sábado, 19 de novembro de 2022

José Afonso – Galinhas do Mato (1985)


Como se despede um génio? O derradeiro álbum de José Afonso, Galinhas do Mato, é a resposta bonita à pergunta triste.

Já os vimos sair de rompante deixando saudade. Já os vimos arrastarem-se por anos e anos, desbaratando estatuto e respeito. Já os vimos esmorecer, lentamente, a motivar pena e saudades em antecipação. Zeca Afonso despediu-se em verso, com a sua música, a que partilhava as raízes do cancioneiro tradicional português com os ritmos de África. A que soa a Zeca, mas que não deixa de fazer os outros brilhar.

Se Galinhas do Mato chegou a ser editado, reza a lenda, é a José Mário Branco e Júlio Pereira que o devemos. Em 1985, Zeca já não cantava quando foi ao estúdio assistir às gravações do que seria o seu último disco. Se a música era sua, e os versos também – embora alguns pedidos emprestados às canções tradicionais -, a voz já não estava disponível. Já bem frágil, ouve-se em “Escandinávia Bar – Fuzeta” e “Década de Salomé”, ambas gravadas durante as sessões de Como se Fora Seu Filho.

Zeca foi ao estúdio, participou em quase todas as sessões de gravação nos estúdios Rádio Produções Europa – em que Rui Veloso gravara Ar de Rock e onde mais tarde viriam a nascer os estúdios Angel – mas foi com José Mário Branco e Júlio Pereira que dividiu a direção musical do disco.

José Afonso e Júlio Pereira nos estúdios Angel 1 em Lisboa

O último disco de Zeca começa em África, com “Agora”, uma melodia guardada desde 1968, a que Júlio Pereira aprimorou o som e Luís Represas emprestou voz. Um subliminar recado de quem quis começar o último disco com música a recordar as próprias origens? Talvez.

Segue-se um passeio pelos ingredientes de que Zeca sempre alimentou o génio, do cancioneiro popular às canções políticas. Subtilmente, tragicamente, há mais.

Em “Tu Gitana” – cantada por Helena Vieira – e “Moda do Entrudo” ouvem-se versos populares. E pela voz do próprio Zeca chegam “Escandinávia Bar – Fuzeta”, um elogio ao povo, conquistador de espaço às classes altas; e ainda “Década de Salomé”, sobre a entrada de Portugal na CEE, “autêntica bebedeira poética”, nas palavras de Octávio Fonseca Silva, autor de “Uma Vontade de Música – as Cantigas do Zeca”.

Mais subtil e bem mais triste, Zeca despede-se com a “Alegria da Criação”. Cantada por Janita Salomé, é a canção que fecha o disco. A última que Zeca compôs.

Assim se despede um génio.


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