, White Fence, Boogarins e até os nossos Capitão Fausto, entre muitos outros.
K 2.0 surge, então, mais como um piscar de olho às novas gerações, no sentido de dizer, “olhem aqui está alguém que já faz o que vocês fazem há bem mais tempo” mas não no sentido de ciúme ou inveja e de estarem mal com a vida. K 2.0 é uma celebração dos vinte anos de carreira dos Kula Shaker. Um disco que nos traz das melhores músicas da banda desde Peasants. “Infinite Sun”, faixa que abre o disco, traz-nos o melhor da banda de Mills. Sítaras, Tablas, misticismo. Podia fazer perfeitamente parte dos dois primeiros discos da banda. “Holy Flame” é o tal 2.0 de Kula Shaker. Uma banda adulta e madura a fazer o que gosta.
O resto do disco tem influências de Dylan (33 Crows) ou até de bandas que foram inspiradas pelos próprios Kula, como os The Coral, como se pode ver em “Death of Democracy”. “Oh Mary” traz-nos Paul McCartney a falar como se deve realmente viajar enquanto a banda nos traz o ragga rock de volta.
O disco não poderia terminar sem ter a grande música mística e oriental. “Hari Bol” é tão bonita que temos muita pena que só dure dois minutos. Merecia ficar horas em repeat.
K 2.0 nunca virá a ser falado para os melhores discos de 2016. Provavelmente nem dos melhores discos psicadélicos deste ano. Não deixa é de ser uma grande notícia ter os Kula Shaker em forma vinte anos depois do seu disco de estreia e saber que o rock psicadélico continuará sempre em boas mãos. Mesmo fora de moda…
Demoscene Time Machine – Gravity (2016)

O 8-bit não é um meme. Fora a apropriação pelo advento do meme — seja sob o contorno do vaporwave ou da sadboyz aesthetics (ler soprando os ditongos), fundamentalmente enraizados nas nostalgias tanto precoces como inconsequentes dos millennials —, aquilo que resta é o esqueleto primordial da estética deste movimento, cujas origens tiveram sequência na cultura pós-irónica das intrawebs. Não reconheço pós-ironia no 8-bit, porém; porém, reconheço a posterior intoxicação por parte dos 4chan, e /mu/, do virtualismo púbere, retumbando em distorcendo aquele que seria o objectivo do género. Repito: o 8-bit não é um meme. É um movimento decente.
“Objectivo”, contudo, será termo inapropriado. O 8-bit não tem um fim, mas parte de um propósito. Reportável mais recentemente às experimentações frenéticas de Crystal Castles, ainda mais recentemente à queerness e cultura nocturna de SOPHIE e Grimes, embora em todos os casos tomando carácter variante quanto ao princípio original, embora na generalidade dos casos mantendo a atmosfera cristalina e pululante e minimalista de uma electrónica volátil, a corrente define-se basilarmente segundo o longing pela cultural pré-virtual dos anos 90. Este arquejo passado toma as rédeas tanto no temperamento da música como na própria apropriação dos sons guardados das infâncias dos Gameboys e Ataris; posto que a ideia transversal é precisamente a da nostalgia, que ganha expressão na ambiência das faixas a partir da apropriação de samples tenuemente reconhecidas, endereçáveis a um tempo que não é este, que não se sabe que é outro, que de clareza sincrónica nada tem. É uma nostalgia embrenhada, sem referenciais distintivos, cuja problemática desemboca numa permanente sensação de imaterialidade, em que o sítio não é sítio, a memória não é memória. Será volátil, sobretudo, será impermanente, o que confere tensão, o que distorce a nostalgia. O princípio torna-se coisa distinta daquilo que pretendia ser, enformado agora numa indistinção irrecusável. Em descrição foucaultiana, um não-lugar da reminiscência.
E Demoscene Time Machine impõe-se neste ponto. Lá fosse entrar por distorções e o diabo a quatro, haveria de ser um títere sequencial das três referências que mencionei há pouco, mas não é o caso. David Whiting, o nome por detrás do pseudónimo, abraça com calidez os meandros do techno, arredado de largas paletes de samples e ainda assim espontâneo, a fim de compor um som cheio, um som íntegro, mas de compleição dançável. Gravity é culpado e orgulhoso réu da herança 8-bit, dos MIDI recursivos, do chiptune inusitado — em produções Soundcloud-based —, numa amálgama para si necessária. Não lhe traz problema algum render-se ao efeito desta embrulhada, até porque está bem consciente das potencialidades a que a sua própria narrativa permite. É quão vulnerável se mostra o fio condutor do álbum, feito de tímidas homenagens e referências, pelo próprio Whiting assumido como um in memoriam à sua juventude, memória que traz o confronto de um honesto e humilde carácter com a efusividade e o frenesim do género nele encabeçado. A nostalgia, aquela do início, das conspurcações pós-irónicas, peca agora a ironia, em cuja face cospe a pessoalidade de Gravity. Celebra-se o que é vulnerável, a recordação, mas fora de uma perspectiva pesarosa — de que a mensagem política, enquanto sugestão a um olhar perante o futuro pela lente do passado, é parte integrante, tomada do desassossego e da perseverança transversais ao álbum.
