segunda-feira, 21 de novembro de 2022

José Afonso – Fados de Coimbra e Outras Canções (1981)


 

Em Fados de Coimbra e Outras Canções, Zeca Afonso regressa à casa de partida: a Canção Coimbrã.

É bonito quando um círculo se completa: José Afonso começa no fado de Coimbra nos anos 50, reinventa a música tradicional portuguesa “desfadizando-se” e regressa à nascente no comovente Fados de Coimbra e Outras Canções. Nos anos 60, Zeca associara o fado de Coimbra ao regime bolorento de então. Volvidas duas décadas, e tendo tanta água corrido por debaixo da ponte, pode finalmente fazer as pazes com o seu querido fado de Coimbra, que nunca teve qualquer culpa afinal. É o próprio Zeca que reconhece o óbvio: “o fado de Coimbra não é de esquerda, não é de direita, é um património cultural.”

Neste regresso ao passado Zeca revela abertura de espírito. O fado de Coimbra é arte pura, sem qualquer posicionamento sobre a sociedade. A sua estética é romântica, sentimental, repassada de saudade. Muitos artistas engajados à esquerda – e o próprio Zeca sentiu isso nos anos 60 – desconfiam do ascetismo da arte pela arte. Acham uma posição burguesa, reaccionária. Quando Zeca, em 1981, regressa sem pudor ao esteticismo do fado de Coimbra, está a dizer-nos que a arte deve ser inteiramente livre, subjugada apenas e somente ao crivo do belo. É curioso como um homem sempre tão empenhado na luta pela justiça social revela uma concepção tão aberta quanto ao lugar da arte. Mas não há aqui surpresas: na política, e também na estética, Zeca sempre foi um homem da liberdade.

Mas não é só para libertar o fado de Coimbra de qualquer camisa-de-força ideológica que José Afonso grava este disco. Fá-lo também para homenagear o seu mestre Edmundo Bettencourt, a figura mais importante da chamada “geração de oiro”, a dos anos 20. Zeca foi buscar oito dos dez temas do disco ao repertório de Bettencourt, cada um mais belo e triste do que o anterior. A canção popular “Senhora do Almortão” está no lote, assinalando mais uma influência de Bettencourt sobre Afonso: a reinvenção do cancioneiro popular.

A acompanhá-lo tem Octávio Sérgio na guitarra portuguesa e Durval Moreirinhas na viola, cujos bonitos arranjos instrumentais são inspirados nos gizados por Artur Paredes nos anos 20 (sim, o apelido não engana, é o pai de Carlos Paredes). A dupla Bettencourt / Paredes havia sido a ponta da lança da “geração d’oiro”, elevando a composição, interpretação e poesia do fado de Coimbra para um novo patamar de bom gosto e sofisticação.

Para além dos clássicos de Bettencourt, José Afonso revisita a sua “Balada do Outono”, a canção de 1960 onde começa a emancipar-se do fado de Coimbra. Ao incluí-la neste disco, mais do que sublinhar o corte com a Canção Coimbrã, Zeca pretende o contrário: assinalar a sua continuidade, reconhecendo a influência dos mestres do passado.

O disco é dedicado a seu pai e a Edmundo Bettencourt: uma espécie de pai, também, afinal.


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