quarta-feira, 12 de outubro de 2022

POEMAS CANTADOS DE SÉRGIO GODINHO

Fotos do Fogo

Sérgio Godinho

 

Chega-te a mim

mais perto da lareira

vou-te contar

a história verdadeira


A guerra deu na tv

foi na retrospectiva

corpo dormente em carne viva

revi p´ra mim o cheio aceso

dos sítios tão remotos

e do corpo ileso

vou-te mostrar as fotos

olha o meu corpo ileso


Olha esta foto, eu aqui

era novo e inocente

"às suas ordens, meu tenente!"

E assim me vi no breu do mato

altivo e folgazão

ou para ser mais exacto

saudoso de outro chão

não se vê no retrato


Chega-te a mim

mais perto da lareira

vou-te contar

a história verdadeira


Nesta outra foto, é manhã

olha o nosso sorriso

noite acabou sem ser preciso

sair dos sonhos de outras camas

para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas

estás são e salvo e logo

"viver é bom", proclamas


Eu nesta, não fiquei bem

estou a olhar para o lado

tinham-me dito: eh soldado!

É dia de incendiar aldeias

baralha e volta a dar

o que tiveres de ideias

e tudo o que arder, queimar! no fogo assim te estreias


Chega-te a mim

mais perto da lareira

vou-te contar

a história verdadeira


Nesta outra foto, não vou

dar descanso aos teus olhos

não se distinguem os detalhes

mas nota o meu olhar, cintila

atrás da cor do sangue

vou seguindo em fila

e atrás da cor do sangue

soldado não vacila


O meu baptismo de fogo

não se vê nestas fotos

tudo tremeu e os terremotos

costumam desfocar as formas

matamos, chacinamos

violamos, oh, mas

será que não violamos

as ordens e as normas?


Chega-te a mim

mais perto da lareira

vou-te contar

a história verdadeira


Álbum das fotos fechado

volto a ser quem não era

como a memória, a primavera

rebenta em flores impensadas

num livro as amassamos

logo após cortadas

já foi há muitos anos

e ainda as mãos geladas


Chega-te a mim

mais perto da lareira

vou-te contar

a história verdadeira

quando a recordo

sei que quase logo acordo

a morte dorme parada

nesta morada 


Grão da Mesma Mó

Sérgio Godinho


Não sei se estão a ver aqueles dias

Em que não acontece nada sem ser o que aconteceu e o que não aconteceu

E do nada há uma luz que se acende

Não se sabe se vem de fora ou se vem de dentro

Apareceu


E dentro da porção da tua vida, é a ti

Que cabe o não trocar nenhum futuro pelo presente

O fazer face a face que se teve até ali

Ausente, presente


Vê lá o que fazes, há tanto a fazer

Fazes que fazes ou pões sementes a crescer?

Precisas de água

Terra também

Ventos cruzados e o sol e a chuva que os detém

Vivida a planta

Refeita a casa

É o espaço em branco

Tempo de o escrever e abrir asa

E a linha funda, na palma da mão

Desenha o tempo então

Desenha o tempo então


Mas há linhas de água que cruzas sem sequer notares

E oh, estás no deserto

E talvez no oásis, se o olhares

E não há mal, e não há bem

Que não te venha incomodar

Vale esse valor?

É para vender ou comprar?


Mas hoje questões éticas?

Agora?

Por favor

Que te iam prescrever

A tal receita para a dor

Vais ter que reciclar

O muito frio e o muito quente

Ausente

Presente


Vê lá o que fazes, há tanto a fazer

Fazes que fazes

Ou pões sementes a crescer?

E a linha funda, na palma da mão

Desenha o tempo então

Desenha o tempo então


Um curto espaço de tempo

Vais preenchê-lo

Com o frio da morte morrida

Ou o calor da vida vivida?

Não queiras ser nem um exemplo

Nem um mau exemplo

Por si só

Há dias em que é grão da mesma mó


E a senha já tirada

Já tardia do doente

Dez lugares atrás

E pouco a pouco à frente

E cada um falar-te das histórias da sua vida

Feliz, dorida


Vê lá o que fazes

Há tanto a fazer

Fazes que fazes

Ou pões sementes a crescer?

Precisas de água

Terra também

Ventos cruzados

E o sol e a chuva que os detém

Vivida a planta

Refeita a casa

E espaço em branco

Tempo de o escrever e abrir asa

E a linha funda, na palma da mão

Desenha o tempo então

Desenha o tempo então


E explicaram-te em botânica

Uma espécie que não muda a flor do fatalismo

Está feito

E se até dá jeito alterar

Só por hoje o amanhã

Melhor é transfigurar o amanhã com todo o hoje

E as palavras tornam-se esparsas

Assumes

Fazes que disfarças

Escolhes paixões

Ciúmes

Tragédias e farsas

E faças o que faças

Por vales e cumes

Encontras-te a sós, só

Grão a grão

Acompanhado e só

Grão da mesma mó

Grão da mesma mó

Grão da mesma mó

Grão da mesma mó

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