domingo, 7 de janeiro de 2024

Crítica a.s.o.: “a.s.o.”

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Crítica

a.s.o.

 : "a.s.o."

Ano: 2023

Selo: Low Lying Records

Gênero: Trip-Hop, Downtempo

Para quem gosta de: Portishead e Air

Ouça: Rain Down e My Baby's Got It Out For Me

Não fosse o conhecimento prévio, seria fácil pensar no autointitulado registro de estreia do a.s.o. como uma obra perdida da década de 1990. Produto da parceria entre a cantora e compositora Alia Seror-O’Neill e o produtor Lewie Day, ambos australianos residentes em Berlim, na Alemanha, o trabalho de onze canções funciona como uma verdadeira viagem em direção ao passado. Seja pelo tratamento dado às batidas, uso dos sintetizadores e escolha dos timbres, cada mínimo fragmento do material funciona como um aceno para as criações de veteranos do trip-hop, o que não necessariamente compromete a identidade da dupla.

Inaugurado pela atmosférica Go On, com seus sintetizadores retrofuturistas, batidas e vozes submersas, o trabalho diz a que veio logo nos minutos iniciais. É como se a dupla orbitassem o mesmo território criativo de registros como Dummy (1994), do Portishead, e Moon Safari (1998), dos Air, porém, não em um sentido referencial, mas como um produto gerado no mesmo período de tempo. O próprio uso ecoado das bases, sempre em contraste com a bateria seca e completa aspereza das guitarras, torna isso ainda mais evidente.

São composições que se revelam aos poucos, sem pressa, como um convite a se perder em um labirinto de sensações que gera um curiosíssimo senso de familiaridade durante toda a execução da obra. Faixa mais extensa do disco, Rain Down funciona como uma boa representação desse resultado. Enquanto a fluidez das batidas vai de encontro ao mesmo território de nomes como Massive Attack, versos marcados pela força das temáticas buscam estreitar laços com o ouvinte. “E se você me ver caindo / Estendendo a mão para você / Não significa que eu não posso continuar sem você“, detalha Seror-O’Neill em tom libertador.

Mesmo quando rompem com esse resultado, Seror-O’Neill e Day continuam a dialogar com a produção de outros artistas. Em Love In The Darkness, por exemplo, a base soturna e o uso atmosférico das guitarras vai de encontro ao som de Julee Cruise, como uma composição perdida da trilha sonora de Twin Peaks. O mesmo pode ser percebido em True, música que avança em um território de formas enevoadas, proposta que soa como uma natural combinação entre as criações etéreas do Cocteau Twins com o Dead Can Dance.

Independente da direção percorrida, prevalece durante toda a execução do trabalho a formação de uma obra marcada pelos detalhes e evidente refinamento dado aos arranjos. Mesmo próxima ao fechamento do disco, Falling Under destaca o capricho da dupla australiana. Enquanto a voz de Seror-O’Neill surge como um instrumento versátil, assumindo diferentes formatações ao longo da canção, o parceiro de produção não economiza no uso de pequenas inserções. São ambientações sintéticas, efeitos, ruídos e batidas que vão de um canto a outro de maneira totalmente imprevisível, rompendo com qualquer traço de conforto.

Dessa forma, Seror-O’Neill e Day se permitem confessar algumas de suas principais referências criativas de maneira evidentemente explícita, porém, jogando com as possibilidades e ampliando o próprio campo de atuação com uma delicadeza única. São quatro ou mais décadas de diferentes estilos reorganizados dentro de um território bastante característico, por vezes próprio da dupla australiana, mas que a todo momento busca estimular antigas memórias para não apenas atrair, como seduzir e capturar a atenção do ouvinte.


Crítica Teenage Fanclub: “Nothing Lasts Forever”

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Crítica

Teenage Fanclub

 : "Nothing Lasts Forever"

Ano: 2023

Selo: Merge

Gênero: Indie Pop, Power Pop

Para quem gosta de: Ride e The Lemonheads

Ouça: I Left a Light On e Back to the Light

Do ponto de vista emocional, os últimos anos foram bastante complicados para os integrantes do grupo escocês Teenage Fanclub. Além de lidar com o período pandêmico, Norman Blake, principal compositor da banda junto de Raymond McGinley, precisou se adaptar à nova vida após o término de um casamento que durou 24 anos. Toda essa turbulência sentimental resultou no material entregue em Endless Arcade (2021), trabalho que vinha sendo desenvolvido antes mesmo da pandemia de Covid-19, mas que alcança melhor resultado nas composições que integram o repertório de Nothing Lasts Forever (2023, Merge).

