Como dizia o filósofo Ritchie, “a vida tem dessas coisas”. Os melhores discos de rock progressivo perpetrados no Brasil não são de uma banda de rock. Mais: talvez nem possam ser enfeixados na rubrica “rock”.
Tratam-se de Academia de Danças, de 1974, e Corações Futuristas, de 1976, dois dos melhores álbuns da extensa discografia de Egberto Gismonti. Um maestro, multi-instrumentista, arranjador e, às vezes, cantor, que, como um Diego Costa ou, para os mais velhos, um Mazola da música, fez carreira de forma profissionalmente sustentável na Europa e nos Estados Unidos.
É verdade que os dois discos em tela foram gravados no Brasil e editados pela subsidiária nacional da EMI, a gravadora Odeon. Mas o pouco reconhecimento comercial do artista se revela na dificuldade que, ainda hoje, temos de ter acesso a seus discos em edições nacionais. Inclusive estes dois (o próprio Egberto, há alguns anos, iniciou um projeto de licenciamento e edição de seus discos no Brasil, pelo seu selo Carmo, que, contudo, anda bem devagar, parece que em função dos problemas de saúde do músico). Academia de Danças, que também nomeia a superbanda que acompanha Egberto, ainda saiu há coisa de 10 ou 15 anos numa dessas edições da linha “promocional”, mas Corações Futurista segue sendo uma raridade disputada a tapa nos sebos, não só na versão LP, como no formato CD.
Academia e Corações são justamente vistos como discos gêmeos, gravados num mesmo mood, quase como dois volumes de uma mesma obra. O que dá unidade à obra é a transição que Egberto operou de seu instrumental jazzificado (sem perder a cor local, jamais, porém!) de uma moldura pianístico-acústica para uma abordagem elétrico-eletrônica, sob forte inspiração, deliberada ou não, de artistas que experimentavam, na época, com a fusão MPB-rock e cujo bastidor era justamente as formas roqueiras mais complexas e sofisticadas, o progressivo e o fusion.
Se, no estrangeiro este terreno foi ocupado por músicos mais ligados ao jazz, como Eumir Deodato, Flora Purim e Airton Moreira, protagonistas de grandes discos jazz-rock, ao lado de figurões norte-amricanos, no Brasil, este movimento tomou forma mais roqueira, corporificado principalmente pela turma de Minas e seus associados.
Mas coube a Egberto Gismonti fazer a síntese mais complexa e lapidada destas derivações da MPB e do rock brasileiro. Não é casual, portanto, que, para a empreitada, o músico fluminense tenha arrebanhado metade do Som Imaginário, o fantástico baterista Robertinho Silva e o baixista Luís Alves, além do baiano-carioca Danilo Caymmi, na época, sócio-atleta do Clube da Esquina.
Os Discos
O lado A de Academia de Danças, denominado Corações Futuristas, tem como mote os contos árabes das Mil e Uma Noites, e se compõe de uma longa suíte conceitual, e o lado B, batizado com o mesmo nome do álbum, de peças avulsas, com exceção dos dois temas finais que remetem ao interesse de Egberto pela música do Alto Xingu (que viria ser a ideia a conduzir seu álbum Sol do Meio Dia, de 1978).
O disco abre com “Palácio de Pinturas”, uma peça profundamente meditativa, iniciada com uma sequência orquestral, pontuada pelo Arp Odissey de Egberto, para entrar num belíssimo solo vocal, de uma cantora creditada apenas como Dulce, sobre uma base dedilhada ao violão. A melancolia vai, aos poucos, se tornando dramática, com a entrada da banda, marcada por uma condução pesada de Robertinho e sublinhada pela linha de órgão, que tanto pode ser de Egberto como do tecladista Tenório Júnior, para finalmente desembocar numa passagem jazzística, bastante próxima de certas sonoridades cultivada pela Mahavishnu Orchestra, com uma base rítmica onde Roberto Silva mostra porque é um dos maiores do mundo no instrumento.
A mudança de clima da faixa de abertura marca a passagem para “Jardim dos Prazeres”, um exercício jazz-rock de condução contundente e complexa, com impossíveis solos de violão. Na verdade é um baião enlouquecido, emoldurado por delicada cercadura de teclados eletrônicos.
