O vinil e o samba! Um fragmento do texto de Eduardo Vicente
"Quem não gosta do samba bom sujeito não é Ou é ruim da cabeça ou doente do pé" (Samba da Minha Terra - Dorival Caymmi)
O UV optou neste domingo de carnaval colocar um subcapítulo da tese de doutorado de Eduardo Vicente que fala justamente sobre samba no período áureo do vinil (Música e Disco no Brasil: A trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90. USP, março de 2002. Clique aqui para ler a tese inteira).
Escrever algo mais rico que o texto de Eduardo Vicente é difícil. Este autor mostra com grande conhecimento a relação do samba, os artistas e a indústria fonográfica, nos fazendo entender mais a grande popularidade dos LPs de sambas-enredos, o “surgimento” do pagode, os(as) grandes sambistas e outras questões relacionadas ao tema.
Carnaval lembra samba e se é para falar de samba e vinil, nada melhor que as linhas abaixo. Aproveite! O texto é muito recheado de informações!
Eis o excerto de Eduardo Vicente:
Samba:
A relação do samba com o grande mercado fonográfico tem sido marcada por constantes idas e vindas, correspondendo normalmente ao predomínio de diferentes tendências. Eu identificaria, no momento inicial da pesquisa, a preponderância de uma tendência mais ligada ao samba-canção e à MPB, ocupada por nomes menos identificados com os morros cariocas (ou mesmo com o Rio de Janeiro) e, via de regra, próximos do samba-canção e da MPB. Entre 1965 e 1967, período de seu predomínio, essa tendência inclui nomes como Demônios da Garoa, Dalva de Oliveira, Jair Rodrigues (em álbuns solo ou ao lado de Elis Regina), Elza Soares, Carmem Silva, Elizete Cardoso, Sílvio Caldas, Ângela Maria, etc. Zé Kéti (Máscara Negra, Odeon, 1967, 16o lugar), que também incluo no grupo, surge para mim como uma exceção que confirma a regra em virtude de sua proximidade da vanguarda da MPB no período (principalmente através de suas participações no espetáculo Opinião). Já uma segunda tendência que me parece digna de menção aqui é a do samba de vocação mais pop e urbana, do qual Wilson Simonal parece ter sido o pioneiro. Seus LPs, bem como os da “Turma da Pilantragem”, tiveram significativas participações nas listagens entre os anos de 1965 e 1970. Será também em 1970 que nelas surgirá, pela primeira vez, o nome de Jorge Ben (Jorge Ben, RGE, 1978), cuja originalidade influenciará gerações de artistas ligados aos mais diversos segmentos da música nacional. Além dele, acredito que possam ser citados como ligados a essa tendência também os nomes de Bebeto e Dhema, que obterão grande sucesso com seu “samba suingado” nos anos 80 e 90, respectivamente.
Como uma terceira tendência eu destacaria o pagode, com sua longa história dentro do cenário fonográfico nacional. O termo “pagode” não se refere, a princípio, a um gênero ou estilo musical específico e sim a uma festa, uma reunião envolvendo comida, bebida e, é claro, música. Porém, pode-se considerar que o pagode acabou por se constituir num estilo particular de samba inclusive, como veremos, com o desenvolvimento de um acompanhamento instrumental específico. A partir do final dos anos 60, a quadra do bloco Cacique de Ramos, no bairro de Ramos (subúrbio do Rio) foi, sem dúvida, o grande centro irradiador do pagode. Aliás, a primeira menção nas listagens ao pagode é justamente através de um LP do bloco Cacique de Ramos (Água na Boca, 34o, 1965, RCA). A importância do Cacique, no entanto, vai muito além desse trabalho, pois será de seus quadros que, como se verá, surgirão alguns dos nomes mais importantes do segmento. Entendo que o primeiro grande período de florescimento do pagode se dará a partir do final dos anos 60, quando são registradas as primeiras menções na listagem a nomes como Beth Carvalho (Odeon, 1968), Martinho da Vila (RCA, 1968) e Originais do Samba (RCA, 1972), entre outros. A partir de 1981, e após a grande crise do final da década, uma nova leva de pagodeiros começa aos poucos a chegar às paradas, levando à grande explosão do pagode ocorrida em 1986. Faziam parte desse grupo de artistas nomes como Almir Guinéto, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Jorge Aragão e Jovelina Pérola Negra. Dentre os nomes ligados ao pagode até aqui citados, a importância do Cacique de Ramos fica patente: Almir Guinéto, que pertenceu aos Originais do Samba, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e o grupo Fundo de Quintal saíram de lá. Já Beth Carvalho tornou-se grande divulgadora dos instrumentistas e compositores do bloco após participar, em 1978, de uma de suas reuniões. Nos grupos Originais do Samba e Fundo de Quintal acabaram, ainda, surgindo as principais inovações musicais que passaram a caracterizar o acompanhamento do pagode, como o uso do banjo em lugar do cavaco, do tantã em lugar do surdo e do repique de mão.