Mais recente trabalho de estúdio do quinteto que ainda conta com os músicos Francis MacDonald, Dave McGowan e Euros Childs, Nothing Lasts Forever é uma obra de sentimentos e percepções contrastantes. Enquanto a base instrumental do disco continua a incorporar o que há de mais radiante no som produzido nos anos 1960 e 1970, em se tratando dos versos, as angústias vividas por cada colaborador orientam de forma bastante sensível a direção seguida pelo grupo. São momentos de maior vulnerabilidade, letras consumidas pelas emoções e instantes de doce melancolia que se comunicam diretamente com o ouvinte.

A diferença em relação a outros trabalhos do gênero, incluindo o próprio Endless Arcade, está na forma como o Teenage Fanclub parece movido pela necessidade em dar continuidade à vida, rompendo com todo e qualquer traço de um possível romantismo entristecido. “É hora de seguir em frente / E deixar o passado para trás / Meu coração era como uma pedra / Mas agora está batendo forte“, canta Blake logo nos minutos iniciais da obra, em Foreign Land. É como um indicativo claro de tudo aquilo que a banda busca desenvolver ao longo do material, conceito que se reflete até a chegada da derradeira I Will Love You.

Entretanto, antes de alcançar a composição de encerramento, a jornada emocional, lírica e instrumental proposta pelo grupo em Nothing Lasts Forever assume diferentes formatações. Em I Left A Light On, por exemplo, são harmonias de vozes e bases de piano que vão de encontro ao mesmo território criativo de nomes como The Beatles. Já Back To The Light, próxima ao fechamento do disco, posiciona as guitarras em primeiro plano, porém, preservando o refinamento melódico que fez da banda uma das mais cultuadas da década de 1990, vide o material entregue em obras como Bandwagonesque (1991) e Grand Prix (1995).

É como um permanente cruzamento de informações, proposta que invariavelmente resulta em pequenas repetições estruturais e caminhos há muito trilhados pelo grupo escocês, mas que em nenhum momento deixam de encantar o ouvinte. Segunda composição do disco, Tired Of Being Alone funciona como uma boa representação desse resultado. Enquanto a base instrumental naturalmente aponta para o passado, como um regresso aos primeiros álbuns, versos orientados pelo amor refletem o período recente da banda. “Os caminhos ficam cobertos de vegetação / Quando você está cansado de ficar sozinho“, canta McGinley.

Dessa forma, Nothing Lasts Forever se revela ao público como uma registro próximo e ao mesmo tempo distante de tudo aquilo que o grupo havia testado nos últimos anos. Canções dotadas de um inevitável senso de familiaridade, mas que estabelecem no frescor dos versos um necessário senso de renovação. A própria inserção dos arranjos de cordas e instrumentos de sopro em momentos estratégicos do trabalho parece contribuir ainda mais para esse resultado, ampliando o campo de atuação da banda escocesa sem necessariamente ocultar uma série de elementos bastante característicos do som do Teenage Fanclub.



Review: Bang – The Maze (2004, reedição 2019)

 


Após retornar com o controverso Return to Zero em 1999, o Bang soltou The Maze em 2004. E aqui, ao contrário do disco anterior, temos a banda soando como seus trabalhos iniciais, onde chegaram a ganhar a alcunha de “Black Sabbath norte-americano” devido ao peso e à semelhança com uma certa banda natural de Birmingham.

The Maze acaba de ser lançado pela primeira vez em edição nacional pelas mãos da Hellion Records e traz quinze faixas espalhadas por pouco mais de uma hora. O álbum estava fora de catálogo até no exterior, assim como o anterior, e esse resgate do grupo tem importância para repercutir não apenas entre colecionadores brasileiros, mas também de todo o mundo.

