Cabral já havia descoberto o Brasil há pelo menos uma década quando nasceu Fernão Mendes Pinto no vilarejo português de Montemor – o – Velho. Era a época das descobertas e o petiz cresceu para se tornar um dos mais conhecidos e celebrados aventureiros dessa fase de glórias e conquistas da história de Portugal.
Fernão lançou-se ao mar pela primeira vez em 1537, em direção às Indias, com o intuito de ir ao encontro de seus dois irmãos. Um ano mais tarde, durante uma expedição ao Mar Vermelho, enfrentou os otomanos em uma batalha naval e caiu prisioneiro, sendo depois vendido a um grego e revendido a um judeu que o levou para a ilha de Ormuz, no Golfo Pérsico, onde finalmente foi resgatado pelos patrícios.
Passou os próximos 21 anos se aventurando nas costas da Birmânia, Sião, arquipélago de Sunda, Molucas, China e finalmente Japão, onde foi um dos primeiros portugueses a confraternizar com os governantes locais que o celebrizaram por apresentar armas de fogo aos amarelos estupefatos. Aliás, em uma de suas viagens ao Japão (a de 1554) lá chegou convertido em noviço da Companhia de Jesus, pois havia abraçado a ordem após conhecer o jesuíta Francisco Xavier (mais tarde canonizado como São Francisco Xavier). Nessa missão de catequização, e também como embaixador do vice-rei de Portugal, acabou por se desencantar com a Companhia, abandonando o noviciado e regressando definitivamente a Portugal.
De volta ao lar, nova decepção, pois a coroa portuguesa não reconheceu seus sacrifícios pelo país e lhe recusou pensão por serviços prestados. Pobre e desiludido retirou-se para o Vale do Rosal onde se manteve até a morte em 1583. As suas aventuras no Oriente são relatadas no livro Peregrinação, escrito entre 1570 e 1578 e publicado duas décadas após a sua morte. Talvez o diário de viagens mais traduzido e famoso da literatura portuguesa, Peregrinação não foi publicado em vida devido ao medo que Fernão Mendes Pinto tinha de que suas críticas aos jesuítas pudessem atrair a ira da Inquisição. De toda forma, seus relatos exóticos e suas desagradáveis previsões quanto à derrocada do Império Português fizeram com que por muitos anos sua obra fosse taxada como fantasiosa, tanto que seu nome foi motivo de piada: Fernão, mentes? Minto!
De Fernão a Fausto
Peregrinação é um dos testemunhos mais alegóricos da diáspora portuguesa nos seus áureos tempos de imperialismo e alimentou por séculos o imaginário lusitano acerca das conquistas portuguesas no oriente. Marcou presença não apenas na literatura, mas também no teatro e na história em quadrinhos. E, principalmente, foi livro de cabeceira e musa inspiradora de um dos mais talentosos músicos portugueses dos últimos 50 anos: Fausto Bordalo Dias.
Por nascer em um navio no meio do Oceano Atlântico, no dia 26 de novembro de 1948 (fazendo portanto 73 anos amanhã), numa viagem de Portugal para Angola, pode-se dizer que Fausto é um predestinado. Suas duas primeiras décadas de vida são divididas entre África e Europa, mas é na antiga colônia portuguesa que passa grande parte da infância e adolescência, onde, inclusive, montou seu primeiro grupo de rock: Os Rebeldes. Em 1968 muda-se definitivamente para Lisboa a fim de estudar Ciências Políticas e Sociais, levando na bagagem todo um aprendizado da cultura e dos ritmos africanos que, junto com os valores herdados de sua família portuguesa, viria a ser marcante na sua trajetória de renovador da música tradicional portuguesa.
Estudante engajado e já devidamente inserido musicalmente nos círculos da balada, lança seu primeiro disco homônimo em 1969, que lhe vale o Prêmio Revelação instituído por uma rádio de Lisboa. Daí a se envolver com os músicos que estavam à frente do movimento de renovação da música portuguesa foi um passo e sua participação é tão marcante que, apesar de suas boas notas na Universidade, a ditadura vigente resolve agir em represália às suas atividades políticas, convocando-o para o serviço militar em 1973. Incomodado com essa interrupção nos estudos, Fausto recusa-se a comparecer ao quartel e passa a viver de forma discreta e clandestina.
Mas logo chega 1974, ano da Revolução dos Cravos em 25 de abril e que marca o fim do regime ditatorial do Estado Novo. Interessante que essa data desfere um injusto golpe ao rock no país, pois a juventude que antes via nos espetáculos roqueiros o único meio de se manifestar e ritualizar coletivamente prefere agora canalizar sua energia a serviço da liberdade com uma nova trilha sonora: as baladas de protesto ou intervenção. O rock no país passa alguns meses em retiro, acusado de ser a alienação da juventude, de provocar um alheamento da realidade e outras bobagens do tipo. Fausto, por outro lado, havia acabado de lançar seu segundo disco, P’ró Que Der E Vier, gravado em Madri, e se firma como um dos mais talentosos e perenes cantores de intervenção, que teve em Sérgio Godinho uma de suas expressões máximas na época.
