domingo, 20 de novembro de 2022

José Afonso – Como se Fora Seu Filho (1983)


 

Como se Fora Seu Filho é um disco triste e alegre. Triste porque Zeca está doente, a voz fraqueja, há a consciência do fim. Alegre porque não se rende, gravando um disco belíssimo, fintando a morte.

Para o ajudar na sua penúltima empreitada José Afonso divide a direcção musical com três velhos cúmplices: Fausto, Júlio Pereira e José Mário Branco. Zeca sempre fora um pouco desconfiado dos instrumentos menos orgânicos mas aqui muda de ideias, incorporando sintetizadores e guitarras eléctricas, quando estes são precisos (José Afonso nunca parou no seu caminho criativo, reinventando-se sempre). À primeira audição, desconfiamos das teclas atmosféricas de “Utopia”, como se fosse um corpo estranho à obra do Zeca. Mas quando percebemos o quanto aquela electrónica nebulosa traduz o éter das próprias palavras tudo, de repente, ganha sentido. Até os mais gélidos microchips podem, afinal, ser afonsinos.

“Utopia” é uma das cinco canções de Como se Fora Seu Filho que nasceram na peça teatral Fernão Mentes?, inspirada na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Havia qualquer coisa na água da companhia de teatro A Barraca: um outro disco imenso – Por Este Rio Acima, de Fausto – surgiu da mesma peça (encenada por Helder Costa e estreada em 1981).

Não será, porém, por acaso que dois dos maiores nomes da música popular portuguesa, engajados à esquerda, se tenham revisto na Peregrinação: nas suas memórias de viagem pelos mares afora Fernão Mendes Pinto apresenta-se como anti-herói, confessando as atrocidades cometidas por si e pelos demais “descobridores”, ao mesmo tempo que olha para o outro (o turco, o malaco, o japonês…) sem qualquer condescendência civilizacional. Mais até do que na outra grande obra literária do século XVI – Os Lusíadas -, Zeca e Fausto encontram na Peregrinação um humanismo e um espírito de crítica social muito consentâneos com os seus próprios ideais. Há até, por vezes, em Fernão Mendes Pinto, uma certa idealização dos povos longínquos e exóticos, como se fossem a aproximação possível à utopia sonhada. Foi essa também a leitura de Zeca para a sua canção “Utopia”: “será que existe / lá para os lados do oriente / este rio, este rumo, esta gaivota”…

Sendo Como se Fora Seu Filho o último álbum concebido integralmente por José Afonso (o agravar da doença já não lhe permite cantar em Galinhas do Mato), é natural interpetrá-lo como um disco-testamento. Já falámos da “Utopia” – “cidade do homem / não do lobo, mas irmão” – mas em “Papuça” também redige o que deixará de herança política, recordando o PREC com carinho: “a multidão na rua / ouve-se a banda tocando o MFA / a revolução é p’ra já”.

Dado o arrojo de algumas canções, surge também a ideia de um testamento estético. O caso mais flagrante é “Canarinho”, provavelmente o tema mais experimental em todo o seu cancioneiro (esquece, “O Avô Cavernoso”, foste!). “Canarinho” é minimalista e hipnótico, repetindo-se obsessivamente, como quem desbasta caminho numa selva, encontrando sempre o mesmo estonteante calor húmido. José Mário Branco foi o responsável pelo original arranjo, trazendo uma miríade de flautas exóticas, mais usadas como ritmo e textura do que como melodia.

Que nos perdoem Fausto e Júlio Pereira – cujo bom gosto na direcção musical é irrepreensível! – mas o outro tema que nos manda ao tapete, “Eu Dizia”, foi também produzido por José Mário Branco. A sua progressão de acordes ao piano – lenta, pungente, arrebatadora – é lindíssima e o contrabaixo jazzístico de Pedro Wallenstein encaixa na perfeição. Foi o último tema que Zeca cantou em estúdio. Já não teve forças para descer até à sala do Angel 1, gravando a sua voz no sofá do hall de entrada. Como seria de esperar, a voz fraqueja, e nem os quilos de reverb conseguem disfarçá-lo. Essa vulnerabilidade – humana, demasiado humana – torna tudo mais comovente. Na sua luta até ao fim, Zeca confirma o que sempre soubemos: a sua dignidade é infindável.


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