sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O ROCK EM PORTUGAL 1970-1979

 


Ao contrário dos anos 60, a década de 70 acabou por se revelar profícua na construção de projectos excepcionalmente válidos para o desenvolvimento do rock'n 'roll. Basicamente podemos perspectivar o fenómeno em três intervalos de tempo diferenciados: os primeiros quatro anos até Abril de 74; o período do pós-revolução que seguiu; a chegada até nós do punk-rock no final da década e o germinar das raízes da música moderna. Tematicamente, é impossível criar fossos absurdos entre a vaga psicadelista que despontou em 67 e a realidade do nosso rock a partir de 1970. Por isso, teremos de iniciar esta abordagem precisamente com base na análise da herança deixada por esses conturbados anos 60. Conforme foi referido no resumo da década de 60, o cenário português acabou por actuar como um «pau de dois bicos» para o rock. Se, por um lado, o seu sistema ditatorial servia como motivo de inspiração perfeito para a contestação natural do rock, as suas regras, determinadas segundo modelos severos de vigia, impossibilitavam a sua expansão ao imaginário de todos os jovens portugueses, mantendo-se o fenómeno restrito às zonas urbanas mais populosas, com Lisboa e o Porto à cabeça, muito naturalmente. Apesar disso, o rock impôs-se fortemente como veículo de vida e atitude de muitos portugueses, podendo a sua história entre nós, durante a década de 70, ser compreendida a partir do relato de um episódio que ilustra bem a sua importância, em todas as suas facetas: musical, social e política. Tudo se passou em torno de um festival agendado para o Verão de 70, em Oeiras. No meio de um cartaz essencialmente rock, despontava o nome de Zeca Afonso, tido pelas autoridades como uma figura perigosa para a nação. De braço dado, o rock e a canção popular portuguesa, preparavam-se para comemorar juntos algumas horas de música. O público afluíu em massa e, horas antes do concerto, as ruas de Oeiras encontravam-se apinhadas de jovens que, de um modo ou outro, aguardavam o início do espectáculo. Devido à presença de Zeca Afonso, a polícia determinou o cancelamento do festival e deu ordens para carregar sobre a população, no sentido de a dispersar com a máxima brevidade possível. Num instante, surgiram inúmeros casse-têtes e matilhas de cães treinados, provocando um pandemónio incrível, arrastando consigo cenas de lamentável violência. Contudo, dado que nas ruas de Oeiras se passeavam não só os interessados no concerto, como igualmente transeuntes alheios à sua realização, a carga atingiu também inocentes circunstanciais. Ora, uma dessas pessoas era, nada mais nada menos, do que uma familiar directa de um alto oficial da PIDE. Para infelicidade dos repressores, essa senhora encontrava-se num estado de gravidez adiantada e, em consequência das agressões sofridas por parte de um dos cães largados pela polícia, acabou por sofrer um aborto intencional. O feitiço virava-se assim contra o feiticeiro, culminando tudo numa repreensão duríssima contra o responsável pela ordem de repressão. Apesar do rock ter sido beneficiado por uma infeliz e lamentável coincidência exterior, este caso ficou arquivado para a história como o arranque oficial das suas actividades em Portugal, na década de 70. A montra de Vilar de Mouros Desta época, extensível até 24 de Abril de 1974 e à sua revolução popular, guarda-se o registo da evolução de vários grupos importantes provenientes da década anterior, a par do surgimento de novos valores. No grupo dos primeiros, incluem-se a Filarmónica Fraude, os Objectivo, os Pop Five Music lncorporated, os Chinchilas e os Psico, nomes já abordados durante o capítulo reservado à década de 60. O somatório das suas aventuras no domínio da experimentação do rock, com outras texturas sonoras alheias a este, providenciou a nata do que melhor foi feito em Portugal no início dos anos 70. Como uma bomba de efeito retardado, a cultura hippy explode em Portugal com o máximo da sua intensidade, apesar do fenómeno ter entrado em decadência nos seus palcos naturais, Inglaterra e Estados Unidos. Segundo o modelo de sucesso alcançado em festivais como Woodstock e Monterey, os portugueses organizam a nossa resposta em Vilar de Mouros, a 7 e 8 de Agosto de 71, apresentando um cartaz musical que iria fazer história durante muitos anos depois. Elton John e os Manfred Man actuaram como atracções internacionais para uma agenda que incluía também a produção nacional, representada pelo Quarteto 1111, Objectivo, Pentágono, Sindicato, Beatnicks, Chinchilas, Pop