Os anos que se seguem são intensos em Portugal, um período de grande atividade política e social marcado por milhares de espetáculos de música por todo o país. Até 1979 Fausto lança mais 3 álbuns e também se destaca como arranjador e produtor para outros cantores. É no seu quinto disco, História de Viageiros que ele aborda o tema que viria a ser recorrente em sua obra daí para frente: a diáspora portuguesa. Uma faixa desse álbum, justamente intitulada “Peregrinação” e baseada no livro de Fernão Mendes Pinto, é incluída na trilha sonora de uma peça de teatro sobre a obra do grande aventureiro luso. Com esse disco parece que Fausto, mesmo inconscientemente, percebe que também faz parte da diáspora, pois seus pais um dia também se lançaram ao mar onde ele nasceu.
Aqui nasce o rio.
Já um tanto cansado das canções de intervenção e não vendo sentido nelas no atual momento do país, Fausto levaria mais 3 anos para se reinventar e lançar um novo disco. Começa então a se aprofundar nas leituras de Peregrinação e a escrever e compor inspirado não só no livro, mas também na necessidade de intuir um novo caminho para sua música. Nesse meio tempo abandona sua antiga gravadora e participa de algumas apresentações na Inglaterra e na Espanha, reencontrando um velho companheiro musical dos tempos revolucionários: o produtor e arranjador Eduardo Paes Mamede.
Fausto e Eduardo tinham vários conceitos em comum, achavam que a evolução da música popular portuguesa naquele momento só faria sentido se houvesse dentro da própria estrutura da música algo que se identificasse com a tradição do país. E é nesse contexto que Fausto apresenta seus planos: fazer um álbum duplo baseado no texto de seu livro de cabeceira. Mostrou então alguns esboços do que estava compondo e, nas palavras de Eduardo, “fiquei maluco”.
Ainda nas palavras de Mamede: “Ele trazia as músicas, que compunha na guitarra, e eu escrevia as melodias que eram cifradas com a harmonia dele… Depois discutíamos passo a passo uma ideia sobre uma melodia ou texto e buscávamos os ambientes sonoros… não havia samplers na época então o trabalho era baseado na confiança: eu dizia que ia meter umas trompas aqui, uma percussão ali. E ele confiava.”
Foi preciso um mês de estúdio para gravar Por Este Rio Acima, esse o nome do disco duplo. E Mamede só lamenta que o dinheiro liberado pela nova gravadora, a Triângulo, fosse tão curto que impediu grandes arroubos na produção. Ele queria, por exemplo, fazer o disco usando uma orquestra, mas o dinheiro só deu para um quarteto de cordas e mais uns sopros. Por outro lado, havia alguns músicos conhecidos e de qualidade, que cobravam cachês altos pela sua participação no disco. As vozes também tomaram tempo de gravação e mesmo o coro da faixa “O Romance de Diogo Soares” teve que ter seu timbre alterado no gravador.
Finalmente, no último trimestre de 1982, o disco foi lançado. E o que os ouvidos lusos conheceram foi um trabalho radicalmente diferente de tudo o que até então se fizera na música popular portuguesa. Um disco perfeito, talvez a síntese mais coerente da música tradicional portuguesa com a modernidade. Sim, porque Fausto não se contentou em apenas mergulhar nos oceanos da obra de Fernão Mendes Pinto. Sua façanha foi juntar em tons irônicos toda a miséria, a tristeza e as agruras que assolavam um país recém-saído de uma ditadura.
Os críticos, estupefatos, renderam-se de imediato a um disco onde se fez impossível detectar falhas. Todo construído sobre o tradicionalismo rítmico das chulas, do corridinho e até do fado, mas que extrapolou influências africanas, brasileiras e orientais para buscar sua originalidade em experimentações coerentes e sonoridades inéditas. Projetando-se na época, fica difícil dizer se o que se ouvia era história ou futuro.
O que emerge desse rio de 12 polegadas navegado por Fausto são 16 faixas que respeitam a ordem cronológica do livro Peregrinação. Ao mesmo tempo, cada faixa se comporta como um afluente que parte de uma aventura caudalosa e acaba por desaguar no ouvinte feito uma lavagem de alma na sociedade portuguesa. Há a tradição, mas também a miséria. A aventura épica e a farsa. O sonho e a crítica mordaz. Até mesmo uma espécie de psicodelia oriental exala de algumas faixas, e sentimos aquela larica estupefaciente ser plenamente satisfeita com a densidade poética das letras desse músico genial.
Como já disse, Por Este Rio Acima é um disco perfeito. Que Fausto procurou igualar nos seus discos posteriores, inclusive em dois outros registros que completam a trilogia da diáspora: Crónicas Da Terra Ardente, lançado em 1994 eEm Busca das Montanhas Azuis, de 2011. Para o leitor roqueiro mais empedernido, aquele que com toda a razão vai regurgitar o chavão “Ah, mas não é rock”, já me adianto na resposta: “Azar do rock”.
Músicas
1 – É o mar que nos chama
2 – O barco vai de saída
3 – Porque não me vês
4 – A guerra é a guerra
5 – De um miserável naufrágio que passámos
6 – Como um sonho acordado
7 – A ilha
8 – A voar por cima das águas
9 – Olha o fado
10 – Por este rio acima
11 – O cortejo dos penitentes
12 – O romance de Diogo Soares
13 – Navegar, navegar
14 – O que a vida me deu
15 – Lembra-me um sonho lindo
16 – Quando às vezes ponho diante dos olhos
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