O quinto álbum de Sufjan Stevens, Illinois, é uma espécie de Pet Sounds do século XXI: pop barroca com melodias lindas de morrer.
Quando Sufjan Stevens fez o Michigan e anunciou que faltavam 49 estados americanos para musicar, sorrimos com o dislate. Quando prosseguiu com Illinois, já não nos rimos, temendo sinceramente pela sua saúde mental. Stevens esclareceu entretanto que tudo não passava de uma piada. Não te apoquentes, querido Sufjan, quando uma manobra promocional dá origem a um disco tão bonito como Illinois todos os teus vis pecados são perdoados.
E Illinois tinha tudo para ser insuportavelmente pretensioso… É um álbum-conceito (bah!). Tem 22 temas, muitos deles interlúdios instrumentais, 72 minutos de duração (chato e comprido!). As orquestrações são eruditas, com repetições mecânicas e minimalistas à Philip Glass (boring!). Sufjan toca sozinho quase todos os instrumentos (lambão!). Os títulos das canções têm dezenas de palavras (o complexo Fiona Apple, portanto). Mas quando pomos o disco a rodar todos os nossos preconceitos se dissipam: que melodias tão comoventes, que arranjos tão imaginativos, que voz tão suave e doce. Nem só de rock’n’roll vive o homem, concluímos, rendidos à delicadeza erudita da sua folk barroca (desistam, Andrew Bird e Joanna Newsom, Sufjan leva-vos sozinho ao tapete).
A reflexão sobre Illinois é um questionamento sobre a própria América, das suas virtudes e pecados, da distância amarga entre o ideal e a realidade. Illinois foi edificado por cima de cadáveres dos índios, sugere a quase marcha militar “The Black Hawk War”. A fé no progresso, propalada na feira de Chicago de 1893, foi ingenuamente optimista, revela a eufórica “Come On! Feel the Illinoise!” (a citação do “Close to Me” dos Cure: mais do que bem-vinda). O interlúdio “To the Workers of the Rock River Valley Region” toma as dores dos que ficam de fora, os desempregados-desperdício. Na fúnebre “The Seer’s Towers”, estar no topo do maior aranha-céus de Chicago só tem uma vantagem: ver com maior clareza o fim do mundo que se aproxima.
Mas Illinois é uma finta, um mero pretexto. O que interessa a Sufjan é contar histórias e pintar emoções. Illinois é apenas o cenário vivo onde tudo acontece.
A mais arrepiante de todas aparece em “John Wayne Gacy, Jr.”. Os arranjos são austeros – um dedilhado à viola, o piano desenhando os acordes – pois não se galhofa num velório, e foram muitos os que este simpático serial killer providenciou ao mundo. Sufjan tenta e consegue o impossível: empatizar com o monstro (“his father was a drinker and his mother cried in bed”) e com as vítimas ao mesmo tempo: “twenty-seven people / even more / they were boys / with their cars / summer jobs”. Vem depois o terrível “oh my god”, condensando todo o sofrimento inominável naquele falsete aflitivo. No final, confessa, escandalosamente, que não somos assim tão diferentes da “aberração”: “I am really just like him / look beneath the floor board / for the secrets I have hid”. O mal é inescapável, intrínseco à nossa condição.
“Casimir Pulaski Day” não é menos devastador. Uma amiga próxima morre de doença terminal, com tudo o que isso implica de nos desaparecer o chão de rompante (o trompete mexicano chorando a perda – triste, tristíssimo). A atenção ao detalhe torna tudo mais vívido: a camisa aprumada mas os atacadores desapertados, sugerindo a confusão e o desnorte. A sua própria fé cristã é abalada: “tuesday night at the bible study / we lift our hands and pray over your body / but nothing ever happens”. O grande Deus… mudo e quedo, afinal, perante o corpo inerte.
Em “The Predatory Wasp of the Palisades Is Out to Get Us!”, Sufjan recorda um amor vulcânico por outro rapaz numa colónia de férias cristã. A orquestração trémula e estonteante espelha o desejo adolescente e doloroso (a tal ferrada de uma vespa como metáfora do estremecimento do primeiro amor). A tensão entre os interditos da sua religião e a vontade autónoma do seu corpo e espírito transborda nesta comovente canção. A sua fé é um tema recorrente, sem nunca cair na grosseria da evangelização (todos os artistas de christian rock serão punidos pelos seus crimes estéticos, nas labaredas eternas do inferno).
Illinois não apareceu do nada. Beach Boys, Simon & Garfunkel e Elliott Smith são nomes que nos vêm à cabeça, pela doçura, pelo requinte, pelo melodismo. As descendências também são muitas, de Julia Holter aos Beirut, tudo mais ou menos consensual. O que divide os fãs é outra coisa: será Illinois ou Carrie & Lowell a obra-maior de Sufjan Stevens? Quem preferir a folk pura e dura, com arranjos austeros, sem nada nos distrair da melancolia das canções, escolherá Carrie & Lowell. Quem optar por uma paleta mais variada de timbres e emoções, poderá sempre contar com Illinois. Ambos têm das mais bonitas melodias que a pop do século XXI ofereceu ao mundo. Venha agora Deus e escolha.
Sem comentários:
Enviar um comentário