domingo, 29 de janeiro de 2023

DESPEDIDA DE ZECA AFONSO NO COLISEU DE LISBOA FOI HÁ 40 ANOS

"Águas das fontes calai / ó ribeiras chorai / que eu não volto a cantar": os versos cantados em 'Balada de Outono' comoveram toda a sala. José Afonso estava a dizer-nos adeus.

A 29 de janeiro de 1983, há exatamente 40 anos, Zeca Afonso deu finalmente o seu concerto em nome próprio na grande sala histórica da capital portuguesa, o Coliseu dos Recreios. Mas seria uma despedida dos palcos, a mais imortalizada de todas (por causa do disco "José Afonso Ao Vivo no Coliseu" e do registo filmado pela RTP que daria origem ao DVD), embora o concerto final tivesse sido no Coliseu do Porto, a 25 de maio desse ano de 1983. 

Na gravação filmada da RTP no Coliseu dos Recreios, vemos uma sala a transbordar de gente. Quando Zeca Afonso entra em palco, com o seu cabelo um pouco desalinhado e os seus óculos característicos, a realização de Luís Filipe Costa dá espaço à longa ovação em pé de todo aquele público carregado de afeto e de gratidão, num tributo por todos aqueles anos. Mas José Afonso parecia  ainda tenso, talvez preocupado com a responsabilidade em conseguir aguentar fisicamente um concerto inteiro.

Todos sabiam que José Afonso estava doente. O músico sofria de uma doença neurodegenerativa em estado avançado e sem cura, a esclerose lateral amiotrófica. Conscientes desta situação, os seus companheiros da Cooperativa Eranova, que havia lutado pela profissionalização dos músicos e essencialmente para que deixassem de tocar à borla, organizaram o concerto de Zeca Afonso no Coliseu dos Recreios  O músico Francisco Fanhais, companheiro de Zeca Afonso em diversas ações pelo país durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso) e membro da Cooperativa Eranova, lembra-se bem dos preparativos: “foi uma coisa que nos deu muito trabalho, mas também muito entusiasmo”, declara à nossa rádio. “Quando nos apercebemos, e ele também, do problema de saúde que tinha, achámos que ele devia fazer um concerto, se ele tivesse forças para isso. Entusiasmámo-lo, arranjou coragem para enfrentar (o concerto no Coliseu), escolheu o reportório, contratou músicos. Escolheu-se o local, pagou-se ao Coliseu, contactou-se a televisão e o espetáculo organizou-se. Nós tínhamos a impressão que o Zeca estava a fazer um esforço enorme para que chegasse ao fim do espetáculo. As expetativas foram superadas, porque o Zeca estava ao início um pouco hesitante, mas a pouco e pouco, à medida que o que ia cantando ia encontrando no coração das milhares de pessoas que iam enchendo o Coliseu, ele foi-se superando e no fim já era ele que comandava e que agitava os braços, a marcar ritmos e compassos. Isso foi uma coisa impressionante”.

 

Júlio Pereira foi um dos principais músicos a acompanhar Zeca Afonso no concerto, em especial na segunda parte. Mais complicados foram os preparativos. “É bom referir que esse espetáculo aconteceu quando não havia propriamente produção de concertos. Foi tudo em cima da hora. E tornou-se possível por causa da Cooperativa Eranova, onde estavam todos os grandes cantaures, como o Zeca, o Vitorino ou o Sérgio Godinho”. A contagem decrescente para o concerto no Coliseu marca negativamente outro dos músicos envolvidos, Janita Salomé, por outra razão bastante evidente. “Tenho má memória dado o estado em que ele estava e a consciência de que era a última vez em que ele cantava. Prefiro até náo guardar esses momentos e guardar os melhores”. O jornalista Viriato Teles, que conquistou proximidade com Zeca Afonso nos anos anteriores, refere que a sua condição frágil mobilizou alguns cuidados no Coliseu dos Recreios: “não em termos oficais, e sem o Zeca soubesse, e a própria família penso que não, havia médicos estrategicamente colocados nas filas da frente. Havia esse problema de não se saber como é que as coisas iam acontecer”.

Foram muitas as personalidades que quiseram estar presentes nesse concerto de José Afonso no Coliseu de Lisboa, incluindo os “capitães de Abril”, como o tenente-coronel Vasco Lourenço. “O Coliseu dos Recreios era a sala de espetáculos principal da altura. E tinha um significado muito especial. Foi lá que houve em março de 1974 um acontecimento muito especial, quando se cantou a Grândola Vila Morena, que se tornou na segunda senha para o 25 de Abril. Foi no Coliseu que houve alguns especáculos importantes depois do 25 de Abril. Se o concerto não tivesse sido no Coliseu de Lisboa, o significado não teria sido o mesmo”.  

