sábado, 10 de dezembro de 2022

Gisela João – AuRora (2021)


 

AuRora, o terceiro LP de Gisela João, é um frasco de álcool etílico que desinfeta as mais sangrentas feridas de amor, ao retratar, de um modo transparente e brutal, os tempos que chegam após o fim de uma relação.

Os corações partidos têm mais força, ainda que sejam mais frágeis. Podem estar estilhaçados em pedaços afiados e irregulares, mas continuam a bombear sangue e a aquecer os corpos. Não existe propriamente uma cura para os desgostos de amor, mas as almas mais experientes costumam recomendar uma boa dose de tempo, porque o tempo arde — e o que arde, cura.

AuRora, o terceiro LP de Gisela João, é um frasco de álcool etílico que desinfeta as mais sangrentas feridas de amor, ao retratar, de um modo transparente e brutal, os tempos que chegam após o fim de uma relação. A fadista portuguesa apanhou os estilhaços do coração do chão e espalhou-os ao longo de doze temas íntimos.

Em AuRora, cada nota é uma verdade, cada verso é uma confissão, cada canção é uma prova de perseverança. A beleza deste trabalho reside na sinceridade gráfica que apresenta. A fadista canta e as imagens surgem simplesmente. Assim, vemos a proa de um barco a desafiar as ondas, um chão de mármore gelado que fere pés nus, um conjunto de ruas citadinas desertas, o telhado neogótico do Parlamento húngaro; e é como se estivéssemos dentro da memória de Gisela João.

Em AuRora, cada nota é uma verdade, cada verso é uma confissão, cada canção é uma prova de perseverança.

Apesar de ser um álbum que retrata falhas geológicas de um coração sangrento, AuRora é um conjunto de canções quentes, de resistência, nas quais o classicismo do fado reencontra a modernidade eletrónica. Neste contexto, há uma enorme diversidade de tons musicais e correntes de fado que fazem de AuRora um trabalho notavelmente inventivo, em que cada tema apresenta um traço distintivo. Mesmo nas faixas mais tradicionais é possível identificar apontamentos eletrónicos e sumarentos que desarmam (e surpreendem) os ouvidos mais atentos (“Já Não Choro Por Ti”; “Longe Daqui”).

A trilogia formada por “Tábuas Do Palco I”, “Tábuas Do Palco II” e “Tábuas Do Palco III” representa um dos momentos mais profundos do álbum — o uso conjunto de cordas orquestrais, da guitarra portuguesa, e ainda de um piano e de um sintetizador cria um ambiente assombrosamente íntimo, quase místico. 

O tema “Canção Ao Coração”, uma das mais bonitas do trabalho, é um autêntico love theme digno de filme. 

Num projeto em que Gisela João se estreia como letrista, é obrigatório referir a letra de “Louca”, cuja interpretação vocal é, possivelmente, uma das mais poderosas de AuRora. Mais tarde, em “Vai”, o ouvinte é embalado pelo toque de um piano e pela voz, agora reluzente, de Gisela João. Tendo em conta a sua posição no álbum, o tema forma o momento da despedida de duas personagens cuja “(…) história acabou”.

Assim, se “Louca” foi a tempestade, “Vai” é a calma que lhe seguiu. @Colors

Há faixas que têm uma produção tão cuidadosa que podiam pertencer ao portefólio de um mestre de música ambiente ou de um qualquer pianista escandinavo (“Não Fico Para Dormir; “Budapeste”; “Saia Da Herança”). Realmente, o valor de AuRora reside, em grande parte, na produção de que beneficiou — ficou a cargo de Michael League (dos Snarky Puppy) e Nic Hard, sendo que a própria fadista participou intensamente neste processo.

A faixa “Saia Da Herança” é particularmente sensível. Trata-se de uma espécie de interlúdio em que a artista fala (cantando, por vezes) de costura, trapos, lenços e saias; na verdade, fala sobre memórias e envolve os ouvintes em tecidos feitos a partir de vidas passadas. Ainda que AuRora seja um álbum preenchido com canções que dissecam um coração partido com bisturis de sinceridade, “Saia Da Herança” distancia-se desse universo de assuntos e destaca-se ao evocar memórias brancas. (Algo nos diz que Brian Eno, caso escute esta composição, vai experienciar uma espécie de déjà vu.)

No terceiro LP de Gisela João há espaço para tudo e as direções musicais alteram com uma frequência entusiasmante. Perto do fim do álbum, a guitarra portuguesa invade a casa do ouvinte e começa a preparar uma refeição, põe a mesa e abre uma garrafa de vinho. Afinal, não é todos os dias que “António Marinheiro” faz uma visita.

Em Aurora, a criação é livre, a música é livre, o fado é livre. Esta é uma enorme vitória para Gisela João que, de um modo espetacular, assinou um dos melhores álbuns do ano em Portugal. Contudo, a qualidade e a coragem criativa de AuRora não podem surpreender ninguém. Afinal de contas, este é um álbum de Gisela João, a fadista que gosta de clubs e de breakbeat house. Se é verdade que, nos últimos anos, têm surgido cada vez mais projetos que ligam o fado a correntes musicais contemporâneas, é essencial reconhecer que Gisela João é uma das principais responsáveis por essas incursões criativas. Há 10 anos, era ela quem estava no Lux, junto de Nicolas Jaar e Dave Harrington, a cantar “Os Vampiros”. Em 2019, ajudou Xinobi na construção de uma das mais interessantes tracks da cena eletrónica portuguesa (“Fado Para Esta Noite”). Já depois de ter editado AuRora, Gisela João voltou a misturar dois mundos perfeitos ao colaborar novamente com Xinobi (“Tábuas Do Palco I – Xinobi Remix”), Stereossauro (“Louca (Stereossauro Remix)”), DJ Ride (“Vai (DJ Ride Remix)”), Justin Stanton (“Louca (Justin Stanton Remix)”) e Holly (“Saia Da Herança (Holly Remix)”).

A personalidade artística e eclética de Gisela João fazem da fadista um dos maiores ativos da música nacional. Em tudo o que faz, parece sentir-se confortável e disposta a fazer mais e diferente. AuRora é um ato de coragem e de inspiração pura mas refletida; é autenticamente um trabalho diferenciado, composto por diversas camadas que conectam a música portuguesa ao seu passado, presente e futuro.

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