Não teria sentido, no entanto, separar o pagode de todo o processo de revigoramento do samba que tem lugar principalmente nos anos 70, com um considerável crescimento da importância dos seus compositores e das próprias escolas. No período, um grupo formado por compositores e intérpretes – predominantemente negros, oriundos dos morros, periferias e escolas de samba carioca (ou mesmo paulistanas) – passa a tomar espaço crescente nas listagens do Nopem*. Nesse contexto mais amplo, surgem as primeiras citações na parada a nomes como Clara Nunes (Odeon, 1968), Paulinho da Viola (Odeon, 1970), Adaílton Alves (Copacabana, 1972), Marinho da Muda (Copacabana, 1973), Agepê (Continental, 1975), Gilson de Souza (Tapecar, 1975), Alcione (Philips, 1976), Ruy Maurity (Som Livre, 1976), Eliana Pitman (RCA, 1976), Ataulfo Jr (RCA, 1976), João Nogueira (Odeon, 1976), Dicró (Continental, 1977), Roberto Ribeiro (Odeon, 1977) e Bezerra da Silva (CID, 1979), entre muitos outros.
Também merece destaque o grande sucesso que começa a ser obtido pelos sambas-enredo das escolas. Segundo Sérgio Cabral, esse tipo de música “que até então desaparecia de cena assim que acabava o carnaval”, passa a despertar maior interesse das gravadoras a partir do sucesso de Eliana Pitman, com a gravação de O Mundo Encantado de Monteiro Lobato (Estação Primeira de Mangueira), e de Zuzuca que “transformou em êxitos carnavalescos os seus sambas-enredo Pega no Ganzé e Tengo- Tengo (Acadêmicos do Salgueiro, 1971 e 1972)”. O primeiro disco de sambas- enredo a constar na listagem é de 1970, foi lançado pelo selo Caravelle e alcançou o 20o lugar na parada. A partir de 1974, no entanto, o LP “Sambas Enredo do Grupo I” passa a ser lançado anualmente pela Top-Tape.
É claro que tanto sucesso dá margem também a entrada no segmento de artistas que enxergam aí oportunidades de projeção, como Luiz Airão (Odeon) e Benito de Paula (Copacabana), por exemplo, que tinham anteriormente tentado o sucesso com a jovem guarda e o bolero, respectivamente, ou ainda a evidente diluição que pode ser encontrada em trabalhos como os de Wando (com primeira citação em 1976, pela gravadora Beverly) e Antonio Carlos & Jocafi (1971, RCA), entre muitos outros. Mesmo assim, acho problemática a adjetivação pejorativa “sambão-jóia” que é usada com certa frequência para descrever a produção musical do período, já que acaba por associar todo o processo de fortalecimento do samba negro, do morro, que então se verifica à diluição de certas produções – não me parecendo, por isso, isenta de um certo preconceito cultural e mesmo ideológico.
Já em relação ao cenário mais geral do samba nos anos 80, pode-se dizer que todo o grande sucesso alcançado foi muito mais importante no sentido da consolidação das carreiras de artistas já estabelecidos no mercado do que para o surgimento de novos valores. Além dos nomes já citados de Almir Guinéto (1981, K-Tel) e Zeca Pagodinho (RGE, 1986), mereceram uma primeira menção na listagem do Nopem durante a década apenas Bezerra da Silva (RCA, 1984), Neguinho da Beija-Flor (CBS, 1986), Leci Brandão (Copacabana, 1989) e Elson (RGE, 1989). Mesmo assim, pode-se falar em uma “febre do pagode”, com o estilo chegando às casas noturnas da Zona Sul do Rio, tendo videoclipes divulgados no Fantástico e vendendo 3,5 milhões de discos em 1986. Nesse processo, é preciso destacar também a importância da gravadora nacional RGE (já então associado à Rede Globo), que detinha o contrato dos principais nomes do segmento como Fundo de Quintal, Jorge Aragão, Guinéto, Jovelina e Zeca Pagodinho.