Contando com Frank Ferrara (vocal e baixo), Frank Gilcken (guitarra), Rick Bowen (teclado) e Mark Vaquer (bateria) – Ferrara e Gilcken são integrantes originais -, o Bang fez um disco na medida pra quem curte a sonoridade poeirenta do rock pesado produzido durante a década de 1970. O som é calcado em riffs de guitarra enquanto melodias e harmonias pontuam todo o trabalho, e a produção “na cara” imprime um ar de autenticidade totalmente alinhado com o rock and roll cru, pesado e direto ao ponto dos caras.

O disco traz uma nova versão para “RTZ”, do álbum anterior, aqui bem mais energética, e também releituras para “Bow to the King” (originalmente no segundo disco, Mother / Bow to the King, de 1972) e “Love Sonnet” (single gravado a época do terceiro disco da banda, Music, de 1973). E para os fãs do primeiro álbum do então trio – o cult Bang (1971) -, canções como “413” caem como uma luva. Aliás, a semelhança entre o riff dessa faixa e de “The Queen”, do debut, não é mera coincidência.

The Maze é um disco interessante e essa edição nacional da Hellion Records é histórica, pois resgata um álbum que nunca havia saído no Brasil e que está fora de catálogo no exterior há 15 anos, desde o seu lançamento.

Se você é fã de hard dos anos 1970 e coleciona itens do gênero, imperdível!




Review: Tool – Fear Inoculum (2019)

 


Não sei se em algum momento de sua longa carreira a banda norte-americana Tool pôde ser definida como heavy metal. Ou melhor: se o heavy metal é suficiente para abarcar todos os caminhos que a música do quarteto formado por Maynard James Keenan (vocal), Adam Jones (guitarra), Justin Chancellor (baixo) e Danny Carey (bateria) transita. A resposta é, sem medo de errar, um grande NÃO.

Fear Inoculum, primeiro álbum do grupo em treze anos e sucessor de 10,000 Days (2006), ratifica essa conclusão. O Tool, na verdade, não só não se enquadra dentro dos limites do metal como é difícil de encaixar em diversos outros gêneros. O mais adequado seria classificá-los como rock progressivo, mas também não há uma exatidão nessa definição. E por mais que você possa estar pensando algo como “tá, mas e daí, o que importa é o som e não esses adjetivos”, eles são essenciais para localizar o leitor sobre o que ele ouvirá ao colocar um disco da banda para tocar.

As sete músicas de Fear Inoculum – que no formato digital vem com três canções a mais: “Litanie contre le peur”, “Legion Inoculant” e “Mockingbeat”, na prática três interlúdios climáticos e instrumentais – apresentam um trabalho pretensioso, original e hipnótico. Seis das sete faixas ultrapassam os dez minutos (a exceção é “Chocolate Chip Trip”, outro interlúdio instrumental) e trazem acordes, progressões harmônicas, escalas rítmicas e melodias predominantemente ascendentes, o que faz com que o disco possua um magnetismo sonoro fortíssimo. Na prática, isso se traduz em uma audição que provoca uma espécie de hipnose à medida que as músicas vão se sucedendo. A escolha por construir as canções utilizando acordes e notas irmãs, aliada às melodias vocais de Keenan, etéreas em sua maioria, intensifica essa sensação de atordoamento da mente ao mesmo tempo em que parece abrir novos cantos ainda não explorados no cérebro do ouvinte.

A parte rítmica segue sendo um dos destaques, com andamentos fora do convencional e uma abordagem que conversa com o fusion, sempre amparada pela união univitelina entre baixo e guitarra. O instrumento de Chancellor, sempre um destaque, continua tendo um papel quase percussivo e preenche os espaços de forma onipresente. Quem ama bateria seguirá amando o trabalho de Carey, enquanto Jones mantém uma forma de tocar guitarra que, principalmente em Fear Inoculum, está muito mais interessada em criar atmosferas sonoras do que riffs.

Porém, o peso vem. E, quando ele vem, chega bonito. Os ápices das canções, com explosões instrumentais repletas de viradas rítmicas, são de arrepiar até o mais careca dos fãs. É uma música original, única e bela, que poderia tanto ser definida como um prog metal hipnótico ou um fusion meditativo.


