quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Tim Bernardes – Mil Coisas Invisíveis (2022)


 

Ao fim de cinco anos, Tim Bernardes decidiu recomeçar mais uma vez. O recente Mil Coisas Invisíveis traz-nos de volta uma das melhores vozes da atual música popular brasileira.

Já serão poucos aqueles que ainda vão tendo reticências em relação a Tim Bernardes e ao seu fôlego artístico. Na verdade, o seu talento parece não dar mostras de se aquietar. Que bom! Em nome próprio, e apenas com dois álbuns em carteira, o músico paulista é já um nome seguro da nova música popular brasileira. Antes (e entretanto), era a sua banda que servia para ir apurando composições, arranjos, formas de se definir no universo da música. Os Terno terão sido um ótimo balão de ensaio, mas o que cresceu Tim Bernardes desde Recomeçar (2017) é digno de registo e espanto. Façamos, então, nota de ambas as coisas.

Tim Bernardes vem ganhando o seu espaço no mundo, até porque pertence à geração que entende o planeta como se ele fosse a sua própria casa, dando a sensação de, ao mesmo tempo, nunca sair do seu próprio quarto, mostrando-se timidamente à vontade em qualquer geografia. Um Xavier de Maistre moderno, pois então. E assim sendo, não deixa de viajar pelos mais nobres sentimentos humanos, pelos equívocos existenciais mais prementes, por paixões, amizades, por pequenas vitórias e descomunais perdas. A dor que sente parece ser a dor do mundo, do seu e do nosso. Parece ser uma voz que revela um novelo de sentimentos enrolado para dentro. Mas, mesmo assim, também há espaço, na sua música, para mostrar que tem o passado musical do seu país muito bem digerido. Com os pés bem firmes no chão, com a voz e com os versos bem requintados, Tim Bernardes apresenta-nos Mil Coisas Invisíveis, que afinal, convenhamos, são as suas coisas de sempre, as do dia-a-dia, embora com o esmero de quem sabe bem o que faz, e se aprimorou ao fazê-las.

moda recente tem particularidades curiosas. Numa época como a que vivemos, em que a pressa é invisivelmente inimiga de tudo e de todos, a tendência é a de se ir publicando canções (por vezes mais de metade das que o álbum contém), dando-nos conta do que aí vem. A quarta (!) e última das canções previamente apresentadas dá pelo nome de “Última Vez”, uma das mais belas das quinze composições do disco. Nela ouvimos ecos de “Saudosismo” (“É que eu e você, nós dois, já temos um passado”) e de “Ele Me Deu Um Beijo Na Boca” (“E como a letra do som que tocava a gente riu, e riu e ria”), ambas de Caetano, embora a primeira tenha surgido no disco inaugural a solo de Gal Costa, em 1969, e a segunda pela voz do mestre baiano em Cores, Nomes, década e meia depois. Como se vê, o ouvido de Tim Bernardes sabe escutar o passado para tornar melhor o presente da sua arte de compositor e intérprete. O tema é narrativo, longo, revelador do encontro de amantes que há muito não se viam. Por ele circulam ainda a “beatlemania, o indie, Os Mutantes” e tantas outras coisas como aquelas que o tempo obrigou a passar.

Mas Mil Coisas Invisíveis tem muito por onde se escolher. “Meus 26” é outro tema maravilhoso, catártico, confirmador da boa arte de citar situações, momentos, canções, pedaços da vida de quem, cantando, nos comove. Claro que “o Rio de Janeiro continua lindo”, sobretudo numa cabeça que “quer ser tudo de uma vez”. É que, como dizem os versos cantados, “o mundo tem mil coisas invisíveis” e nada é apenas o que parece. Temos de estar atentos às palavras. A poética de Tim Bernardes merece o mesmo foco que lhe damos à música.

O que apetece dizer é que quem muito ouve, muito terá para dizer. É provável que a frase faça, no seu todo, algum sentido. Em Tim Bernardes, não há dúvidas que faz. Em “Mistificar”, por exemplo, o paulistano diz (cantando, pois claro) que “A visão vai revelar / O que pode ser visto / Pra além do que está lá / Eu acredito em Beatles / Eu quero acreditar”.

Outros bons exemplos percorrem este Mil Coisas Invisíveis, exemplos, todos eles, de que Tim Bernardes tem estudado bem as lições que a história da música lhe foi dando. Depois, depois cabe ao artista baralhar e dar de novo, misturando ingredientes pessoais à geleia geral do passado. E assim, tudo é tão antigo que parece novo. Ou, se quiserem girar os planos, tudo é tão moderno que parece clássico. Tim Bernardes entende isto como ninguém. E, como se não bastasse, junta-lhe arte, que é coisa que vai faltando em muita da música popular que se vai fazendo no país irmão.

Nota final: não deixa de ser verdade que há uma linha melódica mais ou menos comum em muitas das quinze faixas de Mil Coisas Invisíveis. É também verdade que em Tim Bernardes a forma de cantar e de entoar os versos revelam traços de alguma constância, parecendo, por vezes, que já ouvimos antes o que estamos a ouvir agora. Os arranjos também nos levam a poder pensar assim. Sim, pode ser que sim, talvez seja mesmo assim. Mas o que importa isso? É o seu jeito, é a sua essência particular que se nota bem num disco muito fechado, tímido, parco em diversidade. Se entenderem todas estas características como coisas menos positivas, estarão no vosso direito, seguramente. Só que nós, por outro lado, entendemos que Mil Coisas Invisíveis é já um dos grandes discos de 2022!


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Ron Grainer / Delia Derbyshire “Doctor Who” (1973)

  Composto pelo australiano Ron Grainer e interptetado pela pioneira da música eletrónica Delia Derbyshire, no BBC Radiophonic Workshop, o t...