“Celebração de Núpcias” retoma o tom mezzo melancólico, mezzo dramático, em torno de uma lindíssima melodia onde Egberto entrelaça sua voz com a de Dulce, enquanto alinhava filigranas ao violão, sobre uma orquestração de cellos e violinos em pizzicatoque fornece um clima de devaneio e de paisagem abstrata. Uma pérola que, entre as maravilhas dos discos se sobressaia como o ponto culminante, embora estejamos ainda no começo da audição.
“A Porta Encantada” nos traz um diálogo entre o violão irreproduzível de Egberto com seus teclados sintetizadores, numa oposição delicadeza-rispidez, tudo sobre uma arranjo de cordas que nos remete a uma sensação de infinitude. “A Porta” introduz na verdade uma versão pesada, eletro-eletrônica do tema-força que percorre todo o disco, “Jardim dos Prazeres”, mas que, nessa versão recebe o nome de “Scheherezade”, e que encerra o lado que se poderia qualificar como conceitual.
Se, até aqui, o ouvinte está ofegante pela inquietante variação de temas, climas e execuções, Egberto dá uma pausa, mas só para nos sufocar com outras armas: a atmosfera opressiva da dobrada “Bodas de Prata-Quatro Cantos” que, além das lindas melodias, têm letras versando sobre o amargor do fim do amor. O clima opressivo, ou depressivo, se quiserem, é “comentado” pela linha de órgão soturna que funciona como contraste da límpida base executada ao piano. Nas duas faixas, deliberadamente enfileiradas, a abordagem elétrica se dá do ponto de vista da canção brasileira tradicional, mesmo que, de convencional, não haja nada aqui. Ao contrário, as duas faixas têm harmonia de entortar os dedos dos que por elas se aventurarem. Uma versão alternativa e maravilhosa destas canções foi gravada pelo violoncelista sino-francês Yo-Yo Ma.
A pausa intimista, mas, como disse, nada amena, prepara a entrada de outro ponto culminante do disco, a versão orquestral-elétrica para a já conhecida “Vila Rica 1720″, antes registrada com vocais no altamente recomendável Água & Vinho, de 1972. Intensa, mas quase uma vinheta, a faixa anuncia “Continuidade dos Parques”, com sua introdução jazz que se derrama numa melodia em scat que alterna sua suavidade vocal com breaks de certa violência.
“Conforme a Altura do Sol/Conforme a Altura da Lua” nos traz de volta a altas voltagens de fusão, aqui reunindo um tema indígena, arranjo de bases de hard bop, com improvisos de Egberto pilotando seus sintetizadores e seu piano acústico de um jeito de fazer certos tecladistas de conservatório do prog inglês pensarem em desistir da profissão. O clima concretista da parte final nos lembra certas ousadias de Hermeto Paschoal, ou os momentos mais free de formações como o Soft Machine.
Para o redator do Blog Esquina do Rock,
“Academia de Danças é um dos mais complexos discos de progressivo já gravado no Brasil e deve ser necessariamente conhecido pelos pesquisadores deste gênero (…) entretanto, ele extrapola todas as influências que naturalmente ocorriam nesta época, nos grupos de progressivo das terras brasileiras, sendo um exemplo de originalidade musical.”
Muito bem dito.
Sob certos aspectos, Corações Futuristas, o álbum, radicaliza a proposta de Academia de Danças. A faixa de abertura, “Dança das Cabeças” (que depois seria regravada no álbum de mesmo nome, numa complexa versão acústico-percussiva, e seria responsável pela introdução triunfal de Egberto no mercado europeu) já começa como uma paulada progressiva, com uma base de sintetizador grave ao ponto de sacodir nossos estômagos para uma performance avassaladoramente pesada, num amálgama complexo de moog e violão. Predomina a eletrônica, mas o violão nos mantém com o pé no chão. Aqui temos aquela sensação de que Luiz Gonzaga encontrou Chick Corea para um baião cósmico, conduzido pelo zabumbeiro Robertinho e adornado pelo sax alto de Nivaldo Ornelas.
Sem pausa entre as faixas, Egberto também nos dá uma primeira audição de “Café”, um dos seus temas mais célebres e que também se encontra, entre outros, em Carmo, de 1977, no citado Sol do Meio Dia e no espetacular Vamos que Eu Já Vou (1978), de Wanderléia. Aqui o tema mantém seu clima jazz-bossa nova, mas não sem as nuvens sonoras providenciadas pelos sintetizadores de Egberto, entre os timbres metálicos e suaves.