O fato é que em Fear Inoculum o Tool exige uma parceria do ouvinte para que o que a banda está propondo seja assimilado com eficiência. Isso quer dizer que, em um mundo onde a urgência predomina e a ansiedade deixou de ser uma exceção e se transformou em companhia de grande parte dos indivíduos, um disco com mais de 70 minutos de duração e faixas que passam de dez minutos necessita um esforço de grande parte dos ouvintes. Fear Inoculum não é daqueles álbuns feitos para uma audição eventual e ocasional. Ele demanda uma imersão, exige um tempo de quem está do outro lado do fone de ouvido. Mas, ao fazer isso, recompensa com uma entrega criativa, uma música que foge totalmente dos padrões vigentes e que proporciona sensações incríveis.

Entre as faixas, destaque para a sensacional canção que batiza o disco, “Invincible”, “Descending” e para a incrível “7empest”, a mais longa e pesada do álbum e onde o protagonismo total vai para a guitarra de Adam Jones.

Fear Inoculum compensa a longa espera de treze anos por um novo álbum do Tool com um trabalho complexo, extremamente imersivo, musicalmente rico e que carrega tanto o selo de qualidade quanto a aura original que a banda sempre possuiu. Um dos grandes discos de 2019 e um dos melhores álbuns da carreira do quarteto.

O disco conta com uma edição especial e limitada no mercado norte-americano, com foco na experiência visual que complemente a música e traz uma tela de vídeo, book com 36 páginas e arte exclusiva. No Brasil, não há previsão de lançamento. Vale lembrar que apenas os dois primeiros discos do grupo, Undertow (1993) e Ænima (1996), saíram por aqui.



Review: Whitesnake – Lovehunter (1979)

 


Obra-prima da banda! Fantástico, simplesmente! David Coverdale não era apenas mais um galã para as mulheres da época e o Whitesnake chegava, no final da década de 1970, ao seu segundo disco mais afiado do que nunca.

“Long Way From Home” é daquelas que custa enjoar. Ainda mais com a dupla Micky Moddy e Bernie Marsden nas guitarras. Aliás, a banda tinha como atrativo todos os seus integrantes. 

Além dos vocais de Coverdale e da dupla fantástica de guitarristas, encontramos aqui Jon Lord, principal figura do Deep Purple. No ano seguinte, Ian Paice, também do Purple, assumiria as baquetas ,mas aqui temos um grande profissional chamado Dave Dowle. Ao lado de Neil Murray (que mais tarde faria parte do Black Sabbath), Dowle mantém a banda unida em “Walking in the Shadow of the Blues”.

“Help Me Thro’ the Day” é um blues dor de cotovelo bem feito, com passagens sentimentais de guitarras. É neste tipo de música que Coverdale se mostra por inteiro. Quem já assistiu ao vivo ou em vídeo sabe que existe toda uma interpretação corporal por parte dele. “Medicine Man” é um rock legal, porém simples, o que não tira o mérito da banda. O disco fecha o primeiro lado com “You ‘n’ Me”, com Coverdale dividindo os vocais com Bernie Marsden, lembrando muito a fase que o vocalista teve no Deep Purple, quando dividia os vocais com o baixista Glenn Hughes. Até aqui, perfeito o disco.


Caso você tenha este álbum em CD, não vai precisar virar nada para encontrar “Mean Business” e o solo de Lord.  Simplesmente a alma do grande Purple incorpora no Whitesnake. Caminho aberto para a música título. “Love Hunter” é chiclete pra caramba. Vicia, gruda na cabeça e você acaba batucando sozinho na sua perna quando se lembra dela pela rua (ou em qualquer outro lugar). Neil Murray dá uma dimensão pulsante à música e o que se ouve são guitarras em slides solando como nos primórdios do blues. Por enquanto, continuamos com um grande disco. Nenhum problema até agora.

“Outlaw” apresenta Bernie Marsden e Micky Moody  (o homem do “slide guitar” da faixa anterior) nos vocais. Esta canção possui um som bem agradável, com teclados absurdamente em sintonia com os demais instrumentos. Uma surpresa para os fãs da banda, que puderam comprovar que Coverdale tinha na sua retaguarda excelentes cantores. David faz falta, mas podemos encarar como uma tentativa que deu certo em “Outlaw”.