Five Music lncorporated, Psico, Celos, Contacto, Bridge e Mini-Pop, um grupo formado em 69 por crianças que variavam entre os 8 e os 12 anos de idade. Apesar de frequentarem ainda a escola primária e os primeiros anos do Liceu, estes miúdos do Porto não deixavam por isso de se apresentarem em público segundo a estética mais clássica do rock, trajando roupas exóticas e exibindo cabelos comprido, bem dentro da moda. Eles eram os irmãos Pedro, Mário e Eugénio Barreiros, a quem se juntou o amigo Abílio Queirós. Doze anos depois esta efémera aventura rock com marcadas insinuações iria dar origem aos Jafúmega um dos grupos mais marcantes do início da década de 80. Explosão «hippy» em Portugal Mas a idade hippy ir-se-ia revelar fundamental enquanto fonte de inspiração dos músicos portugueses. Um dos primeiros grupos a aderir ao advento do flower power foram os Beatnicks, um projecto que nunca chegou a atingir a estabilidade desejada pelos seus mentores, devido à constante onda de mudanças que foi afectando a sua formação. Na prática, podemos dividir a sua existência em três períodos. Entre 71 e 72, foram marcados pelo fascínio do guitarrista Rui Pipas (um dos mártires do nosso rock) pela energia do hard-rock, tendo editado «Christine Goes To Town», um EP que nunca chegou a ter o esperado impacte lógico devido ao súbito abandono de Pipas para formar os Albatroz, um outro projecto totalmente consagrado à fúria do rock pesado. Entretanto, e devido a problemas relacionados com a fuga ao serviço militar, três membros do grupo abandonam Portugal e refugiam-se na Bélgica, de onde só regressam após a revolução de 74. Um ano depois, entra para o grupo um novo elemento que se iria revelar de importância extrema em palco, Lena D' Água, a filha do futebolista José Águas. Juntamente com Tó Leal (também na voz), eles iriam percorrer o país inteiro em espectáculos sucessivos, transformando os Beatnicks num dos grupos mais populares dos anos 70 em Portugal. Nesta altura, o grupo viajava pelo universo da electrónica, versionando ao vivo nomes como Brian Eno e os Roxy Music. Mais tarde, em 77, com a saída de Lena D' Água e a entrada de António Emiliano para os teclados, os Beatnicks preenchem o seu último capítulo de vida, numa tentativa desesperada de sobreviver às novas tendências do rock, que apontavam directamente para o punk, ao invés do sabor progressivo que o grupo ainda alimentava. No domínio do rock psicadélico, com fortes insinuações progressivas, um outro grupo deu nas vistas, atingindo uma popularidade bastante razoável, os Petrus Castrus, surgidos a partir da vontade de Pedro Castro em formar uma banda rock, fascinado que estava com o sucedido em Vilar de Mouros. Para tal, convoca Júlio Pereira e João Seixas, ambos membros dos Play-Boys, outro bastião do hard-rock português. Muito rapidamente definem as suas directrizes e avançam para um projecto impossível de realizar em Portugal, um álbum conceptual com elevados requisitos técnicos. Contudo, e quando já nada o fazia prever, encontram finalmente uma editora interessada em concretizar o projecto, permitindo aos Petrus Castrus sessões de gravação nos Strawberry Studios, situado no Castelo de Hérouville (França), um local muito frequentado pelos Pink Floyd. Assim nasceu «Mestre», considerado um dos álbuns mais importantes da história do rock em Portugal e, afinal, aquele que imortalizou os Petrus Castrus no seu contexto dos anos 70. A importância da Banda do Casaco Fechado que estava o ciclo da Filarmónica Fraude em 70, António Pinho junta esforços com Nuno Rodrigues, e um ex-Música Novarum e formam o mais determinante projecto de música moderna-popular portuguesa de sempre. Nunca, antes e depois conseguiu fundir, de forma tão brilhante, a identidade das raízes lusitanas com uma absorção cuidada dos parâmetros do rock. Como uma bomba, a Banda do Casaco fez estrear, em 75, «Dos Benefícios de Um Bandido No Reino dos Bonifácios», um trabalho onde o grupo surge apostado em subverter todas as ordens previamente estabelecidas na música portuguesa até então. Em termos musicais, exploram a riqueza experimental das nossas tradições, ao mesmo tempo que António Pinho volta a investir na descoberta das mil e uma possibilidades de trabalhar a fonética da nossa língua. Um ano depois, confirmam todas as expectativas com «Coisas do Arco de Velha», surpreendendo tudo e todos com a presença vocal de Cândida Soares (mais tarde Cândida Branca Flor) e a introdução de Carlos Zíngaro no violino eléctrico, algo jamais pensado em