De qualquer modo, a partir de 87 teremos um arrefecimento do interesse das gravadoras pelo samba, havendo inclusive denúncias de discriminação por parte das rádios na veiculação de pagodes. Embora as estatísticas do Nopem não cheguem a apontar para uma queda mais expressiva no número de álbuns de samba nas paradas, indicam uma certa estagnação que só começará a ser superada a partir de 93, quando as indicações sobem para 10 (haviam sido 5 nos dois anos anteriores) e se mantém acima desse patamar por praticamente todo o restante da década. Esse crescimento – ainda mais expressivo se considerarmos que se dá num período de grande expansão da indústria – reflete uma nova “invasão” do pagode, e se traduzirá no ingresso de um grande número de novos grupos no cenário.
Nessa nova fase, o primeiro grupo a obter um indicação na listagem é o Raça (Da África à Sapucaí, 36o lugar, BMG), ainda em 1991. A segunda indicação ocorre no ano seguinte com o Raça Negra (Raça Negra, 33°, RGE). A partir de 93, no entanto, o aparecimento de novos grupos se dará em ritmo muito mais acelerado e surgirão nomes como: Ginga Pura (PolyGram, 1993), Só Pra Contrariar (BMG, 1993), Razão Brasileira (EMI, 1993), Grupo Molejo (Warner/Continental, 1994), Negritude Jr. (EMI, 1994), Art Popular (EMI, 1995), Gera Samba (depois rebatizado É o Tchan do Brasil, Polygram, 1996), Companhia do Pagode (PolyGram, 1996), Grupo ExaltaSamba (EMI, 1997), Grupo Malícia (BMG, 1997), Karametade (BMG, 1997), Soweto (EMI, 1997), Terra Samba (Polygram, 1998), Os Morenos (Universal, 1999) e Kiloucura (BMG, 1999), entre muitos outros. Vale acrescentar que o que ocorre no período não é apenas o crescimento do número de indicações de samba e pagode, mas também da sua importância nas listagens. Entre 1995 e 1997, por exemplo, o segmento registra entre os 10 discos mais vendidos da listagem 4, 6 e 7 títulos, respectivamente!
Esse novo pagode diferencia-se, sob diversos aspectos, daquele desenvolvido nas fases anteriores do segmento. Em primeiro lugar, mostra seu intenso processo de desregionalização, com os grupos cariocas tornando-se minoria num cenário dominado por pagodeiros paulistas (Negritude Jr, Art Popular), baianos (É o Tchan, Companhia do Pagode, Terra Samba) e até mineiros (Só Prá Contrariar). Isso ajuda, no meu entender, a mostrar que o que hoje é convencionalmente definido como pagode tornou-se, assim como a música sertaneja, uma espécie de pattern de produção, com características bastante definidas, que permite não só a atuação de músicos e produtores de diferentes formações, como a transformação de praticamente qualquer música em “pagode”. Em segundo lugar, tenta evidenciar nos nomes e discursos das bandas identificações étnicas e locais que a padronização das produções evidentemente nega. Assim, além das evidentes referências raciais contidas nos nomes dos grupos temos, por parte dos mesmos, várias iniciativas de apoio ou identificação às periferias pobres de onde vieram, destacando-se entre elas o slogan e a campanha assistencial “100% Cohab” do Negritude Jr.
Esse tipo de referência, no entanto, não encontra eco na produção musical efetivamente desenvolvida que, além de incorporar elementos musicais tradicionalmente estranhos ao segmento, como teclados e contra-baixos elétricos, é em boa medida dedicada aos temas românticos e às referências sexuais de duplo sentido (além de contar, especialmente no caso dos grupos baianos, também com dançarinas). Também os discursos e a postura dos integrantes dos grupos tendem a distanciar-se desses apelos a raça e local. Ao falar das razões do sucesso do pagode nessa sua nova versão, Marley, integrante do Grupo Raça, afirma que “depois que os sambistas procuraram se profissionalizar, falar direito e mostrar que samba não é sinônimo de miséria, o ritmo decolou e conquistou a maioria da população”. Nessa mesma linha, Netinho, vocalista do Negritude Jr., afirma que “seu grupo faz sucesso porque apresenta um suingue extra, novos instrumentos e, acima de tudo, uma postura muito profissional, com a preocupação de que samba também é show”.
*Nopem: lista relativa aos 50 discos mais vendidos anualmente no eixo Rio-São Paulo entre o período 1965 a 1999
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