A noite de 10 de Dezembro, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, tinha tudo para ser especial. Manuel Fúria, um dos mais importantes nomes do pop/rock português contemporâneo, regressava e preparava-se para apresentar o seu mais recente trabalho, o conceitual “Os Perdedores” – Fúria já tinha interpretado o disco em outubro no festival literário Arquipélago de Escritores, em Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, nos Açores, mas ainda não divulgou as próximas datas de promoção do álbum.
“Os Perdedores” (2022) sucede “Viva Fúria” (2017) e representa um conjunto de 10 canções marcadas por uma investida firme na eletrônica, correspondendo a um desejo antigo do artista de fazer um disco dominado pela música de dança, no qual a sua identidade é exposta de uma forma mais vincada, abordando o percurso de vida e a religião, recordando a infância e os amigos que partiram, denunciando massacres e procurando a salvação através da catarse.
Ao som de “Moments In Love”, dos Art of Noise, Manuel Fúria e a sua banda (composta por Francisca Aires Mateus, Tomás Cruz, Vasco Magalhães e João Eleutério) entraram no palco, pouco depois das 21 horas, para gáudio do público que superou a chuva e lotou o espaço lisboeta. Depois do interlúdio, o show arrancou com a faixa-título, de pegada pop anos 80, em que o antigo vocalista d´Os Golpes, a partir desse ponto, exibiu uma faceta mais aberta, pela forma como dançou e gerou sintonia, sem negligenciar o seu ímpeto vocal e beneficiar-se de um naipe de músicos versáteis, que interpretaram bem as várias tonalidades do espetáculo.
Seguiu-se “Catedral de Notre Dame”, marcada pelo desígnio patente na estrofe “Podia escolher caminhos fáceis, palavras fáceis ou deuses fáceis” e o magnífico spoken word com batida eletrônica e laivos funk de “Blandina de Lyon”, onde o músico lisboeta reafirmou a sua fé enquanto denunciou perseguições atuais e passadas a cristãos. “Olá, boa noite! É um prazer estar aqui com vocês”, disse Fúria à assistência enquanto pegava pela primeira vez na guitarra e sobre o tema imediato, “O Novo Normal”, foi objetivo: “Vivemos tempos de morte, mas esta canção não é sobre a morte e sim sobre o seu contrário”. A faixa encantou o público pelo seu teor poético agradável e por um crescendo instrumental e vocal derradeiro que validou a boa interação entre os músicos.
A eletrônica trepidante de “Prece 909” abriu caminho para a excelente “Malta Que Se Foi”, onde Manuel Fúria cantou o seu passado musical, expurgou a sua dor pela perda de alguns amigos e pautou a interpretação por alguns gritos punk que se apropriaram ao momento. Gradualmente, pairou a sensação de que este processo de reinvenção promete gerar etapas cada vez mais interessantes se o músico lisboeta continuar a exibir a sua visão artística de forma confiante. Essa ideia não se alterou na performance de “Bicicletas de Montanha” (que culminou com um efeito de distorção de Fúria na guitarra elétrica) e suavizou no convite à dança, lançado ao público pelo músico no tema “Nem Fome, Nem Mundo”, que transformou o Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém num salão de festas.
Sem demoras, Fúria apresentou os músicos que o acompanharam, pediu uma salva de palmas para “a banda que nunca chegou a ser” e mencionou o prazer que sentiu em estar de novo com o público. A música continuava e a plateia entoava a frase “Acabou”, mas ainda houve tempo para dar voz ao cartão-de-visita “Católico Menino Manco”. No encore, Manuel Fúria voltou sozinho, confessou com graça que se estava “a armar-se em Elton John” e cantou ao piano o seu tema preferido d´Os Pontos Negros, “Os Tempos Estão a Chegar ao Fim”, num bom registo power ballad. Já com a banda em palco, regressou ao álbum “Viva Fúria” acelerou o ritmo e manteve os corpos a balançar durante a interpretação de “Canção Infinita” e obteve um enorme aplauso do público que se prolongou durante a despedida do coletivo. Durante 75 minutos, Manuel Fúria revelou uma capacidade de entrega notável, num ótimo show, marcado pelo afloramento da sua identidade e da alma portuguesa e foi evidente que a roupagem eletrônica serviu bem o propósito libertador do artista.
Sem comentários:
Enviar um comentário