Na virada da década de 1980 para a década de 1990, a capital de Pernambuco, Recife, vivia um grande marasmo cultural. Nada de novo e instigante acontecia. A cidade ainda vivia na ressaca da sonoridade tropical de Alceu Valença, Geraldo Azevedo dentre outros artistas pernambucanos. Mas era uma geração que havia despontado nos anos 1970.
Foi em cima desse marasmo, dessa paralisia cultural, carente de novidades transformadoras que um grupo formado por jovens músicos, artistas plásticos e intelectuais, decidiu mudar aquela situação. Tendo à frente Chico Science, Fred Zero Quatro (líder da banda Mundo Livre S/A), Renato Lins (mais conhecido como Renato L), esse grupo de artistas criou o movimento denominado Manguebit. O nome era a conjunção de mangue - referente aos manguezais tão presentes na geografia do Recife, rico em biodiversidade - com o bit, de computador, representando a tecnologia, a eletrônica, o futuro. Esteticamente, o movimento propunha a conexão entre as tradições populares pernambucanas com a contemporaneidade, com as vanguardas. Com o tempo, o nome do movimento passou a ser grafado como “Manguebeat”, com o “beat” (ritmo, em inglês).
Recife: berço do movimento manguebeat nos anos 1990. |
Tendo a música como principal veículo de expressão, o manguebeat propunha uma fusão musical que envolvia os ritmos musicais tradicionais pernambucanos como maracatu, coco e ciranda, com expressões musicais de cultura de massa como o rock, rap, funk e o pop eletrônico. A cidade do Recife com os seus manguezais e sua desigualdade social, era o cenário principal nas letras das músicas dos cantores e bandas do movimento como Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi, que começava a ganhar força e agitar a cena musical da capital pernambucana naquele começo dos anos 1990.
A banda Chico Science & Nação Zumbi, nasceu da junção de músicos da banda de rock Loustal e do bloco afro Lamento Negro, em 1991. Chico agregava à mistura musical da sua nova banda, a sua experiência com cultura hip-hop, quando fazia parte do grupo Orla Orbe, no final dos anos 1980. Em pouco tempo, a banda era um dos principais nomes daquele novo movimento.
Chico Science (de pé de braços cruzados à esquerda) e Fred Zero Quatro: líderes respectivamente da Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre/SA, bandas disseminadoras do manguebeat. |
Em julho de 1992, foi divulgado nos meios de comunicação o release Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero Quatro e que acabou se tornando o manifesto do Manguebeat, o movimento, e consequentemente, todos os artistas envolvidos ganharam visibilidade da grande mídia. A efervescência musical no Recife chama a atenção da imprensa musical do resto do Brasil, que a princípio, teve dificuldade de entender aquele novo caldeirão sonoro tão poderoso e moderno que não se via desde o Tropicalismo. Em de dezembro de 1993, a edição da revista Bizz daquele mês trouxe uma entrevista com a banda Chico Science & Nação Zumbi. No mês seguinte, a banda é uma das atrações da primeira edição do Festival Abril Pro Rock no Recife, evento que nasce com a explosão do movimento Manguebeat, colocando a capital pernambucana no mapa da música pop contemporânea brasileira.
Recife logo ficou pequena para Chico Science & Nação Zumbi. Em julho de 1993, a banda é capa do Caderno 2 do “Jornal do Brasil”, do Rio de Janeiro. Na mesma época, Chico e seus companheiros fazem uma pequena turnê por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, abrindo assim caminho para outras bandas pernambucanas. A banda assina contrato com o selo Chaos, uma subsidiária da Sony Music, e entre meados de 1993 e janeiro de 1994, e entra no estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, para gravar o seu primeiro álbum, sob a produção de Liminha.
Chico Science & Nação Zumbi e o produtor Liminha durante as gravações de Da Lama Ao Caos. |
O álbum de estreia de Chico Science & Nação Zumbi já estava praticamente pronto no início de 1994, mas por causa da caxumba contraída pelo guitarrista Lúcio Maia, o músico não pode gravar as guitarras, o lançamento do álbum foi adiado. Finalmente, após o músico ter gravado as bases e solos de guitarra, o intitulado álbum Da Lama Ao Caos foi lançado em abril de 1994.
A faixa que abre o álbum é “Monólogo Ao Pé Do Ouvido”, cujos primeiros versos são uma tradução do movimento manguebeat: “Modernizar o passado é uma evolução musical...”. Sob uma base percussiva, Chico Science saúda Zapata, Zumbi, Antônio Conselheiro, Augusto Sandino e Panteras Negras, cada um fazendo as suas revoluções, defendendo a seus modos as suas causas, assim como Chico Science e os “mangueboys” promoveram uma revolução na música pop brasileira nos anos 1990.
Emendada na primeira faixa, “Banditismo Por Uma Questão De Classe” é uma embolada cheia de percussão e guitarras ferozes na qual Chico Science versa sobre o banditismo social. O crescimento voraz de uma metrópole como Recife em confronto com a riqueza natural dos seus mangues é o tema da faixa seguinte, “Rios, Pontes E Overdrives”. “A Cidade” é uma embolada pop que retrata a realidade as mazelas sociais do Recife. Em “A Praieira”, Chico Science & Nação Zumbi conectam na tomada a ciranda, um ritmo popular e tradicional da cultura pernambucana, acrescentando baixo e guitarras. A música ficou célebre pelos versos “Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”.
