segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

“Elis” (Philips,1972), Elis Regina

 


No início dos anos 1970, Elis Regina (1945-1982) já era uma cantora de grande prestígio no cenário musical brasileiro. Porém, a artista passava por um processo de mudanças tanto na vida pessoal como na profissional. Seu casamento conturbado com o compositor, produtor musical e jornalista Ronaldo Bôscoli (1928-1994), estava chegando ao fim.

Na carreira profissional, a artista passava por um processo de transição. Ao final da década de 1960, Elis era uma cantora que, embora fosse jovem, era vista como uma cantora defasada, obsoleta. A música brasileira naquele fim de década, passava por transformações, sob a influência do Tropicalismo e da música pop internacional da época. O rock psicodélico estava em alta, a soul music dominava as paradas americanas e começava chegar ao Brasil. O público jovem brasileiro estava em completa sintonia com essas transformações. A postura intransigente de Elis Regina em defesa de uma música brasileira “purista” (ela liderou a famigerada “Passeata contra a guitarra elétrica”, em 1967), deu à cantora uma imagem de cantora “obsoleta”, mesmo com pouco mais de 24 anos de idade.

Para reverter essa situação, a cantora passou a flertar com a soul music, o rock e o samba-jazz através dos álbuns Em Pleno Verão (1970) e Ela (1971), ambos produzidos por Nelson Motta, dois trabalhos que fizeram o processo de transição que afastaram Elis Regina da sua postura radical e nacionalista da década anterior, e ampliava o seu leque musical, preparando uma nova artista para a década que se iniciava e que a consagraria através de uma sequência de álbuns fantásticos.

O ano de 1972 foi um ano em que se fechou um ciclo na vida de Elis Regina e iniciou-se um novo ciclo, em todos os aspectos. Naquele ano, finalmente, o combalido casamento de Elis e Ronaldo Bôscoli chegou ao fim. Enquanto isso, na vida profissional, as transformações prosseguiam. Sua banda de apoio sofreu uma profunda mudança de integrantes, mudança essa que já havia iniciado no ano anterior, com a chegada do tecladista César Camargo Mariano. O tecladista assumiu também o posto de diretor musical de Elis, e se tornaria em breve, uma figura fundamental nesse processo de transformação musical no trabalho da cantora e, claro, na vida pessoal dela. Em 1972, a formação da banda da cantora se firmou com Paulo Braga (bateria), Luisão Maia (baixo), Hélio Delmiro (guitarra), Chico Batera (percussão) e o próprio César Camargo Mariano (teclados).

Com essa nova banda, Elis ensaiou um novo repertório para um novo disco e que foi apresentado ao público em março de 1972, quando estreou no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, o espetáculo É Elis.

Por outro lado, na vida pessoal, Elis Regina vivenciava um novo momento. Separada de Bôscoli, Elis iniciou um romance com César Camargo Mariano, o tecladista de sua banda, uma relação que durou nove anos e da qual gerou dois filhos, os cantores Pedro Camargo Mariano e Maria Rita. A relação de Elis e César foi profícua, seja no amor, seja no campo profissional. César foi responsável pelos arranjos dos álbuns da fase mais importante da carreira de Elis Regina, que foi a década de 1970.

Ainda em 1972, nem tudo foi as mil maravilhas para Elis. Em setembro daquele ano, Elis foi obrigada pela ditadura militar (1964-1985) vigente no Brasil a se apresentar nas Olimpíadas do Exército e a gravar uma propaganda para a Semana da Pátria. Essa apresentação causou surpresa na classe artística, que se mostrava avessa ao regime ditatorial. Elis era uma das maiores cantoras do país naquele momento, e até então, sua imagem era pouco ou nunca vinculada a posicionamentos políticos.

Sua apresentação no tal evento militar gerou indignação do cartunista Henfil (1949-1988) que fez uma dura charge publicada no jornal “O Pasquim” contra a cantora. Elis sentiu-se magoada e ofendida pela charge do cartunista. O que poucos sabiam é que Elis sofreu ameaças por parte dos militares, e tudo por causa de uma entrevista que ela deu a uma revista holandesa em 1968, durante uma turnê europeia. Na entrevista, ela afirmou que o Brasil era “governado por gorilas”. Somente três anos depois, os militares souberam da tal entrevista, e ainda assim, resolveram dar uma punição à artista.