“Rock ‘n’ Roll Women” segue a linha de “Medicine Man”. Rock básico, para não complicar e mostrar que a banda manda chumbo grosso em todos os estilos de rock. Uma canção que coloca as mulheres em um pedestal, como só o Whitesnake poderia fazer. “We Wish You Well” serve apenas para se despedir de todos os que seguem a banda. Tanto que nos discos seguintes o título desta faixa apareceria nas linhas destinadas aos créditos e agradecimentos dos músicos.

Epa, acabaram as músicas ...não tem importância. O prazer maior aqui é escutar várias vezes as canções, uma após a outra ou apenas as que mais te despertarem a atenção. 

A cobra branca deixou seu rastro no mundo do rock.



Review: RPWL – Tales From Outer Space (2019)

 


Novo e nono álbum da banda alemã RPWL, Tales From Outer Space foi lançado no final de março na Europa e chega ao mercado brasileiro através da Hellion Records, que já havia produzido a edição nacional do disco de estreia do quarteto, God Has Failed (2000). 

Formada por Yogi Lang (vocal e teclado), Kalle Wallner (guitarra e baixo), Markus Jehle (teclado) e Marc Turiaux (bateria), a banda conta com a participação do excepcional Guy Pratt na faixa “Not Our Place to Be”. Pratt é um cantor, compositor e multi-instrumentista inglês que possui uma longa associação com o Pink Floyd no período pós-Roger Waters, tocando na turnê dos álbuns A Momentary Lapse of Reason (1987) e The Division Bell (1994) – ele gravou todos os baixos deste último, inclusive, enquanto o instrumento foi assumido por Tony Levin na gravação de A Momentary Lapse of Reason. Sua performance pode ser apreciada nos ótimos álbuns ao vivo Delicate Sound of Thunder (1988) e Pulse (1995).

A relação com o lendário Pink Floyd vai além. O RPWL é muito influenciado pela banda inglesa e surgiu, inclusive, de uma banda cover do Pink Floyd montada pelos músicos em 1997. Além disso, os alemães lançaram dois discos ao vivo tocando canções do quarteto inglês: RPWL plays Pink Floyd (2015) e RPWL plays Pink Floyd’s The Man and the Journey (2016), suíte que o Floyd apresentou na tour de 1969 e que trazia canções do período inicial da banda, faixas inéditas e composições que entrariam em álbuns posteriores como Ummagumma e a trilha do filme More, ambos lançados naquele ano.

Tales From Outer Space vem com sete músicas e cinquenta minutos, e apresenta um rock progressivo clássico com toques contemporâneos, onde ficam claras também as influências de Porcupine Tree e dos discos mais recentes de Steven Wilson, porém sem o peso que Wilson tem adicionado aos seus últimos álbuns. Se você curte outra referência do prog atual, a banda polonesa Riverside, é provável que também goste do trabalho dos alemães.

O som do RPWL bebe de forma profunda na tradição floydiana, resultando em uma música elegante, cheia de momentos contemplativos e que conversa diretamente com a obra criada por Roger Waters e David Gilmour. Porém, isso não significa que estejamos diante de um clone, já que a banda imprime o seu toque especial e reflete isso através de canções muito bem feitas. A voz de Lang possui um registro semelhante à de Gilmour, transmitindo a mesma sensação de tranquilidade, enquanto o aspecto instrumental é extremamente bem executado.

Destaque para “A New World”, “Welcome to the Freak Show”, “What I Really Need” e para a suíte “Light of the World”, com mais de dez minutos.

Se você está à procura de um bom e atual disco de rock progressivo, aqui está uma ótima opção.



Review: Johnny Cash – Bitter Tears: Ballads of the American Indian (1964)

 


“Em nossa derrota, encontramos orgulho. Em suas vitórias vocês encontraram vergonha.” 
Peter La Farge

Johnny Cash é um daqueles artistas que transcende rótulos e gêneros musicais. Afinal, qual outro artista country cantaria músicas anti-guerra ("What is Truth", "Singing in Vietnam Talking Blues", "Drive On"), pró controle de armas ("Don’t Take Your Guns to Town", "Devil’s Right Hand"), que vestiria preto em solidariedade às minorias e aos excluídos ("Man in Black"), que gravaria álbuns ao vivo em penitenciárias em favor à reforma do sistema prisional e aos direitos humanos de condenados (At Folsom Prison de 1968 e At San Quentin de 1969)? Que outro artista country sulista, branco, gravaria um álbum inteiro com canções de protesto a favor dos direitos civis dos povos nativos americanos?

