domingo, 4 de dezembro de 2022

Caetano Veloso – Transa (1972)


 

A data é comemorativa, mas servirá sobretudo como lembrete: ouvir Transa é urgente, mesmo passados 50 anos do seu aparecimento público, ou até talvez por isso. O antes e o agora revelam que o disco, afinal, não tem a idade que tem.

Já há muito que todos sabem que Transa foi o primeiro disco que Caetano gravou quando se encontrava exilado em Inglaterra, junto com Gilberto Gil. Sabemos que é um produto singular, uma resposta musical de quem, sentindo-se mal pela distância saudosa a que fora sujeito, estava deprimido, angustiado, não suportando a pele cinzenta do céu londrino que pairava sobre a sua cabeça. Mas em Transa, há algo que escapa a tudo isso, algo que fervilha e que não é produto desse tempo e desse modo de existência reclusa. É outra coisa, objeto sem parâmetro comparativo com o que se fazia (dentro e até fora do Brasil), espécie de espaço criativo fadado a outra dimensão. Transa não é música popular brasileira, não é rock, não é samba, nem poderá nunca ter rótulo fácil. O que existe em Transa é alguma coisa em trânsito pós-tropicalista e pós-tudo-e-mais-alguma-coisa. Nesse sentido, é o disco mais novo de toda a discografia de Caetano Veloso. Ele é, ao mesmo tempo, algo que sucede e acrescenta ao que já existia, que transforma e renova o que o baiano já havia produzido. É um disco de amigos que queriam estar noutro lugar, imaginando um tempo e um modo onde pudessem sorrir e viver livremente. É o primeiro “disco de banda” que Caetano gravou, trabalho orgânico, fechado sobre si mesmo, cápsula de som. Jards Macalé, Tutty Moreno, Áureo de Souza e Moacyr Albuquerque ajudaram (e muito) na magia do momento. A produção de Ralph Mace também. Tudo isso em apenas sete canções e em exatos trinta e sete minutos e treze segundos de eternidade.

O disco abre com “You Don’t Know Me” e aquelas cordas de violão (que começam tão joãogilbertianas, mas que depois ganham outras características) ditam o ambiente de todo o trabalho. O baixo, a bateria, a voz que canta “You don’t know me / Bet you’ll never get to know me / You don’t know me at all / Feel so lonely / The world is spinning round slowly / There’s nothing you can show me from behind the wall”, tudo se conjuga de forma perfeita. Uma vez passados esses segundos iniciais, já não há volta atrás: passa a pertencer à nossa vida. As duas primeiras faixas do élepê são em inglês, sendo que a segunda é a magnífica “Nine Out of Ten”, que cita o som que surpreendeu o baiano nas suas idas a Portobello Road, o som da Jamaica, o reggae. É um tema histórico a que Caetano recorre muitas vezes nos seus concertos, como fez, por exemplo (e bem, de forma muito bela) no show Multishow ao Vivo – Cê. Lembram-se do slogan do sabonete Lux que dizia “Nove em cada dez estrelas de cinema usam Lux”? O título da canção vem daí. Ecos de um certo sopro do Tropicalismo na citação, bem à maneira de Caetano. Segue-se (e com ela se fecha a primeira rodela de Transa) a extensa “Triste Bahia”, que abre com o sugestivo e supremo som do berimbau. Depois há o canto da poesia barroca de Gregório de Matos numa canção que vai crescendo até se tornar um autêntico monumento, uma espécie de assombração temporal que pousa (não “no coração do hemisfério sul / na América, num claro instante”) no peito dos intérpretes do tema e que vibra intensamente, fazendo dela um clássico, mesmo tendo quase dos minutos de duração. O lado seguinte abre com “It’s a Long Way”, o tema mais instantaneamente belo de todo o álbum. Há por ali qualquer coisa de Beatles em formato baiano (“Woke up this morning / Singing an old, old Beatles song”), qualquer coisa de muito belo quando a canção acorda (“I hear my voice among others / In the break of day / Hey, brothers / Say, brothers”) e avança triunfante até ao seu epílogo. Outro clássico, claro, que cita outros clássicos como “A Lenda do Abaeté” e “Consolação”, a primeira de Dorival Caymmi, a segunda de Baden Powell e Vinícius de Moraes. Colagens para conhecedores, que os londrinos nem sonhariam, evidentemente. “Mora na Filosofia”, de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, teve algum destaque nas rádios brasileiras, o que não deixa de ser, ao mesmo tempo, estranho e curioso, uma vez que a canção é um transamba, digamos assim, pouco respeitando (mas sem lhe faltar ao respeito, note-se) a composição original. O resultado final é inquietante. A penúltima canção é a também inquietante “Neolithic Man”, pulsante como o bater de um coração. Viciante, se a ouvirmos com a devida atenção. De novo, um tema em inglês. Nele participa, assim como na inicial “You Don’t Know Me” e na derradeira “Nostalgia (That’s What Rock’n Roll Is All About)”, a amiga Gal Costa, que viajou até à capital inglesa para se encontrar com os amigos bárbaros. A última faixa, aliás, é quase uma vinheta, de tão curta. Linda, mesmo assim, com surpreendente gaita de sopro por parte de Ângela Ro Ro, que conheceu Caetano num pub londrino, vivendo em 71 na velha Albion, depois de ter habitado durante algum tempo numa comunidade artística na Bélgica . Excelente maneira de terminar um disco como Transa, trabalho de perfeito equilíbrio entre novidade, experimentalismo, lirismo, beleza melódica, génio criativo e espírito coletivo.

Transa foi considerado, pela revista Rolling Stone Brasil, o décimo disco mais importante de toda a história da música brasileira, o que, num elenco de cem, não deixa de ser uma honrosa posição. Independentemente desse destaque, a verdade é que Transa ficará para sempre como um álbum verdadeiramente único e distinto, diferente de tudo o que o baiano de Santo Amaro da Purificação havia feito, ou haveria de fazer. Até hoje, diga-se. Por isso, ponha-o a rodar e vibre com a excelência que nele reside e que não se esfumou nas cinco décadas que traz consigo. Outras cinquenta que passem, e tudo permanecerá como aqui dizemos. Sem margem para dúvidas!


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