termo do nosso rock. De algum modo, é incorrecto reduzir, a Banda do Casaco ao contexto simples do rock, mas apesar do projecto se ter centralizado sobre um pátio perfeitamente português, a sua abordagem formal sempre denotou uma tendência clara para pintar de rock o resultado final da maioria das suas inúmeras experiências. Com «Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos», de 77, fecham um triângulo de obras-primas essenciais. Complexo mas inteligente, o álbum mostrou a face mais radical de Rodrigues e Pinho, indo ao ponto de recorrerem a apuradas orquestrações para cordas. Novamente voltam a revelar mais uma voz feminina, sendo, desta feita, Gabriela Schaaf. Essa tendência para a descoberta de novos valores terminaria com a inclusão no grupo de Né Ladeiras, a última voz oficial de um trajecto que ainda lançou mais quatro obras, com destaque para «No Jardim da Celeste» (80), onde o grupo contou com a participação gratuita de Jerry Marotta, o então baterista de Peter Gabriel. Curiosamente, esse facto acabou por passar despercebido na comunicação social portuguesa, mais preocupada em elevar até aos píncaros os rebentos do nosso primeiro «boom» rock em massa. O espectáculo total dos Tantra Em Portugal, nos anos subsequentes ao pós-25 de Abril de 74, o rock registou um forte acréscimo na politização das suas letras, fruto dos tempos revolucionários que se viviam. Ao mesmo tempo, a música popular portuguesa assumiu-se como principal centro de atracção artística, o que criou um certo vazio na nossa produção rock. Dois anos depois, Manuel Cardoso, um apaixonado confesso de grupos como Genesis, Pink Floyd ou Yes, fundou os Tantra e abanou por completo o conceito de espectáculo praticado nos nossos palcos. Ao seu lado estavam Armando Gama (piano), Américo Luis (baixo) e Raul Rosa (bateria), o núcleo duro de uma banda histórica, mais pelo impacte suscitado pela sua atitude estética, do que propriamente pelo património musical que deixaram. Um aspecto importante dos Tantra residia na forte componente espiritual do grupo, em especial do próprio Manuel Cardoso, um seguidor do guru Maharaj Ji. um mestre incontestado para muitos dos nossos rockers desse período. No sentido de esquecer um passado atribulado, marcado pelo envolvimento com estupefacientes, Cardoso dedica-se de alma e coração aos Tantra. Adoptando a máscara pontiaguda de uma figura retirada da Trilogia "O Senhor dos Anéis", de Tolkien, resolve montar o espectáculo total, numa planificação multimédia inovadora até à época em Portugal, cruzando a música com encenações teatrais bizarras, numa montra fortíssima de luzes e fumos. Na sua obra discográfica destacamos trabalhos como «Mistérios e Maravilhas», «Holocausto» e «Humanoid Flesh», numa obra que se iria prolongar mais tarde com o projecto Frodo, um novo alter-ego de Manuel Cardoso. Durante a segunda metade da década, um outro grupo despontou com uma forte apetência para agitar o panorama nacional, os Perspectiva, nascidos no Barreiro, com um vincado pendor lírico proletário. Na sua formação despontava o nome de Tó Pinheiro da Silva, um músico que se iria revelar vital para a música dos nossos anos 80. Multi-instrumentista e químico de profissão, Tó Pinheiro da Silva trouxe ao nosso rock a sua primeira identidade urbana, fruto dessa vivência industrial na cintura metropolitana de Lisboa, deixando trabalhos como: os singles «Lá Fora a Cidade» e «Rei Posto Rei Morto», e o álbum «A Quinta Parte do Mundo», cujo pressuposto inicial consistia na edição de um trabalho conceptual, só abandonado devido ao elevado custo da produção implicada para o efeito. De qualquer modo, trata-se de um grupo que marcou a actividade rock do «outro lado da margem» com resultados visíveis nas gerações que se seguiram. O Punk chega até nós Com o surgimento entre nós dos primeiros projectos punk, pode falar-se, pela primeira vez, nas raízes reais da música moderna portuguesa. Dois grupos destacaram-se nessa batalha travada num autêntico deserto de atenções públicas: os Faíscas e os Aqui D 'EI Rock. Tratava-se de dois projectos germinados a partir da adesão dos seus membros ao movimento punk entretanto deflagrado no Reino Unido que, de repente, via as suas cidades industriais invadidas por camadas crescentes de jovens descontentes com a grave crise social que afectava a política britânica. Para a história, guardaram-se nomes como Sex Pistols, The Clash, Generation X ou X-Ray Spex. As suas estruturas musicais assentavam em melodias simples, constituídas por três acordes e vocalizações