sexta-feira, 25 de novembro de 2022

José Afonso – Venham Mais Cinco (1973)

 


O disco mais arrojado de Zeca foi o último editado durante a ditadura. Trouxe uma revolução na secção rítmica e aperfeiçoou tudo o que o músico tinha fundado anteriormente. Ao leme esteve José Mário Branco, o mais brilhante dos produtores e arranjadores e que entendia o músico de Aveiro como ninguém.

Em 1973, José Afonso voltou a Paris para gravar um disco com José Mário Branco. O objectivo era repetir o milagre de Cantigas do Maio. E tal como essa obra-prima de 1971, Venham Mais Cinco começa com o imperador Zé Mário atrás da mesa de mistura a dar indicações aos músicos. O que se vai ouvir nas dez canções que sucedem esta interacção entre o produtor, Zeca Afonso e um dos músicos franceses é inovação e genialidade como raramente se houvera visto em Portugal.

A principal ruptura trazida por Venham Mais Cinco está na secção rítmica do disco. Desde 1969, em Contos Velhos, Rumos Novos, que Zeca experimentava com ritmos africanos, registo que aprofundou em Traz Outro Amigo Também e que relegou para segundo plano em Cantigas do Maio, onde ressurgiram os ritmos mais tradicionais portugueses. Mas a inovação rítmica do disco de 1973 deixou para trás tudo o que se tinha feito a esse nível em Portugal. “Rio Largo de Profundis” começa com uma cantiga em ritmo popular, mas passados os primeiros 68 segundos de canção entra um dueto de guitarra e violino, seguido de bombo, baixo, palmas e vida que fazem corar de vergonha até a maravilhosa “Carvalhesa”. A energia do instrumental, a letra, a entrega! Tudo é explosão, tudo é dança, tudo é vida, tudo é perfeição, tudo é Zeca. E tudo isto é apenas o início de Venham Mais Cinco.

Depois da entrada enérgica, Zeca coloca um travão a fundo no disco e lança-se para a profunda “Era um Redondo Vocábulo”, umas das mais icónicas e simbólicas canções do repertório do doutor de Coimbra, com imagens fortes e uma produção distorcida que quase esconde o autor das vocalizações (os “ohhh-ohhh”) que ouvimos entre os versos bem esculpidos e poéticos (“Congregando farpas/ chamando o telefone/ matando baratas / a fúria crescia/ clamando vingança/ nos degraus de Laura/ no quarto das danças”).

Seguindo na senda do ritmo, temos talvez a canção mais surrealista do cancioneiro de Zeca. “Nefretite Não Tinha Papeira” assenta numa letra hilariante sobre as doenças dos faraós egípcios, contraposta com quadras da tradição portuguesa. Na base, um trabalho magnífico de percussão que devemos ao francês Michel Delaporte, que neste disco toca mais de 15 instrumentos, entre congas, pandeiretas, maracas, chocalhos e campainhas. Se Zeca é o ás deste disco e Zé Mário é a manilha, Delaporte é, sem dúvida, o rei.

O caminho volta a ter uma travagem brusca para um tema inspirado na tradição oral portuguesa intitulado “Adeus ó Serra da Lapa”, sobre a vida dura dos camponeses que fugiam a salto da ditadura e da situação económica degradante em Portugal, e que é um dos poemas mais bonitos escritos por José Afonso (“Moirar a terra insegura/ fugir da serra e do mar/ meus companheiros de aventura/ tudo farei para salvar”). Com a voz cristalina de Zeca, poder-se-ia ter tido a ideia de o deixar cantar a capela, com um coro de vozes a sublinhar a melodia, que não deixaria de ser um portento de canção. Mas José Mário Branco viu neste tema a hipótese de tornar o cantor de “Vejam Bem” num cavaleiro pela justiça, introduzindo três trompas na gravação que anunciam a missão do príncipe da canção portuguesa: “Eis José Afonso, o grande revolucionário da canção popular”!