Em 1962, Johnny Cash assistiu à apresentação de um desconhecido cantor folk chamado Peter La Farge. Cidadão nativo americano, La Farge cantava sobre os problemas enfrentados pelos povos nativos e Cash, que sempre acreditou ter ascendência Cherokee, tomou para si a incumbência de levar esses assuntos a audiências maiores.

Gravado entre março e junho de 1964 e lançado em 1 de outubro daquele ano, este seria o primeiro de vários álbuns conceituais que ele lançaria ao longo de sua carreira. Porém, não foi bem recebido pela crítica, sendo completamente ignorado pelas rádios que, um ano antes, haviam tocado à exaustão o sucesso "Ring of Fire". Formada em sua maioria por cidadãos conservadores e ultra-patriotas, a base de fãs do cantor, desnecessário dizer, detestou o álbum. O único single, "The Ballad of Ira Hayes", só apareceu na lista da Billboard depois de um esforço pessoal de Cash e de seu amigo Johnny Western, que compraram mais de mil cópias do single e enviaram a rádios e disc jockeys de todo o país, juntamente com uma carta que acusava a indústria musical de censurar sua música. Esta carta* foi publicada por Cash como um anúncio de página inteira na Billboard Magazine de agosto de 1964 como um ato de protesto e indignação frente à relutância da mídia em executar, divulgar e até mesmo resenhar o single.

Fã declarado de Dylan e aproveitando o revival do folk que aconteceu no início dos anos 1960 e que teve o protesto como uma importante caraterística, Cash gravou um disco muito mais folk do que country. À sua tradicional banda de apoio, Tennessee Trio, foi somado o virtuoso Norman Blake no violão e o acompanhamento vocal da Carter Family, que tinha June Carter entre as cantoras.


"As Long as the Grass Shall Grow": composta por La Farge, teve a letra levemente alterada por Cash para a gravação. Cash conta a história triste do que aconteceu com parte da tribo dos Seneca, que tiveram suas terras inundadas pela construção da represa Kinzua. Essa reserva havia sido garantida ao povo Seneca em 1794 por um tratado assinado por George Washington e que foi ignorado por John Kennedy em 1961, quebrando uma promessa de campanha com a tribo e obrigando-a a deixar sua terra e migrar para outra região. Ironicamente, a expressão “as long as the grass shall grow” foi usada para concluir todos os tratados assinados entre o governo e os povos nativos. A música que abre o álbum possui o refrão cantado mas estrofes faladas na voz potente de Cash, que usa seu dom único a favor da interpretação, carregando de seriedade e sentimento a história contada. A levada do violão, típica de balada, e a batida indígena da percussão constroem o clima grave exigido pela letra.

"Apache Tears": Cash visitou a mãe de Ira Hayes e recebeu dela um colar com uma obsidiana preta, a Lágrima Apache. Após o massacre de Wounded Knee, as centenas de corpos de indígenas mortos foram deixados para apodrecer ao relento. Às mulheres sobreviventes foi negado o direito de um ritual funeral sagrado ao que elas, pela primeira vez, choraram. Suas lágrimas, ao atingirem o solo, tornaram-se negras. Profundamente comovido, Cash compôs um protesto doloroso em homenagem aos povos nativos em constante mudança de reserva em reserva. Em especial, a segunda estrofe revela e protesta a violência sexual sofrida por mulheres indígenas. Acompanhado por um violão simples e um tambor de couro e cantando uma canção sem refrão, Cash faz-se ouvir. E emociona.