agressivas. A sua estética constituiu igualmente um factor polémico, feita à base de gangas rasgadas, blusões de cabedal, botas militares, adereços como alfinetes de bebé espetados no corpo e cortes de cabelo multi-colores, com feitios extremamente bizarros. A claustrofobia social das grandes cidades britânicas acabava de criar, assim, uma das gerações mais emblemáticas na luta do rock contra todos os sistemas por excelência. Isto é, mais do que uma causa musical, o punk apresentou-se como uma bofetada política, arrastando consigo todos os rebeldes e descontentes, sem excepção. Em Portugal, e especificamente em Lisboa, os seus ecos foram sentidos nos já referidos grupos, apesar de, esteticamente, nunca terem atingido os extremos tocados pelos Sex Pistols ou X-Ray Spex. No entanto, o seu aparecimento no circuito musical nacional não é espontâneo, tendo um homem sido o responsável pelo seu apadrinhamento: António Sérgio e o seu programa "Rotação", da Rádio Renascença. Inclusive, António Sérgio foi mais longe e lançou o primeiro «álbum pirata» de edição portuguesa pela Pirate Dream Records, uma editora igualmente ilegal. Nessa complicação - «Punk Rock 77» - encontram-se bandas como os Motorhead, Sex Pistols, The Jam, Generation X ou London. Quanto aos Faíscas e Aqui D 'El Rock, a sua origem deve-se a razões algo distintas, não obstante a mesma paixão nutrida pelo estilo musical em questão. Os Aqui D 'E I Rock - Óscar (voz), Alfredo (guitarra), Femando (baixo) e Serra (bateria) - chamavam-se inicial mente Osíris (um grupo certinho com um visual limpo), mas a sua proveniência de classes sociais baixas muito cedo os conduziu a uma linguagem musical mais contestária, em especial através das suas letras, apologistas da violência física declarada. Instrumentalmente, atingiram um nível razoável e, através dessa habilidade, conseguiram a edição, em 78, de dois singles pela Metro-Som, «Há Que Violentar o Sistema» e «Eu Não Sei». Algum tempo mais tarde e depois da explosão do ska, uma derivação europeia do reggae com contornos punk, o grupo inflecte para esta nova onda, acabando por mudar o seu nome para Mau Mau, sigla com a qual ainda lançam um single, «Xangai». Abram-se as portas, chegou a Música Moderna Um outro percurso seguiram os Faíscas. A sua ascendência social razoável foi encarada como razão justificadora pelo facto do grupo nunca ter atingido um ponto de rebeldia lírica radical, preferindo dedicar-se à exploração intrínseca das regras musicais do punk. Em primeiro lugar, cantavam em inglês e, depois, apostavam mais na estética do que na mensagem propriamente dita. Sem nunca terem chegado a gravar nenhum disco, o grupo dissolveu-se, dando origem aos Corpo Diplomático, uma das referências mais essenciais do rock praticado em Portugal. Da sua formação faziam parte músicos como Pedro Paulo Gonçalves (guitarra). Pedro Ayres Magalhães (baixo), Carlos Maria Trindade (teclas) ou Emanuel Ramalho (bateria). Influenciados directamente pelo cruzamento entre o punk britânico e a new wave americana (Devo, Blondie, Television ou Ramones), Os Corpo Diplomático editam, em 79, «Música Moderna», considerado o primeiro registo oficial da terceira idade do rock em Portugal, que se estende até aos dias de hoje. Apesar do álbum ter apresentado notórias falhas técnicas, em especial no capítulo vocal, tratou-se de um passo em frente no quebrar do receio dos nossos rockers em avançar para além do rock sinfónico ou progressivo. Contudo, Luís Filipe de Barros, responsável pelo programa "Rock Em Stock", da Rádio Comercial, argumentou que o disco era tecnicamente sofrível e colocou-o na prateleira, evitando assim que atingisse um outro impacte, garantido à partida caso o apoiasse, dado que o seu programa gozava de uma audiência de culto e, como tal, directamente susceptível às suas opiniões e critérios. No entanto, o fecho final da década de 70, pertenceu a um recém-formado grupo de Almada, os UHF, composto por António Manuel Ribeiro (voz), Renato Gomes (guitarra), Américo Manuel (baixo) e Carlos Peres (bateria). O single «Jorge Morreu», dedicado à morte trágica de um amigo da banda, abria novos caminhos editoriais para o nosso rock, culminando na explosão maciça que iria varrer os primeiros anos da década de 80. Depois dos Sheiks e dos primeiros trabalhos do Quarteto 1111 nos anos 60. Portugal voltava a abrir os braços ao rock, promovendo-o a linguagem favorita dos seus adolescentes, indiferentemente da idade, estrato social ou consciência política.

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