É bossa nova? É jazz? Não, é Getz/Gilberto. Um dos discos definidores dos anos 60.
No final dos anos 50, no Rio de Janeiro, João Gilberto inventa a bossa nova, uma versão introspectiva do samba, com uma batida suave mas sincopada no violão, acordes jazzísticos e um canto quase sussurrado. O saxofonista Stan Getz foi dos primeiros americanos a apropriar-se do novo estilo, com o seminal Jazz Samba, de ’62. Mas Gilberto e Jobim escandalizam-se com a caricatura grosseira da sua refinada criação.
Lançam então o repto ao próprio Getz para um disco a meias, na condição de que a cama rítmica fique por conta dos brasileiros (João Gilberto no violão, Tom Jobim no piano, Milton Banana na bateria e Sebastião Neto no contrabaixo). Deste casamento entre Stan Getz e a fina flor da bossa nova nasce a perfeição de Getz/Gilberto.
O reportório foi escolhido a dedo: seis clássicos escritos por Jobim e dois sambas da velha guarda (“Doralice” de Dorival Caymmi e “Para Machucar Meu Coração” de Ary Barroso), como que para frisar a continuidade histórica entre a nascente do samba e a foz da bossa nova.
A estética é mais joãogilbertiana do que o costume, apurando o que já era depuradíssimo. Desaparecem os arranjos orquestrais com que Jobim ornamentou os três primeiros discos de Gilberto. A própria voz de João é agora mais contida e despojada. Para melhor degustação dos coloridos acordes tocados em bloco, o violão está tão destacado na mistura como a voz. A bateria de Milton Banana baixa o volume da batida dançante, numa estilização cada vez mais radical do ritmo do samba. O piano de Jobim é discretíssimo, pingos esparsos a cair do telheiro.
Astrud Gilberto, então mulher de João, canta nos dois singles: “Garota de Ipanema” e “Corcovado”. Foi a primeira gravação profissional da brasileira. À primeira audição torcemos o nariz ao seu quase amadorismo: o sotaque inglês é manhoso, a afinação está longe de ser perfeita. Depressa percebemos que o defeito é afinal virtude: a insegurança da voz sublinha a sua sensualidade inocente de mulher-criança.
O jazz só se intromete quando o saxofone de Getz assoma, interrompendo o balanço controlado de João Gilberto com a incerteza da improvisação. Muitos acham o seu timbre demasiado doce e delicado. Nós temos outra opinião, apreciando a sua tonalidade envolvente e sensual. O seu lirismo e imaginação melódica são encantadores. Getz vem do cool jazz mas ao pé da voz-silêncio de Gilberto o seu saxofone tenor parece água a ferver.
Enquanto João Gilberto recusa com intransigência qualquer artifício emocional, acreditando no poder intrínseco da canção, Getz não é tão dogmático, fazendo bonitos sublinhados emocionais. É o caso de “O Grande Amor”, com a sua introdução chorosa, quase fúnebre, e de “Só Danço Samba”, onde Getz é bluesy e eufórico, ofendendo a sensibilidade introvertida de Gilberto. É da tensão permanente entre estas duas “vozes” que provém grande parte do charme de Getz/Gilberto.
Conta-se que num destes momentos de divergência estética, João, com o seu olímpico mau feitio, exortou a Jobim: “diz a este gringo que ele não entende patavina de samba!” Tom traduz, com a sua costumeira elegância: “Stan, o João diz que o seu sonho de sempre foi tocar contigo”.
O disco foi um sucesso tremendo, vendendo dois milhões de exemplares na América. Só não liderou a tabela de vendas porque uns tais de Beatles tinham acabado de invadir o país. É um disco que capta um momento: depois do assassinato do Kennedy, parecia que aquela brisa de Ipanema – exótica e acolhedora – afastava os traumas para longe.
Getz/Gilberto é uma daquelas raras obras onde o público em geral e a elite crítica estão de acordo (o pior dos pesadelos dos hipsters, portanto, com o seu horror histérico a qualquer democratização do bom gosto). Nós gostamos da dobradinha. O ideal de Sophia cumprindo-se: o de “uma aristocracia para todos”…
Sem comentários:
Enviar um comentário