"Custer": talvez a música mais chocante do álbum. Composição de La Farge, Johnny Cash a interpreta com seu famoso tom sarcástico ouvido em músicas como “25 Minutes to Go” e “Sam Hall”. A letra conta um assalto a uma tribo Lakota realizada pelo General Custer, mas que acabou sendo arrogantemente mal calculado, mal sucedido e que resultou em sua morte. A batalha, conhecida como A Batalha de Little Bighorn, é sempre contada pela visão dos perdedores como um massacre, mas aqui o papel se inverte e o povo indígena vitorioso conta sua versão, honestamente debochada, sobre o papelão de um exército comandado por um militar petulante que teve seu escalpo loiro retirado à faca. Primeiro arranjo country a-lá-Cash do álbum, apresenta um Tennessee Trio perfeito em sua simplicidade.

"The Talking Leaves": composta por Cash, esta canção presta homenagem a Sequoyah, um Cherokee que, mesmo pobre e sem escolarização, desenvolveu o alfabeto Cherokee, promovendo o registro escrito da língua e o letramento da tribo. Propositalmente falada, talvez para emular a tradição oral dos povos nativos, a interpretação é acompanhada pela Carter Family em um lamento quase assombrado. O dedilhado preciso de Norman Blake é completado pelo baixo de Marshal Grant, garantindo a qualidade acústica da faixa.

"The Ballad of Ira Hayes": a música mais importante do álbum. Composta por La Farge, é interpretada com maestria por Cash. Ira Hayes, um nativo americano da tribo Pima, é um personagem famoso na história bélica dos Estados Unidos. Ele foi um dos sobreviventes da Batalha de Iwo Jima e um dos soldados a erguer a bandeira americana no Monte Suribachi, ato eternizado na famosa fotografia de Joe Rosenthal. Foi considerado um herói de guerra e recebeu condecorações e medalhas pelos atos de bravura. Ao retornar à vida normal, porém, sofreu do que todo nativo americano sofria: pobreza, preconceito e esquecimento. Morreu em decorrência do alcoolismo em 24 de janeiro de 1955. A música inicia com um tema fúnebre tocado em uma flauta, sendo seguido pelo chamado triste de Cash: “Ira Hayes, Ira Hayes”. A bateria, que recorre seguidas vezes a batidas marciais, enfatiza a história de Ira.

"Drums": outra composição de La Farge, a letra fala da “americanização” ou “branqueamento” imposto às populações nativas norte-americanas. “Índios” não são bem vistos em nossa “civilização” e Cash deixa isso muito claro ao cantar que “eles irão me educar na regra dourada do homem branco” ou “eu vou quando me chamam de Billy, apesar de eu possuir um nome indígena”. Um protesto ácido, a letra é uma bela lição ao branco colonizador. Novamente a Carter Family faz um bom trabalho vocal enquanto a percussão de tambor mais acelerada torna urgente o clamor indígena.

"White Girl": a única balada de amor do álbum, é trágica como a história dos povos nativos. O romance entre uma mulher branca e um nativo americano está fadado ao fracasso e o final já é entregue no segundo verso da canção. Aqui, La Farge entrega uma metáfora ao mito da inclusão e Cash interpreta um ressentido e, ao final, consciente “índio”: “Fui o animal de estimação de uma garota branca, seu índio cativo, exibido e descartado”. Segunda e última música com arranjo country, o Tennessee Trio dá o tom tradicional ao tema.

"Vanishing Race": nesta composição de Johnny Horton, Cash dá voz a um canto nativo que evoca as áridas pradarias do Arizona ou Novo México e a letra parece descrever um ritual de passagem Navajo. Com uma atmosfera assombrada, a canção finaliza de maneira melancólica um álbum de protesto que não tinha nada de esperançoso.

Com um status de polêmico mesmo antes de seu lançamento, dado seu posicionamento político a favor dos direitos dos povos nativos, é, hoje, um álbum cultuado e um registro mais do que relevante na carreira de Cash.

Johnny Cash nunca foi um vanguardista no aspecto sonoro ou musical. Tinha, porém, voz, estilo e talento únicos que fizeram dele um artista importantíssimo para a música americana. Foi também corajoso o suficiente para defender suas posições políticas independente de público e da indústria musical. Em Bitter Tears, temos apenas um dos inúmeros exemplos de seu ativismo.

Em tempos de ascensão de políticas indigenistas sombrias, um álbum lançado há quase 55 anos por um cantor country americano ainda tem muito a dizer.




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