segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Moses Sumney – Græ (2020)


 

Ouvir Moses Sumney é chegar à perfeita realização de que é bom estarmos vivos no panorama artístico e cultural do momento. De todos os messias que as letras e os livros vaticinaram, este, do século 21, faz-nos querer encher os céus com preces de agradecimento. É impossível escutar Sumney sem que ele nos envolva numa espécie de transcendente “Matrix”.

E esta associação não foi feita ao acaso. A aura e os visuais do músico transportam-nos imediatamente para a realidade que as irmãs Wachowski imortalizaram com a lendária distopia no virar do milénio.

Viajar pela discografia do norte-americano com ascendência ganesa, é uma constante descoberta de temas que se convertem naturalmente em recém preferidos. O único lamento é que esta discografia não seja tão extensa como desejamos. Para já, conta com apenas dois EP’s, o primeiro, “Mid City Island”, a marcar a estreia do jovem messias em 2014 e o segundo, “Lamentations”, dois anos mais tade. Os “longa-duração” acompanham esta tendência para os pares, com o primeiro álbum a surgir em 2017 sob o título “Arromanticism” e o mais recente trabalho a ser lançado este ano, cripticamente sob o desígnio “Græ”, apresenta-nos vinte temas divididos em duas partes.

Este é, na minha opinião e até ao momento, o melhor trabalho de Moses. Se podemos dizer que o artista se “revelou” à indústria musical com “Aromanticism”, um álbum de uma verdade, complexidade e densidade inquestionáveis, parece-me ser mais verdadeiro dizer o mesmo multiplicando por dez quanto ao último trabalho do génio musical de 29 anos.

Porquê? Porque com “Græ”, Sumney voltou a revelar-nos o seu lado mais sombrio e introspetivo, à semelhança do que já havia feito no primeiro longa-duração, mas acrescentou uma janela que facilmente nos faz mergulhar numa nova dimensão do seu eu artístico e pessoal. Estamos a falar do seu lado mais viril, mais zangado, mais tempestivo. Grae, é um nome próprio relativamente raro que significa busca por religião e conhecimento. E essa demanda sente-se em cada verso e em cada camada melódica do trabalho. Em Aromanticism tanto a vertente lírica como instrumental são mais simples, mais delicadas, mais orgânicas. Dignas de um concerto de orquestra, com uma belíssima sobreposição vocal acariciada por um trabalho impressionante de cordas. Quando digo mais simples, não o digo como uma menorização do incrível disco que é, digo-o sim, porque é de audição mais harmoniosa e menos esquizofrénica do que a que é possível fazer com o mais recente disco do artista.

Em “Græ” a extravagância vocal e instrumental do ganês Sumney estão patentes em cada palavra, em cada cadência, em cada explosão e implosão.

“Insula” é não só a porta aberta para uma imersão completa neste trabalho, como também nos transporta e põe em contacto direto com o estado de espírito que Sumney quer que sintamos nesta experiência auditiva. Moses quer criar um “mood latente”, não obrigatório, não compulsório, mas enriquecedor. Moses quer que a viagem seja individual, ao íntimo mais fundo de cada um de nós, mas que a partilha torna mais densa e profunda.

De um trabalho tão exímio é difícil destacar temas, daí que considere importante falar da “Insula” que nos transporta e imerge na ambiência que Moses Sumney quer para a audição deste disco e também de “Virile” que será possivelmente uma das melhores canções que este século viu germinar. “Virile” condensa em si tudo o que uma grande música deve agregar. Um bom gosto tremendo nos arranjos musicais, uma letra simultaneamente bela e acutilante, a verdade do artista que espelha em si a realidade de tantos outros que nele se reveem e é claro, estar imbuída de crítica social.

Este “Virile” parece-me ser o tema, talvez de todos de Sumney, que melhor veicula a sua essência e todos os seus ismos dolorosos e fraturantes, a luta pela normalização do seu aromanticismo, a luta pela “libertação” de pessoas queer e não binárias e fundamentalmente a dura batalha pela normalização da ideia de que um homem pode e deve e expressar a sua “feminilidade” (seja isso o que for) e que uma mulher pode e deve expressar a sua “masculinidade” (seja isso o que for).

Moses Sumney vive desse confronto, dessa ambiguidade de apresentar-se como uma figura forte e tipicamente associada aos estereótipos daquilo que é visto pela sociedade em que vivemos como masculino e mistura-o com o seu lado mais artístico e subtil, talvez percecionado como mais feminino, por exemplo, através da forma como se veste, dança e se move. Moses é arte, é choque, é cultura, é intervenção, é informação, é pura alma brilhante e criativa. O tão desejado Messias chegou. Louvai!

“Cheers to the patriarchs/ And the marble arch/ Playin’ their part/The gatekeeper’s march”

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