Entra depois “Venham Mais Cinco”, a canção que chegou a ser pensada como senha da revolução dos Cravos. A instrumentação mistura uma típica canção folclórica nacional com inspiração africana no ritmo e no coro. A letra é, à superfície, sobre a coisa mais portuguesa de sempre: cinco amigos reunidos numa taberna a beber vinho branco e tinto, em amena camaradagem, e que não querem ver a noite acabar, arranjando alguns sarilhos pelo caminho. Mas não é preciso escavar muito para encontrar um poema sobre a força da união e a necessidade de resistir sempre contra a injustiça – afinal, “resistir é vencer”. E a beleza da união é visível no coro magistral que dá apoio à mais famosa vocalização da discografia Zeca: “Quiririri puriririri, quiririri paraburibaié”.

“A Formiga no Carreiro” está em linha com “Venham Mais Cinco”, mas substitui os “quiririris” por uma melodia tocada numa quena, uma flauta artesanal. A letra é, de novo, sobre resistência e luta e a instrumentação é uma das mais intricadas da carreira de José Afonso. São mais de uma dezena os instrumentos que se ouvem nesta canção, entre segundas vozes, várias guitarras, instrumentos de sopro, pandeiretas e outros instrumentos de percussão. O poema é sobre a necessidade de alguém que lidere a mudança de rumo necessária, tal como Zeca fez com a música popular portuguesa.

Em “Paz, Poeta e Pombas” uma secção de sopro e percussão bem demarcada dá-lhe um sabor latino que invoca mais Havana do que Trás-os-Montes. “Se Voares Mais ao Perto” foi escrita na última vez que José Afonso esteve detido em Caxias e faz recurso a um instrumental simples de tambor (de novo, o gigantesco Michel Delaporte) e de um coro a quatro vozes, com Zeca a gravar a própria voz em várias faixas, num registo mais baixo e noutro mais agudo. De notar ainda a potência da voz de José Mário Branco a entoar as vocalizações de marinheiros.

O disco fecha com chave de ouro com “Gastão Era Perfeito”, uma canção altamente divertida e com crítica social, apontando aos lambe-botas que esquecem o passado quando ascendem na vida: “Conheci-o em Alverca, num bidon de gasolina”, começa por cantar Zeca, afirmando depois que Gastão subiu na vida e começou a espalhar que “Era sobrinho do Fernão Peres de Trava”, um nobre galego. É um dos temas mais orelhudos de Venham Mais Cinco, em parte devido ao seu tom leve e acelerado. A instrumentação em surdina e as vocalizações aceleradas de José Mário Branco sublinham o carácter irónico desta canção de encerramento.

Venham Mais Cinco nasceu dos ombros de um gigante chamado Cantigas do Maio. É o disco mais arrojado da discografia de José Afonso e um portento musical que terá poucos rivais no mundo. Foi o último disco do músico editado antes do 25 de Abril e tornou-se um dos maiores marcos da sua discografia.

Deixei para o fim uma canção sem par a nível de beleza e que abria uma colectânea intitulada As Grandes Canções, lançada para celebrar os 25 anos do Expresso. “Que Amor Não me Engana” merece honras especiais entre as canções de Venham Mais Cinco. É uma das mais belas canções de sempre, ombreando com composições de Brian Wilson, Nina Simone ou da própria Amália Rodrigues. Bastaria a letra para dar suporte a esta afirmação arrojada:

E as vozes embarcam

Num silêncio aflito

Quanto mais se apartam

Mais se ouve o seu grito

Muito à flor das água

Noite marinheira

Vem devagarinho

Para a minha beira

Mas há mais do que a letra. Quer pela estrutura harmónica, pela melodia, pelo tom doce da voz, pela poesia, e por tudo o que faz do Zeca um génio, esta é a canção dele que mais gosto.

A faixa assenta num motivo tocado por uma harpa, sublinhado por um violoncelo e uma flauta, impecavelmente tocados. O quarteto, liderado pela voz de Zeca, cria uma canção perfeita e de uma beleza inalcançável, em que a voz não se sobrepõe à harpa ou à flauta, nem as palavras à música. É também a minha introdução ao mundo encantado do Zeca e por isso guardo um carinho muito especial por ela. E ainda mais por aqueles que ma deram a conhecer e a entender.


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