Bala Desejo é coisa boa, música que faz pensar na MPB dos anos 70, junção milagrosa de Caetano, Rita Lee, Ben e Novos Baianos nos sons e nas vozes de Julia, Dora, Zé e Lucas. Um pequeno milagre musical!
Julia, Dora, Zé e Lucas são músicos e amigos. A pandemia juntou-os e os quatro resolveram abrir caminhos sonoros que cruzam épocas e estilos. Sim Sim Sim é o título do álbum que construíram em muito boa hora, sobretudo porque, por vezes, recuar algumas décadas pode ser o melhor passo em frente. Tratando-se de Música Popular Brasileira, então é mesmo certo o que afirmamos. Assim, quatro jovens adultos quiseram brincar aos clássicos (a palavra pode parecer extrema, e talvez seja, mas é a que apetece usar neste contexto) e dividiram o trabalho em dois lados, como no tempo áureo do vinil, criando um Lado A e um Lado B, embora sem materialidade física, transportando o conceito para as plataformas digitais. Formalismos à parte, a verdade é que Julia Mestre, Dora Morelenbaum (filha do incontornável Jaques Morelenbaum), Zé Ibarra e Lucas Nunes (ambos membros da Banda Dônica, sendo que Lucas é um dos nomes mais salientes por detrás de Meu Coco, último disco de originais de Caetano veloso) souberam edificar uma obra sólida, toda ela construída como se soasse tão espontânea quanto possível. Deve ter dado muito trabalho, mas também um enorme prazer. Se esse agradável sentimento tiver sido equivalente ao que temos quando ouvimos o disco, então os quatro meninos ter-se-ão deleitado profundamente. Ouvir Sim Sim Sim é estar afirmativamente de acordo com o título escolhido. Meneando a cabeça e tudo. Melhor experiência é difícil, sobretudo porque nos faz transportar para tempos onde a música feita no país irmão era irreal, de tão pródiga e de tão boa.
Os bons alunos são sempre aqueles que sabem incorporar os mestres nos seus discursos e nas suas obras. São os que sabem digerir os seus legados, os seus modelos, tornando-os intrinsecamente seus, sem que haja perda da individualidade artística de quem recria. Por isso, ecos de Caetano Veloso e do Tropicalismo, de Rita Lee, de Jorge Ben, de Gil, Gal, de Milton Nascimento, de toda a miríade conhecida dos maiores astros da émepêbê habitam em Sim Sim Sim. Todas essas referências estão extraordinariamente bem tratadas e incorporadas no trabalho dos quatro músicos, o que acrescenta um particular encanto à audição do disco. O que parece claro (mas isto é apenas uma convicção e nada mais) é que estes músicos são o que são porque as obras dos astros referidos os foi juntando. Serão músicos e bons amigos por via delas. Fazem música porque elas existem.
A introdução do álbum, espécie de vinheta iniciadora do Lado A (lançado nas plataformas digitais a 27 de janeiro) que dá pelo nome de “Embala Pra Viagem”, não é uma canção, antes um mote para o caminho percorrido metaforicamente através da Kombi (nome bem antigo de um modelo da Volkswagen cultuado no Brasil) Bala Desejo. Assim, todo o trabalho é um percurso sonoro, uma viagem de amigos por sons presentes, com ecos do passado, mas rumando a um qualquer futuro que adivinhamos festivo e promissor. “Baile de Máscaras (Recarnaval)” dá início a essa festa, que assim segue repleta de boa onda rítmica, “tão vestida quanto nua”, “num desbunde geral”. Já “Lua Comanche” é totalmente anos 70, lembrando as festas imensas de discos como Solta o Pavão (1975), A Banda do Zé Pretinho (1978) ou Salve Simpatia (1979), do enorme Jorge Ben. Sem que haja necessidade de deambularmos por todas as faixas dos dois lados de Sim Sim Sim, façamos as devidas vénias às já mencionadas, assim como a “Dourado Dourado” (aqui o aroma recorda, por exemplo, os Novos Baianos), “Nesse Sofá” (que bem poderia fazer parte de Qualquer Coisa, do mestre maior Caetano Veloso), mas também é bom não esquecer outras ainda como “Lambe Lambe”, que é Rita Lee revisitada em pleno, embora nos pareça igualmente ser uma homenagem a tanta “gente astral” através de expressões como “transa”, “parabolicamará” e “araçá”. Parece óbvia a mensagem, certo? Para os bons entendedores, pensamos nós, é terreno fértil e seguro.
O disco termina com uma das suas melhores canções, “Cronofagia (O Peixe)”, serena mas inquietante, com versos inspirados como “o tempo tem a fome do tempo”, que remete para o Movimento Antropofágico, de Oswald de Andrade (1928), recuperado em termos metafóricos pelos tropicalistas como atitude estética de assimilação cultural, tanto de valores estrangeiros assim como nacionais, quase suprimidos pelo processo da colonização a que o Brasil foi sujeito. Por tudo isso, parece-nos significativo que “Cronofagia (O Peixe)” tivesse sido escolhida para fechar o álbum, uma vez que sintetiza perfeitamente o seu conteúdo e o seu imaginário. É um disco antropofágico, portanto, no sentido de nele se absorver e digerir algum do passado da Música Popular Brasileira. Quem sabe se alguma ponta de futuro não começa aqui? Para nós, tal o grande contentamento ao ouvir o álbum, a resposta será sim. Três vezes Sim!
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