Contraste social no Recife: tema abordado pela canção "A Cidade". |
“Samba Makossa” é um cruzamento do samba brasileiro com a makossa, ritmo típico da República dos Camarões. A fusão promovida pela banda pernambucana é acrescida de uma guitarra melódica executada com competência por Lúcio Maia. Luta pela sobrevivência contra a fome num cenário de miséria numa metrópole como Recife, é o tema central de “Da Lama Ao Caos”, faixa que dá nome ao álbum, enquanto que a violência orbita os versos de “Maracatu Certeiro”, um maracatu cheio de guitarras distorcidas e raivosas.
Na curta e instrumental “Salustiano Song”, Chico Science & Nação Zumbi prestam homenagem ao cantor e rabequeiro Mestre Salustiano, uma das figuras mais importantes da cultura popular de Pernambuco. Lúcio Maia faz solos na sua guitarra que simulam uma rabeca. Com uma envolvente base funk, “Antene-se” aborda a dura realidade social do Recife, mas aponta que a mudança dessa realidade estaria no mangue: “Recife, cidade do mangue / Onde a lama é a insurreição / Onde estão os homens caranguejos”. Os tais “homens caranguejos” seriam os seres pensantes, com a capacidade de promover a transformação dessa realidade, provavelmente os próprios membros do movimento mangue beat (os “mangueboys” e as manguegirls”) e a sua busca pela revolução cultural na capital pernambucana.
Chico Science: líder da Nacção Zumbi e um dos articuladores do movimento manguebeat. |
“Risoflora” traz um pouco de romantismo ao álbum, mas sem sair do “habitat natural” do álbum, os mangues e os rios do Recife: “Em meus braços te levarei como uma flor / Pra minha maloca na beira do rio, meu amor”. “Lixo Mangue” é mais uma faixa curta e instrumental de Da Lama ao Caos e que traz riffs poderosos e pesados de guitarra de Lúcio Maia sobre uma base percussiva que lembra o frevo. Na visionária “Computadores Fazem Arte”, Chico Science já discutia o avanço do emprego da tecnologia na produção artística, algo que se tornaria ao longo do tempo cada vez mais intenso. Fechando o álbum, outra faixa instrumental, “Coco Dub (Afrociberdelia)”, onde mais uma vez a guitarra de Lúcio Maia se destaca, em meio à percussão e loops.
Da Lama Ao Caos causou um certo estranhamento para o grande público e até mesmo para parte da crítica. Mas aos poucos, o álbum foi sendo assimilado e conquistando a confiança do público. Algumas faixas do álbum começaram a tocar nas emissoras de rádio e TV. “A Cidade” teve o seu vídeo clipe bastante veiculado na MTV Brasil. A música foi incluída da trilha sonora da segunda versão da novela Irmãos Coragem, da Rede Globo, em 1994. No mesmo ano, outra faixa do álbum fez parte de trilha sonora de novela, “A Praieira”, desta vez da novela Tropicaliente, também da Rede Globo. Isso ajudou a dar mais visibilidade a Chico Science & Nação Zumbi.
Com pouco mais de 100 mil cópias vendidas, a fama de Da Lama Ao Caos ultrapassou as fronteiras brasileiras. O álbum foi matéria jornalística da imprensa internacional, como a edição norte-americana da revista Rolling Stone. Logo surgiram convites para apresentações no exterior e uma primeira turnê internacional por cinco países. Em julho de 1995, Chico Science & Nação Zumbi se apresentaram com Gilberto Gil no Central Park Summer Festival, em Nova York, Estados Unidos. A banda deu uma esticada e tocou no lendário CBGB’s, templo do punk nova-iorquino. No mesmo ano, os pernambucanos se apresentaram no Festival de Montreaux, na Suíça. Ainda sob o efeito do prestígio de Da Lama Ao Caos, tocaram em janeiro de 1996, na oitava e última edição do Festival Hollywood Rock.
Chico ainda lançaria com a Nação Zumbi o segundo álbum da banda, o também elogiado Afrociberdelia, em maio de 1996. Mas lamentavelmente, em 2 de fevereiro de 1997, o líder da Nação Zumbi faleceu precocemente num acidente de carro numa estrada entre o Recife e Olinda. Tinha apenas 30 anos de idade. Apesar de ter perdido a vida ainda tão jovem, Chico Science deixou um legado riquíssimo para a música pop brasileira. Mesmo com sua morte, a banda Nação Zumbi seguiu em frente levando o legado de Chico Science. Da Lama Ao Caos frequenta as listas e enquetes de maiores álbuns da música brasileira de todos os tempos.
Faixas
- "Monólogo Ao Pé do Ouvido"
- "Banditismo Por Uma Questão de Classe
- "Rios, Pontes & Overdrives" (Chico Science e Fred Zero Quatro)
- "A Cidade"
- "A Praieira"
- "Samba Makossa"
- "Da Lama Ao Caos"
- "Maracatu De Tiro Certeiro" (Chico Science e Jorge du Peixe)
- "Salustiano Song" (instrumental) (Chico Science e Lúcio Maia)
- "Antene-se"
- "Risoflora"
- "Lixo Do Mangue" (instrumental) (Lúcio Maia)
- "Computadores Fazem Arte" (Fred Zero Quatro)
- "Coco Dub (Afrociberdelia)"
Todas as canções foram escritas por Chico Science, exceto as indicadas.
Chico Science & Nação Zumbi: Chico Science (voz, samplers em “Lixo Do Mangue”), Lúcio Maia (guitarras) Alexandre Dengue (baixo), Canhoto (caixa), Gilmar Bolla 8 (alfaia), Gira (alfaia), Jorge du Peixe (alfaia e tonel em "A Cidade") e Toca Ogam (percussão e efeitos).
Ouça na íntegra o álbum Da Lama Ao Caos
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