quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Aldous Harding – Warm Chris (2022)


 

O quarto disco de Aldous Harding, Warm Chris, é uma obra-prima do folk esquisito. A nossa neozelandeza favorita não tem uma voz bonita: tem mil vozes bonitas, mil personagens.

Os dois primeiros discos de Aldous Harding são de uma austeridade espartana, quase sem percussão, de travo trovadoresco na homónima estreia, e de sabor gótico em Party. O terceiro álbum, Designer, muito inspirado na folk pós-psicadélica do início dos anos 70, é mais acessível, não só pela sua secção rítmica groovy, como pelas melodias mais orelhudas. O novo álbum, o também setenteiro Warm Chris, é melódico e sincopado (q.b.) como Designer, mas com um pouco mais de silêncio e souplesse, exigindo orelhas mais atentas. Esforço recompensador pois o disco cresce a cada audição, no fermento da sua delicadeza criativa.

A sua imagem de marca – a absurda elasticidade vocal – está mais apurada do que nunca. Aldous não canta, representa, dando vida a uma miríade de personagens que habitam na sua fértil imaginação, cada uma com o seu timbre, o seu sotaque, a sua entoação. Não é só de tema para tema que esses “heterónimos” vão aparecendo, eles assomam dentro da mesma canção, num diálogo tão delicioso como demente. Aldous é tudo o que quer ser: menina-fada petulante, matriarca do sul profundo, moça indolente e bocejante… Neste jogo de máscaras convoca também alguns dos seus heróis (Neil Young, Nick Drake, Lou Reed, Vashti Bunyan…), brincando com o seu fraseado. Qual Whitman – ou Pessoa – de saias, Harding gosta de ser múltipla como o universo, fracturando a sua identidade em mil vozes contraditórias. Está, portanto, nas antípodas do cantautor confessional (à Cohen e Mitchell), prisioneiro da verdade (bah!), refém da biografia (seca!), escravo do absolutista eu (tédio!). Livre, portanto, para fingir. Mesmo aquilo que realmente se é…

À semelhança do Bowie glam dos seventies (uma referência não assumida mas incontornável), a fragmentação de Harding em mil alter-egos não implica uma pulverização em mil estéticas. Pelo contrário, a música de Warm Chris é surpreendentemente harmoniosa, recusando a pós-modernice do vale tudo, da manta de retalhos. A culpa é do mago John Parish, com a sua produção orgânica e sóbria, com soluções sempre elegantes e originais.

Onde a guitarra dominava Designer, agora é o piano que está no centro, sempre simples e aconchegante, como simples e aconchegantes são os demais timbres: uma trompa aqui, um saxofone barítono ali, uma guitarra eléctrica acolá. Se a maior parte dos temas têm um balanço quase dançável, três não têm (ou quase não têm) percussão, tocadas como se estivessem a ser escritas naquele momento, os dedos tacteando à procura do acorde seguinte, deixando o silêncio entrar. Gostamos da sua estética do inacabado, esboços imperfeitos transformados em obra definitiva.

Um disco mágico e leve, excêntrico mas acolhedor, onde nos gostamos de perder. Aldous Harding, portanto.


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