É esta dialética passado-presente que sustenta Demoscene Time Machine, entretanto substancializada pelo contexto do próprio projecto. Não fosse a particularização de David, o 8-bit seria genérico, um outro novo enumerar das potencialidades contemporâneas dos sons pré-púberes dos millennials. Porém, nos desenganemos, pois a volátil terra de nenhures para a qual esta electrónica quase necessariamente remete ganha agora o norte, endereçada pela intenção auto e hetero-biográfica do autor, de estética franca e direccionada. De pés assentes no chão. E assim até dá para dançar, caramba, e para dançar a infância, a recordação da infância, seja a de Whiting, seja outra qualquer.
Klaus Johann Grobe – Spagat der Liebe (2016)

É sempre bom ir descobrindo, e dando a conhecer, objectos estranhos que podem tornar-se a banda sonora de muita gente, que de outra forma não a ouviria. Desta vez, a honra cabe aos Klaus Johann Grobe, ilustres desconhecidos por terras lusitanas mas que fizeram um dos discos mais interessantes de 2016, até agora.
A banda é composta por dois suíços, de Zurique, que se juntaram há uns anos e que agora, com o segundo álbum, prometem começar a fazer as pessoas reparar neles. O disco em causa é Spagat der Liebe, qualquer coisa como o equilíbrio do amor. Como se pode ver pelo título, todo o disco é cantado em alemão. Isto, juntamente com a capa que nos remete para os épicos dos anos 70, bem como o som a partir de uma base krautrock, são as pistas necessárias para começar a entender este enigma europeu.
Não é, de facto, muito habitual ouvirmos bandas alemãs ou bandas suíças. Daí que a associação ao kraut de uns Kraftwerk seja quase imediata, até porque claramente estes rapazes fizeram aí o seu ciclo preparatório musical. No entanto, com audições repetidas de Spagat der Liebe percebemos que esse é um raciocínio redutor. Sim, a base está lá, a nossa associação mental é inevitável, mas os Kaus Johann Grobe não se limitam a uma cópia dos heróis de tempos idos, como os Can, os Neu! ou os já mencionados Kraftwerk.
Isto porque, em cima de uma sólida base de bateria maquinal reminiscente das tropelias do estúdio Kling Klang, há todo um mundo que se desenha. Em primeiro lugar, o baixo, um baixo pulsante incrível, que está sempre colocado à frente da mistura. Depois, uma catrefada de sintetizadores vindos directamente da Dusseldorf dos anos 70. Tudo isto dá ao som da banda uma vibração swingante, um entusiasmo que puxa à dança (ouça-se a estrondosa “Rosen des Abschieds”, por exemplo).
O que estes moços suíços nos trazem é uma orgia de sintetizadores, baixo e bateria, com as vocalizações simples a trazerem-nos o charme alemão do kraut. Mais, partem dessa raiz mas procuram sempre o formato canção. Se os Kraftwerk queriam fazer música que parecesse tocada por robots, os Klaus Johann Grobe agem como se esses robots se houvessem revoltado e acasalado com humanos cheios de soul e de funk.
Spagat der Liebe, disco deliciosamente retro, é uma combinação psicadélica irresistível, uma bela descoberta e uma das grandes surpresas deste ano.
Yanka Dyagileva – Angedonia (1989)

Mesmo que o impacto do punk rock e do período pós-punk se encontre bem documentado, seja através de compilações, filmes ou livros, o que é certo é que o foco das atenções tem sido, sobretudo, a música produzida em países anglo-saxónicos – com a Inglaterra e os Estados Unidos, naturalmente, à cabeça. É natural, tendo em conta que são estes dois os maiores exportadores mundiais de música pop/rock, em termos de quantidade e qualidade de projectos. Mas é também injusto para com todos aqueles que, mal o punk rebentou, criaram as suas próprias mini-sociedades em nações que, regra geral, não tinham acesso a este tipo de sonoridades.