 

Nas primeiras músicas do concerto de Zeca Afonso de 29 de janeiro de 1983, as luzes que se refletiam nos seus óculos não eram só as da sala, eram acima de tudo da Coimbra universitária por onde passou. O encanto da despedida soava contraditório, porque o canto estava a sumir-se. Ladeado por quatro instrumentistas da cidade banhada pelo rio Mondego - Lopes de Almeida e Octávio Sérgio nas guitarras portuguesas e António Sérgio e Durval Moreirinhas nas outras guitarras - Zeca estava mais compenetrado, ora a cantar de mãos nos bolsos, ora sentado para descansar e beber mais uns goles de água. O seu último disco, lançado em 1981, era curiosamente um regresso às raízes: “Fados de Coimbra”. 

À quinta música do alinhamento, 'Balada de Outono', o ar de José Afonso torna-se ainda mais carregado, quando arranja fôlego para cantar os versos premonitórios: “Águas das fontes calai / ó ribeiras chorai / que eu não volto a cantar”. Quando José Afonso se senta após aqueles versos, parece lugubremente derrotado pelo destino. A sala estremece com aqueles versos, com um novo sentido cruel. na letra 

"Sabia-se que muito dificilmente o José Afonso voltaria a dar espetáculos. Toda a gente sabia que um novo espetáculo era praticamente impossível e que aquela era uma despedida, por muito que não se quisesse aceitar isso. Tínhamos todos essa noção e, durante o espetáculo, há um momento muito claro logo nos primeiros temas, na Balada de Outono, em que canta o verso 'que eu não volto a cantar', em que há uma falha na voz dele. Esse foi um momento em que houve uma clara emoção na sala toda, porque tínhamos a noção de que isso iria acontecer, que ele não voltaria a cantar", lembra com precisão jornalística Viriato Teles, que naquela noite estava em reportagem para o jornal Se7e. Viriato Teles que era um dos muitos presentes na sala que estava de pé, zelosamente junto ao palco após ter partido os óculos dias antes e sem outro remédio para a sua miopia que não a proximidade junto do acontecimento.   

 

Para outros dos espectadores presentes, Sérgio Godinho, esses versos "tiveram um significado pungente". Francisco Fanhais lembra que esses versos provocaram "um frémito coletivo no Coliseu todo, que é uma coisa que eu nunca mais vou esquecer. Não me vou mais esquecer da coragem que ele teve e que transmitiu a todos nós”.

 

O dossiê de letras que estava aberto para José Afonso poder cantar e folhear ao longo do concerto estava marcado a vermelho com palavras de alento escritas por Francisco Fanhais. “Força, José, vira a folha!”; “2 intervenções instrumentais - podes descansar um pouco”; “força, rapaz!”. “São estes pequenos estímulos que eu escrevi para poder entusiasmar o Zeca para superar a fraca condição de saúde em que ele estava”, diz-nos Fanhais. 

À sexta música, 'Canção de Embalar', José Afonso fica a sós em palco com o velho companheiro das lides de Coimbra, o guitarrista Rui Pato. A seguir, Zeca Afonso confessa não estar “seguro de cantar de enfiada” o 'Natal dos Simples', conhecida como a música das Janeiras. É nessa música que surge em palco Francisco Fanhais para os coros. “Nessa altura, falei com o Zeca: ‘ò Zeca, também quero fazerr uma perninha, numa cantiga do programa. Lá estivemos a ver qual é que era e (a decisão) foi o Natal dos Simples. O Zeca chegou a essa altura e começou a falar. Eu estava na lateral do palco, atrás do pano, a ver que ele ainda se esquecia de me chamar e que eu tinha de entrar em palco à socapa. 'Ò Zeca, chama-me'. Ele ouviu-me a chamar. A minha única participação vocal e musical (do concerto no Coliseu) foi ter feito as vozes com ele no Natal dos Simples.

 

Nessa música das Janeiras, a mão esquerda de Zeca começa a dançar. Há um imenso corpo que começa a renascer. E a câmara de TV foca os vários rostos, e todos eles vão cantarolando: Otelo de cravo, Sérgio Godinho noutra fila da plateia. 

"Onde é que estão as novas gerações?", pergunta Zeca Afonso antes de cantar os famosos 'Vampiros', onde surgem Janita Salomé, Júlio Pereira e o flautista Sérgio Mestre que fazem os coros em irmandade, como três corpos num só rochedo de carne e de muita alma. À frente do palco um coro de milhares da assistência junta-se-lhes, incluindo o militar da Revolução dos Cravos, Vasco Lourenço, filmado de emoções arrebatadas, a cantar o velho tema de rutura estética com a tradição coimbrã. 

 

Ao intervalo, Júlio Pereira fez massagens a Zeca Afonso nos camarins. “Ele tee que me explicar, que eu não sabia como é que se fazia”, admite Júlio Pereira. “Havia uma grande carga de nervos, que se manifestou na primeira parte do concerto. Na segunda parte começa a ficar mais descontraído porque estava a tocar com os seus músicos: eu, o Guilherme Inês, o Rui Castro e principalmente o Janita Salomé e o Sérgio Mestre. Aí, já havia um hábito, depois de termos feito 150 concertos. Já estava mais rodado e nota-se no vídeo. Nota-se claramente que na segunda parte ele começa a ficar mais descontraído”. Janita Salomé também sente esse crescimento físico de José Afonso ao longo do concerto. “Ele soltou-se mais e foi ganhando confiança. Parecendo que não, ele era um homem confiante, assertivo e objetivo nas suas intervenções. Na adversidade, ele foi forte e superou-se. Ultrapassou a doença terrível que o afetava”.

