Chegado a 1978, Zeca faz o seu disco mais rico e instrumentalmente completo, cheio de África, repleto de protesto mas sem ceder ao facilitismo pós-censura e que espelha desencanto mas sem se deixar vergar.
Ao contrário do que acontece com praticamente todos os discos anteriores, neste álbum não constam nenhuns dos sucessos que fazem parte do imaginário colectivo e que qualquer português sabe cantar de cor. Ainda assim, todas são excelentes canções e contêm tudo o que nos tinha apaixonado em Zeca Afonso até aqui.
A inspiração africana atinge aqui o seu auge – nas melodias, ritmos e palavras – mas sem radicalismo, Zeca não corta o cordão umbilical e mantém sempre pontes com o que fez anteriormente: estão cá as referências medievais, o folclore e as baladas, mas agora tudo mais preenchido. Basta ver a comitiva que o acompanhou na gravação do disco, mais de vinte músicos, onde encontramos gente como Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, Pedro Caldeira Cabral, Carlos Zíngaro, Rão Kyao, Michel Delaporte, entre outros. Fausto, que divide com Zeca a direcção musical, é garante de riqueza nos arranjos, por subtis que sejam.
O núcleo, esse, é o mesmo de sempre, independentemente dos adornos: melodias envolventes e certeiras que nos deixam a trautear o dia inteiro. E a força, a Força maior (e em que o título esconde uma dolorosa previsão) é a Voz. Quando se fala de José Afonso é mais frequente destacar o lado de escriba e compositor, mas não podemos esquecer que Zeca é um intérprete incrível. Chega a este disco aos 49 anos, depois de ter cantado fados de Coimbra, baladas rancheiras, cantes, modas, chulas e corridinhos. Se nos primeiros trabalhos a voz ainda está embebida no cantar das repúblicas e fraternidades, a evolução da voz de Zeca Afonso é notável e, neste disco, está no píncaro da sua versatilidade. Combina a doçura e delicadeza com a firmeza e robustez. Aliás, esta voz é um espantoso mistério, soa frágil mas na verdade é fortíssima. É como a Gioconda, nunca sabemos se está séria ou a sorrir, mas nunca pára de nos fitar.
E é a voz magnética de Zeca que nos suga para dentro das canções, uma voz que enche uma sala e sustenta uma nação. Há disto vários exemplos, a cappella, que ora nos deixam aturdidos ora fazem chorar blocos de ferro. Portanto, se outros méritos não tivesse, a música de José Afonso merecia ser ouvida apenas pela voz do cantor. Mas felizmente há muito mais.
Há a abundância instrumental, que neste disco confere a cada canção uma profundidade em inúmeras camadas, num processo que já lança algumas sementes para aquilo que ouviríamos dali a 4 anos, na obra-prima de Fausto. “Eu, o Povo” caberia perfeitamente em Por Este Rio Acima. “Um homem novo veio da mata” podia fazer parte de Graceland (sim, Paul Simon é aprendiz de Zeca). “Viva o Poder Popular” é para dançar em quadrilha. “Barracas Ocupação” foi escrita para uma peça de teatro e está dividida em 3 sub-canções, entrelaçadas umas nas outras num ritmo teatral e com um bónus delicioso: a terceira parte é cantada por uma criança filho de Zeca, que empresta às palavras do pai uma pureza inigualável. E deixo um desafio, a ver se alguém consegue ouvir “Maravilha, Maravilha” sem chorar. Igualmente tocante, “Está Ali o Rio”, a única do disco que recorre apenas a cordas – vocais e de guitarra. Ilusoriamente despida, “Arcebispíada” é falada qual sermão, mas tem por baixo uma série de sons de chuva africanos. “Tinha uma sala mal iluminada” parece simples com a sua melodia de guitarra e ritmo de baixo eléctrico, mas uma parede de violinos encarrega-se de enriquecer a composição.
E há, como sempre houve, a abastança literária. Quatro anos depois do 25 de Abril, liberto dos grilhões do lápis azul, Zeca já se permite ser mais directo, aqui e ali panfletário, mas resistiu à tentação de se armar em novo-rico gramatical. Apesar de poder usar palavras como facho, reaccionário ou pide, manteve a subtileza da escrita para garantir intemporalidade, em vez de fazer apenas um jornal da época. É certo que em ’78 já não precisa de fintar censores, mas opta por lambuzar-se com parcimónia. Afinal, passou grande parte da carreira literária a tecer hábeis labirintos, não ia agora escancarar as portas ao facilitismo propagandístico. Ainda assim, canta a plenos pulmões coisas como «Colonialismo não passará»; «A fuga era a última cartada / a pide estava ali mesmo defronte» ou «Se o Pinochet concordasse / Já em Fátima haveria / Mais de trinta mil vermelhos / a arder de noite e de dia». Aliás, todo este poema de “Arcebispíada” é recitado num tom jocoso, mas o humor de Zeca também vai aparecendo de formas mais simples, por exemplo na “Acupunctura em Odemira” ficamos a saber que «Ainda bem que há quem viva / em Odeceixe / E se peide à vontade / Na Rua Espinha de Peixe».
Neste disco há ainda espaço para a defesa do associativismo, da libertação dos povos das ex-colónias e até preocupações ecologistas. Tudo embrulhado num pacote de nove canções que, não estando de caras numa compilação de êxitos, são algumas das melhores composições de Zeca Afonso.
Enquanto há Força é um disco de um certo desencanto mas que não se deixa quebrar. Desencanto por ver que as promessas de Abril se estão a esfumar, mas ainda há força para lutar por elas. Preocupação por ver que afinal há mais reaccionários do que se pensava, mas ainda há força para os deter. E a dolorosa ironia do título do disco, sobre a voz de Zeca. Neste disco, as faculdades vocais estão no auge do seu potencial e ele canta-nos com toda a sua força mas – agora sabemos mas na altura ele não sabia – logo no disco seguinte a voz começa a fraquejar.
Não estando entre os álbuns habitualmente mais elogiados de Zeca, Enquanto Há Força é um disco espantoso que mostra a excelência e genialidade enquanto músico, escritor, cantor e cidadão exemplar. E já está na hora de libertar José Afonso das trincheiras ideológicas que encapotam a arte.
Por um lado os reaccionários sempre colaram Zeca ao comunismo e então há muita gente que não conhece a obra, não se permite ouvir as canções, por ridicularias politizantes. Por outro lado, houve uma tentativa de apropriação de Zeca por parte do partido comunista, o que deu alimento à narrativa. Mas José Afonso é maior que isso tudo, está acima dessas rotulagens e é, sem dúvida, um dos maiores símbolos da História de Portugal. Mas sempre houve quem o quisesse colar aos extremos e isso boicotou o caminho que naturalmente levaria Zeca a toda a população, sem quadrantes nem políticas, apenas um dos grandes artistas do nosso país, que merecia ter os seus versos ensinados nas escolas, a sua cara nas notas de escudo, o seu corpo no Panteão nacional. Ele não quereria, decerto, mas seria o preço a pagar pela genialidade.
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