“Carmo”, um hino de saudade da terra natal (também constante do disco homônimo e do citado LP de Wanderléia) aparece aqui apenas solfejada, valorizando o arranjo eletro-orquestral que confere uma flutuação calma ao ouvinte nesta altura do disco.
“Conforme a Altura do Sol”, de Academia de Danças, reaparece aqui na forma de uma rapidíssima vinheta totalmente eletrônica (e intitulada apenas “Altura do Sol”), encharcada de sintetizadores, mas apenas para anunciar a soturna “Polichinelo”, um cenário sonoro fantasmagórico emoldurado numa orquestração linda, mas sinistra, com o piano de Egberto fazendo um contraponto que dá a impressão de querer entrar sem permissão na peça. Estranheza, tristeza, e uma beleza tão fugaz quanto a curtíssima faixa.
No mesmo clima vem “Trem Noturno”, um número cantado por Egberto, com sua voz trocando carícias com o piano, para dizer uma daquelas letras de Geraldo Carneiro que nos deixa no chão. Com a faixa anterior, esta perfaz um momento de penumbra do disco, desaconselhável para domingos à tarde solitários. Mas, inesperadamente, “Trem Noturno” cai num tema jazz quase tradicional, com Robertinho metendo bronca nos pratos e Egberto tocando uma melodia quase alegre ao piano, num diálogo com a flauta de Nivaldo que finalmente desemboca numa paisagem de sons sintetizados que, por sua vez, nos devolve ao clima jazz, agora ornado por uma parede cordas e teclados. De tal maneira que a retomada do tema principal já nos remete à claridade.
A faixa seguinte é um dos momentos mais inspirados e progressivos do disco, a regravação de “Ano Zero”, anteriormente registrada no já mencionado Água & Vinho. Agora, introduzida pela execução da melodia ao piano, a música descamba para um desdobramento eletrônico, com a base ao piano sustentando uma camada de sintetizadores evanescentes, cellos e por um solfejo filtrado pelos teclados. A sutileza do baixo de Luís Alves (acústico) é uma delicada gema que dá solidez ao tema, preparando a entrada da bateria baque solto de Robertinho. Uma verdadeira joia instrumental. Mais uma vez, Egberto cai no baião (malandro) elétrico.
O disco fecha com um dos poucos registros de Egberto para peças alheias. “Baião de Acordar”, de Novelli, é retomada aqui com um arranjo misterioso, apoiado no piano em staccato, para desembocar num tema instrumental marcadamente brasileiro, sob moldura de sintetizadores, e solo supersônico de Egberto ao sintetizador e ao piano.
Esta fase de Egberto Gismonti, perplexo diante das possibilidades que os sintetizadores abriam para sua música, com os ouvidos claramente abertos para as sonoridades das bandas progressivas e fusion, mas sempre filtrando tudo isso com olhos e ouvidos brasileiros, sempre procurando incorporar estas possibilidades na sua própria música, teria consequências em pelo menos mais um de seus discos, Carmo, de 1977. Nele, passagens remetem a estes experimentos aqui comentados, como na excepcional “Baião Malandro”, um dos temas mais conhecidos do artista. O clima progressivo também daria as caras no disco Vamos que Eu Já Vou, parte de uma insuspeita e obscura trilogia mepebística de Wanderléia (composta ainda por Feito Gente, de 1975 e Mais que Paixão, de 1978), disco produzido, arranjado e, em parte, composto por Egberto. Um dia, se a mesa diretora deixar, escrevo sobre este LP.
Sem nunca deixar de explorar estas possibilidades sonoras, Egberto só voltaria maciçamente aos sintetizadores em Trem Caipira, de 1975, onde relê brilhantemente Villa-Lobos sob o prisma da eletrônica, mas, aí, a abordagem já nada tinha a ver com o rock progressivo.
Faixas
Lado A – Corações Futuristas
1. Palácio De Pinturas
2. Jardim De Prazeres
3. Celebração De Núpcias
4. A Porta Encantada
5. Scheherazade
Lado B – Academia de Danças
1. Bodas De Prata
2. Quatro Cantos
3. Vila Rica
4. Continuidade Dos Parques
5. Conforme a Altura Do Sol
6. Conforme a Altura Da Lua
Corações Futuristas (1976)
Lado A:
1. Dança das Cabeças
2. Café
3. Carmo
4. Altura do Sol
5. Polichinelo
Lado B:
1. Trem Noturno
2. Ano Zero
3. Baião do Acordar
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