Neu! 75, terceiro álbum do duo de Dusseldörf, é a sua incontestável obra-prima. Contemplativa no lado A, mas zangada no lado B, lança pistas em todas as direcções. Um farol para a música ambiente e para o pós-punk.
O rock experimental alemão dos anos 70, o chamado krautrock, foi um dos períodos mais inventivos da história da pop. A geração que o fez era libertária e idealista, revoltando-se contra o establishment, e isso contaminou a sua música, também ela revolucionária e utópica.
É preciso não nos esquecermos da história recente. Quando no pós-guerra se começaram a sanear os nazis depressa se concluiu que era uma tarefa impossível: a Alemanha ficaria sem elites. O passado fascista passou a ser tabu mas o conservadorismo permaneceu, subreptício. É contra ele que uma nova geração com consciência política, e radicalizada à esquerda, se mobiliza. O seu caldo cultural era estranho, misturando Marx com coca-cola, Mao-Tsé-Tung com drogaria, posters do Che Guevara com nudismo e amor livre. Os estranhos e loucos anos 70, portanto.
Eram também apaixonados por música mas estavam um bocado encurralados: por um lado, desprezavam a pop alemã (azeiteira e frívola); por outro, recusavam-se a imitar os modelos anglo-saxónicos (vistos como imperialismo cultural). De maneira que tiveram de começar do zero, explorando a electrónica emergente, e opondo-se à tradição americana baseada no blues. É este compromisso com um futurismo radical que explica o arrojo do krautrock.
Nunca houve um centro para esta “música cósmica”, espalhada por muitas cidades da República Federal Alemã, com pouca comunicação entre cada ilha. Düsseldorf era apenas mais um desses locais onde a magia acontecia mas berço de duas das mais influentes bandas kraut: os Kraftwerk e os Neu!. As duas estão, aliás, relacionadas: Michael Rother e Klaus Dinger passaram pelos primeiros antes de fundarem os segundos.
No seu álbum de estreia – Neu!, de ’72 – o baterista Dinger inventa o famigerado pulsar “motorik”, um groove monótono mas propulsivo, que evoca o prazer de viajar depressa para lugar nenhum.
A gravação do disco seguinte – Neu! 2 – foi mais atribulada: o orçamento esgotou-se a meio do caminho, com a editora a recusar qualquer dinheiro adicional. Num manguito à indústria discográfica – hoje, mítico – enchem metade do disco com remisturas de dois dos temas em diferentes velocidades. Estranhamente, resulta. Agastados, porém, com os revezes, o duo acaba, enveredando por outros projectos (Harmonia, La Dusseldörf).
Mas ainda não tinham dito tudo o que queriam dizer. Reúnem-se mais uma vez para dar ao mundo a sua obra-prima: Neu! 75. Não foi fácil. O fosso das suas sensibilidades havia-se agravado durante a separação: Michael Rother cada vez mais contemplativo e atmosférico; Klaus Dinger cada vez mais selvagem e “guitarrudo”. Arranjam, contudo, uma saída ardilosa para o impasse: o lado A fica a cargo de Rother (fundando os alicerces da música ambiente) e o lado B de Dinger (lançando pistas para o punk e o pós-punk). Eno, Bowie e Lydon ouviriam cada segundo com uma atenção religiosa.
Gostamos de tudo mas confessamos a nossa predilecção pelo primeiro lado: evocativo e plácido, projectando filmes inteiros com meia dúzia de notas, dando espaço para o silêncio respirar. A profundidade emocional é incrível, cheio de nostalgia e perda da inocência, tristonho mas transbordante. Parece que estamos numa praia deserta (as ondas para lá e para cá), recordando com ternura e dor os momentos felizes que não mais voltarão.
O lado B parece gravado por outra banda: agressivo e tosco, como quem grita: “os bárbaros estão à porta!”. Um punk cerebral, ainda assim, com a sofisticada batida motorik a purificar o crude lamacento. Nesse sentido, cremos que o punk inglês foi mais beber à nascente americana – Stooges, New York Dolls, Ramones – do que ao refinado filão germânico. Já o caso do pós-punk é diferente, minimalista mas requintado, claramente devedor do veio continental. A narrativa – que os media inventaram – de que o punk resgatou os anos 70 do marasmo e do mau-gosto é grosseiramente errada. Bowie, Roxy Music e Brian Eno foram partindo pedra, sempre em cima dos ombros dos gigantes alemães. E os Neu!, sempre na vanguarda, inventando o futuro.
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