A humilhação sofrida perante o Exército e a imagem que passou para os colegas artistas de que supostamente ela seria uma apoiadora da ditadura, mexeram com Elis Regina, e também levaram a cantora a se fazer profundos questionamentos e reflexões. Elis percebia que sendo uma artista importante e influente, era necessário ter um posicionamento político claro e definido para o público.

Constrangedor: Elis Regina se apresentando nas Olimpíadas do Exército, em 1972.
Apresentação gerou surpresa negativa na classe artística que não sabia das ameaças
sofridas pela cantora por parte dos militares, caso recusasse se
apresentar naquele evento.

Todos esses acontecimentos se refletiram no próximo e importante álbum de Elis Regina, intitulado simplesmente como Elis, também conhecido como “disco da cadeira”. Foi o primeiro álbum da cantora lançado após o fim de seu casamento com Ronaldo Bôscoli. O disco foi produzido por Roberto Menescal, um velho amigo de Elis, e marcou a estreia de César Camargo Mariano como arranjador dos discos da cantora gaúcha.

Elis, o álbum, ressalta o processo de mudança, de modernização musical que Elis Regina vinha passando a partir dos dois discos anteriores, mas que aqui, se mostra mais evidente, tanto nos arranjos quanto nas letras. O repertório do álbum é impecável, selecionado por Elis e Roberto Menescal, que na época, além de produtor, era diretor musical da gravadora Philips.

O álbum traz também Elis gravando canções de novos compositores - um hábito que aliás, que ela sempre teve desde o início da carreira - e que se tornariam famosos mais tarde como Zé Rodrix (1947-2009), Raimundo Fagner, Belchior (1946-2017), Ivan Lins, João Bôsco, Aldir Blanc (1946-2020), Sueli Costa e Vítor Martins. Mas também traz canções de compositores consagrados como Tom Jobim (1927-1994), Chico Buarque e Milton Nascimento.

A capa do disco mostra uma Elis Regina feliz, alegre, resplandecente, trajando um vestido branco e sentada numa cadeira de balanço num gramado. Era o reflexo do momento em que a cantora estava vivendo: um novo amor e um novo direcionamento profissional.

O álbum começa com “20 Anos Blue”, uma parceria de Sueli Costa e Vítor Martins (que mais tarde se tonaria um grande parceiro de Ivan Lins). A canção é uma tradução do momento que Elis vivia, uma jovem com pouco mais de vinte anos e que passa por um processo de mudanças na vida. “Bala Com Bala” é do então desconhecido João Bôsco em parceria com Aldir Blanc, que juntos, formariam uma das mais notáveis duplas de compositores da música brasileira. A canção é um samba jazz sensacional, com um balanço irresistível em que Elis canta de forma veloz impressionante sem atropelar a métrica.

O álbum Elis, de 1972, traz canções de uma nova geração de compositores da MPB
que despontava no começo dos anos 1970, como João Bosco e Aldir Blanc (foto),
autores de "Bala com Bala".

“Nada Será Como Antes” é uma canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, e foi gravada pelo próprio Milton para o antológico álbum Clube da Esquina, lançado naquele ano de 1972. A canção é uma homenagem aos amigos exilados no exterior ou desaparecidos por causa da repressão da ditadura militar. Elis se encantou com a canção e decidiu gravá-la para o seu álbum. Para Elis, os versos teriam um sentido particular, bem condizentes com a fase de liberdade que estava vivendo após separar-se de Ronaldo Bôscoli. A frase “nada será como antes”, de fato, fazia todo sentido: ela vivia um novo amor que lhe permitia mais liberdade de criar, de trabalhar e de viver.

A faixa seguinte é “Mucuripe”, de Raimundo Fagner e Belchior, dois compositores representantes do chamado “pessoal do Ceará”, uma geração notável de cantores e compositores cearenses que começava a despontar no cenário musical brasileiro no começo da década de 1970. “Mucuripe” é uma canção praieira que descreve em seus versos os pescadores que partem com seus barcos da Praia de Mucuripe, em Fortaleza, em direção ao mar para mais um dia de trabalho. A versão de Elis é uma canção lenta, que começa com violão, seguido por piano e um belo naipe de cordas.

“Olhos Abertos”, de Zé Rodrix e Guarabyra, é uma canção de lindos versos que parecem pregar a amizade, a integração das pessoas, ainda que pensem de maneira diferente umas das outras: “Eu preciso encontrar as pessoas / Ficar de mãos dadas com elas / Conversar com a boca e os olhos do coração”.