Assim de repente, poderíamos falar da neue deutsche welle, cruzamento alemão entre o pós-punk e a electrónica que acabou por encontrar fiéis em vários pontos do globo, muito por culpa dos D.A.F., de Nina Hagen ou até mesmo dos Trio (os mesmos de “Da Da Da”, a canção que muitos só conhecerão pela paródia de Herman José). Ou poderíamos apontar baterias mais a sul, para a Jugoslávia ainda sob o jugo de Tito, onde damos de caras com os eslovenos Laibach, nome forte da chamada música industrial, e com os Zabranjeno Pušenje, banda de rock bósnia que depois de se tornar extremamente popular no seu país partiu à conquista da Europa com um nome mais familiar: No Smoking Orchestra, os mesmos do cineasta Emir Kusturica.
São apenas dois exemplos de uma música que quebrou barreiras e abalou convenções e convicções, mais no caso dos países de regime comunista. A União Soviética, o maior expoente desta ideologia, não ficou alheada dos ventos punk – que, como é óbvio, sopraram com muito mais força no underground. Bafejados por essa nortada, os Grazhdanskaya Oborona iniciaram actividade em 1982, pela mão de Yegor Letov, que se tornou numa figura de proa do rock russo e que à altura contava apenas 18 anos. Anti-autoritários, os Grazhdanskaya chocaram várias vezes com as autoridades soviéticas, tendo Letov chegado mesmo a ser internado num hospício. Não que isso o tenha travado de alguma forma. Ao longo dos próximos anos, a banda rodaria entre a energia punk, o espectáculo noise rock, e até mesmo pelo reggae, pela folk e pelo psicadelismo. Tudo inspirado pela literatura, pela poesia e pela filosofia.
E é preciso ter isto em conta, antes de enveredarmos pela música de Yanka Dyagileva, poetisa punk que, tal como Letov, nasceu na longínqua Sibéria. Ambos se movimentavam no mesmo circuito, tendo Dyagileva chegado a tocar com os Grazhdanskaya, ao mesmo tempo que assinava alguns discos a solo, editados entre 1988 e 1989. Angedonia (no cirílico original: ?????????) foi um dos seus últimos álbuns antes de morrer, de forma trágica, em 1991 – o seu corpo foi encontrado no rio Inya a 17 de Maio, dez dias após ter desaparecido. Há quem fale de suicídio, outros de um possível homicídio.
Não se sabe como morreu. Mas a sua música conta-nos como viveu, mente aberta pelo anarquismo numa nação que primava pelo respeito e pela burocracia: sofredora, ansiosamente livre, e profundamente revoltada. Da sua poesia restam apenas as suas canções – que, como é óbvio, são incompreensíveis caso não se conheça a língua russa. Mas, em ????????? e não só, conseguimos pressentir o seu espírito. Não é preciso tradução para a intensidade.
Mais por necessidade que por engenho, ????????? foi gravado em regime de baixa fidelidade, não soando a mais que uma qualquer experiência caseira. Uma excelente experiência, ainda assim. “?? ?????????? ???????” arranca com o ruído de um motor antes de se ouvir um riff demoníaco, não muito dissimilar daquilo que o black metal norueguês faria escassos anos mais tarde. O baixo pulsa, a voz brota da raiva, e o tradutor ajuda à descoberta do poema: Se tivermos sorte, não teremos de voltar às nossas jaulas, canta na segunda estrofe, fuga aos Gulags hipotética em dois minutos e meio de energia punk.
Em “?? ???????? ???”, somos confrontados pelo tremor da sua voz e pelo embalo ruidoso das guitarras, num dos momentos mais pungentes de ?????????: O amor universal só te trará uma cara ensanguentada… Dyagileva é uma Patti Smith niilista, a isso obrigada pelo terror do regime em que vivia, mas isso não lhe retirou o sentimento de fúria nascida da injustiça – em cada um destes temas está uma revolução por acontecer, uma revolução que terá de brotar ainda que o seu sucesso seja praticamente nulo.
Hoje em dia, muito provavelmente só encontraremos ????????? – bem como a sua restante discografia – na Internet, onde um website de tributo a Dyagileva nos conta tudo o que precisamos de saber sobre a artista. Infelizmente, sem saber russo não chegaremos longe; mas alguns dos seus discos foram ali colocados em formato .mp3, pelo que poderemos espreitar, por alguns minutos que sejam, para além da cortina de ferro. Com alguma sorte, ouviremos os seis minutos de miséria existencial que Dyagileva canta em “?????????”, o tema-título, que se traduz como “anedonia” – a perda de capacidade de sentir prazer, produto de uma forte depressão. Tudo por cima de de uma electricidade arrepiante, que a parece querer destruir a cada acorde. Quase como um prenúncio da má sorte que teria num dia fatídico de Maio. A história rock não contará com ela. Mas os amantes, os poetas e os filhos de uma liberdade por vir devem segui-la atenciosamente. As mãos amigas não têm linguagem nem fronteiras que as separem.
Destaque
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