 

Antes de cantar 'A Morte Saiu à Rua', José Afonso dedicou o tema a Adriano Correia de Oliveira, outro velho companheiro de luta de Coimbra, falecido três meses antes. A canção estava com um tratamento diferente, com mais batucada, sobretuda vinda das mãos de Guilherme Inês, ocupado nas congas. Três temas adiante, em 'Milho Verde', Zeca Afonso lembra as semelhanças da cantiga com os ritmos africanos, num tema esmagadoramente nacional, onde se sente uma entoação de cantar alentejano nesta versão - a que não se deve só à presença de Janita Salmé nas vozes.
 
Mesmo debaixo das emoções de um concerto de despedida, José Afonso mantém o seu espírito de companheirismo bem vivo. Elogia o álbum ainda com poucos meses de Fausto, "Por Este Rio Acima", e lembra os discos que Vitorino e Sérgio Godinho, também presentes na sala, estavam para lançar. 

Zeca Afonso não pára de elogiar os tempos do PREC - "uma época em que o povo era o sujeito da história" e em que "era mais do que pôr um voto na urna". 

A càmara da RTP vai viajando de uma ponta à outra da sala, mostrando uma sala sobrelotada, com muitas cabeças (algumas delas reconhecíveis) e nenhum espaço vazio. Vão-se vendo pessoas com um ar antigo e invernal, de gabardinas e cortes de cabelo de outro tempo. 

Em 'Venham Mais Cinco', o Coliseu ilumina-se de isqueiros erguidos no ar, enquanto se sente em palco o bichinho africano da música a fazer mexer corpos e a dar nova vida a Zeca. A voz de Zeca alcança falsetes e projeta-se mais além, e a doença retrocede naqueles momentos, de tanta alegria de viver.  

Para o final, fica guardada a apoteose, com "aquela novíssima canção chamada Grândola Vila Morena". Zeca Afonso, com papelinhos no cabelo, lança o repto: "se quiserem juntar-se, não sei se isto é permitido". Uma série de personalidades sobe a palco. Todos abraçados, ondulam, do palco às bancadas e camarotes, como se fosse um enorme grupo de cantares alentejanos.

Sérgio Godinho foi um dos muitos que subiu a palco no tema final. “Uma série de músicos estavam lá, irmãos de armas sonoras, em grande comunhão. Até porque o Grândola tinha sido cantado naquele palco noutras circusntâncias. Estava tudo carregado de simbolismo e de uma alegria da música”. Júlio Pereira lembra-se que em 1983, o Grândola Vila Morena não merecia a mesma exaltação de outrora. “Já se sentia pouco entusiasmo coletivo a cantar essa música. Todo o panorama musical a nível da televisão e da rádio tinha mudado completamente. Mas o Grândola no Coliseu foi de facto emocionante, a ser cantado com uma alegria e um entusiasmo fantásticos”. Vasco Lourenço foi um dos capitães de Abril a subir a palco para cantar Grândola. “Estava de braço dado com a engenheira Lourdes Pintassilgo e o Otelo Saraiva de Carvalho. Foi de facto um concerto que teve uma forte importância e foi em certa medida uma despedida do Zeca dos palcos”.


Mais do que um ambiente agregador das esquerdas naquela sala centenária à pinha, havia uma universalidade maior em torna da figura de Zeca Afonso, segundo o que sentiram os nossos entrevistados naquela noite em Lisboa. É o caso do jornalista Viriato Teles, atualmente a trabalhar na RTP África, que anota no entanto “que na altura talvez houvesse uma maior clivagem política entre esquerda e direita, e claramente o José Afonso era um homem assumidamente de esquerda. Mas o espetáculo foi maior do que isso, até pela presença da mulher do Presidente Ramalho Eanes (Manuel Eanes), a representar o marido. O Presidente Eanes representava de algum modo aquilo contra o qual o José Afonso lutava. É evidente que havia um ambiente muito abrilista. Mas, sobretudo, havia a sensação de que o José Afonso era um cantor extraordinário e um criador genial. Podemos usar esta palavra de genial com algum rigor. A prova disso é que discos gravados há 50 anos ouvem-se como se fossem gravados na semana que vem”. Viriato Teles acrescenta que “para apreciar José Afonso, não era preciso ser-se de esquerda. Havia muita gente que já tinha essa noção da grandeza do criador que tinha” o autor de Grândola Vila Morena. Sérgio Godinho tem a mesma perspetiva: “o Zeca tinha uma qualidade musical que transcendia as posições políticas que podia ter, embora pudesse haver mais gente de esquerda. Aliás, muitas duas suas canções nem tinham essa vertente política. Há uma alegria na criação


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Beyond Belief - Towards The Diabolical Experiment (1993)

Tracklist: 1. Intro: Ave 2. Shapes of Sorrow 3. Stranded 4. The Experiment 5. The Nameless 6. Silent Are the Holy 7. Fade Away...