Fechando o lado 1 do álbum, Elis Regina revisita uma canção que fez sucesso na voz de Ângela Maria (1929-2018), em 1953: “Vida de Bailarina”. Elis sempre manifestou uma admiração por Ângela Maria desde criança, quando morava em Porto Alegre e a tinha como grande inspiração.

O lado 2 do álbum começa com “Águas de Março”, de Tom Jobim mas não é a famosa versão em que Elis faz um dueto com Tom. Essa versão só seria gravada em 1974, para o disco Elis & Tom. A versão de 1972 tem apenas Elis Regina cantando sozinha. Ainda assim, não foi a primeira versão. Tom Jobim já havia gravado “Águas de Março” em 1972, porém meses antes de Elis, e que foi lançada num compacto distribuído como brinde na edição de maio daquele ano do jornal O Pasquim.

A faixa seguinte é a emocionante “Atrás da Porta”, canção composta por Chico Buarque e Francis Hime, com Elis Regina numa interpretação com forte carga dramática. Elis, que havia saído de um casamento sofrido, se identificou com a dor da personagem da letra da canção, uma mulher menosprezada e abandonada pelo homem que amava. César Camargo Mariano acompanha Elis ao piano, em versos carregados de melancolia e desespero.

Outra canção do clássico álbum Clube da Esquina presente em Elis é a canção “Cais”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos”, cuja letra versa sobre alguém que tenta sobreviver à solidão. A versão do álbum Elis começa num estado de tensão promovido pelo naipe de cordas e com Elis Regina fazendo vocalizações. César Camargo Mariano toca cravo nesta faixa.

Elis regravou para o seu álbum de 1972, "Nada Será Como Antes" e "Cais",
duas canções do álbum Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges.

Após a melancolia das duas faixas anteriores, o clima fica mais animado com o samba jazz “Me Deixa Em Paz”. Composta por Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Sousa, “Me Deixa Em Paz” é sobre um amor que acabou, que chegou ao fim, e o eu lírico se mostra feliz por ter se libertado de uma relação que lhe era um fardo. Parece que foi feita sob medida para Elis, pois a letra tem tudo a ver com o fim do casamento da cantora com Ronaldo Bôscoli.

“Casa No Campo” foi composta por Zé Rodrix e Tavito (1948-2019), foi defendida pelo próprio Zé Rodrix no VI Festival Internacional da Canção, em 1971, e encantou Elis Regina, que foi a presidente do júri daquela edição do festival. Elis decidiu gravá-la para o seu álbum, e se tornou um clássico do chamado rock rural, uma vertente do rock brasileiro que estava em ascensão no começo dos anos 1970, e que fundia rock, folk music, música sertaneja e música nordestina. “Casa No Campo” tem versos carregados de bucolismo, celebra a amizade e a vida simples no campo, distante da vida acelerada e consumista das grandes cidades. Destaque para o lindo naipe de cordas, para o piano, cravo e violões.

O álbum termina com “Boa Noite Amor”, uma canção que é uma cantiga de ninar, mas que na verdade tem um tom de despedida. “Boa Noite Amor” foi originalmente gravada pelo cantor Francisco Alves (1898-1952), em 1936, e em 1950, ele a regravou.

Elis teve uma boa recepção por parte do público e da crítica. O álbum vendeu mais de 100 mil cópias. Faixas como “Atrás da Porta”, “Casa No Campo” e “Nada Será como Antes” tornaram-se obrigatórias no repertório de shows de Elis Regina.

Faixas

Lado 1

1."20 Anos Blue" (Vitor Martins - Sueli Costa)        

2."Bala com Bala" (Aldir Blanc - João Bosco)

3."Nada Será como Antes" (Milton Nascimento - Ronaldo Bastos)

4."Mucuripe" (Belchior - Fagner)     

5."Olhos Abertos" (Guarabyra - Zé Rodrix) 

6."Vida de Bailarina" (Americo Seixas - Dorival Silva)         

 

Lado 2

7."Águas de Março"  (Antônio Carlos Jobim)          

8."Atrás da Porta" (Chico Buarque - Francis Hime) 

9."Cais" (Milton Nascimento - Ronaldo Bastos)      

10."Me Deixa Em Paz" (Ronaldo Monteiro - Ivan Lins)       

11."Casa no Campo" (Tavito - Zé Rodrix)     

12."Boa Noite Amor" (Francisco Mattoso - José Maria de Abreu) 


Ouça na íntegra o álbum Elis (1972)

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