terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Pesniary: da Bielorrússia com amor

 

Contrariando aqueles que acham que a Lituânia é a Meca dos proggers que buscam nas obscuridades progressivas uma forma de auto-estima, faz tempo que eu alimento meu ego garimpando também os discos de grupos de outros países da ex-Cortina de Ferro. E prefiro o progressivo porque nenhum outro estilo dentro do rock soube acolher tão bem a tradição folclórica e as raízes sonoras dos países que ele, na falta de uma expressão melhor, invadiu. Desculpe se faço os Stalin da vida e todo o politburo do Partido Comunista da ex-União Soviética revirar nos devidos caixões, mas o rock talvez tenha sido o mais bem sucedido (e um dos mais temidos) aliciador capitalista da juventude vermelha do pós-guerra. Basta saber que ele também estava incluído na pauta de aberturas que Aleksander Dubcek queria promover na Tchecoslováquia com a chamada Primavera de Praga. E deu no que deu.
A Bielorrússia (ou Belarus), um país vizinho da Lituânia, tem 80% do seu território coberto por florestas e seus habitantes se concentram nas áreas urbanas em volta da capital Minsk e das outras capitais das divisões regionais do país. Seu nome deriva da expressão Rússia Branca, que descrevia a área da Europa Oriental coberta por neve e povoada por povos eslavos. O homem moderno já andava por lá entre 5000 e 2000 anos A.C. Isso nos dá uma ideia do tamanho de sua história e da riqueza de suas tradições. Essas, datam dos tempos medievais e como o país esteve sempre estrategicamente localizado na junção das rotas comerciais que interligavam a Europa Oriental e a Ocidental, sendo alvo constante das políticas expansionistas de seus vizinhos, os habitantes da Bielorrússia fizeram da preservação de sua língua e de suas tradições a principal marca de sua identidade cultural.
Pode-se dizer que o rock em Belarus começou em 1968 em torno da figura talentosa e carismática de Vladimir Mulyavin, um músico de formação clássica e entusiasta do folclore de seu país. Ele já participava de festivais em 1957 e colecionou vários títulos em sua longa carreira (morreu em 2003, vítima de um acidente de trânsito), como o de “Trabalhador Honrado da Cultura da Polônia”, em 1980, até o de “Artista do Povo da URSS”, em 1991, o maior prêmio concedido pela Mãe Rússia aos seus filhos desvairados.
Desvairado pode não ser uma palavra feliz ou justa para descrever Vladimir, mas se encaixa perfeitamente na ideia que o governo comunista fazia das pessoas que se deixavam influenciar pela crescente popularidade do rock ocidental nos países soviéticos durante os anos 60. Tanto que o governo russo tentou controlar de perto cada aspecto da produção de música popular, do estilo musical e conteúdo das letras até a forma dos artistas se apresentarem no palco e o comportamento do público. Também tratou de incentivar a criação de conjuntos vocais e instrumentais que pautassem suas mensagens de um conteúdo não político e as executassem de forma comportada. Foi nesse clima de censura que o público de Belarus conheceu um desses conjuntos, o PESNIARY, comandado pelo nosso Vladimir Mulyavin, um grupo de músicos formados que não cantava em russo, mas na língua de seu país e que, apesar disso, soube ser palatável aos censores de plantão.
Deixando de lado esses aspectos políticos, mas fundamentais para entender o som do Pesniary, vamos nos concentrar na banda: entre 1967 e 68, Mulyavin  formou o conjunto Liavony (Os Bufões) para extravasar seu entusiasmo pela música folk e seu crescente amor pelos Beatles. Nessa época tocavam versões de “Yesterday” e “Ob-La-Di Ob-La-Dá” com letras vertidas para o russo.  No ano seguinte, porém, o músico trata de levar mais além o trabalho despretensioso do grupo e decide mudar seu nome para Pesniary (Os Contadores de Histórias), adaptando as tristes e delicadas canções do folclore de Belarus para instrumentos modernos. O resultado é absolutamente único, um amálgama excêntrico de vários instrumentos (haviam nove elementos em sua formação) e de incríveis trabalhos vocais. Não era apenas criar arranjos roqueiros para músicas folk, mas desenvolver e enriquecer essas músicas sem abdicar de sua alma e paixão originais.  De uma maneira particularmente russa, eles foram psicodélicos em seus primeiros dias, amadurecendo e crescendo em complexidade até desenvolver trabalhos conceituais na melhor tradição progressiva lá pela segunda metade dos anos 70.
Pena que não é fácil encontrar informações sobre o Pesniary em sites oficiais e de fã-clubes que não sejam na língua russa. E existem vários, pois a banda foi uma das mais populares da União Soviética, vendendo aos milhões cada LP e single lançados. Fosse em qualquer país capitalista e seus músicos estariam milionários, mas na Rússia recebiam apenas uma ajuda de custo da única gravadora do país, a Melodyia, que, por outro lado, cobria todos os custos de gravação e lançamento e cuidava da promoção. No auge de sua popularidade, chegaram a fazer até quatro shows dia sim, dia não e, em 1976, realizaram uma grande e bem sucedida excursão pelo sul dos Estados Unidos e se apresentaram no Midem, em Cannes.
Bom, como o assunto tratado aqui é rock progressivo, vamos passar direto para o quarto disco do Pesniary, lançado em 1978 e cujo nome em inglês é Byelorussian Folk Songs. A música que interessa aqui é a que abre o LP, “Perapyolachka (A Codorniz)”. Não tenho ideia do que diz a letra, mas sei que é uma metáfora sobre a difícil condição feminina nos tempos passados. A melodia tormentosa e os vocais intensos e sofridos sugerem uma tristeza de fazer qualquer cossaco depressivo ficar uma semana de cama, em posição fetal. As vocalizações são no mínimo exóticas para os ouvidos ocidentais, e mesmo aqueles que já estão fartos das refeições diárias de Close to the Edge e outras iguarias do cardápio prog inglês, vão estranhar o arranjo excêntrico de flautas, violinos e outros instrumentos que eu nem sei como dizer o nome em português. O resultado final, porém, é marcante, como se a cápsula do toca discos transportasse o ouvinte para um universo sonoro totalmente desconhecido. Uma viagem de pouco mais de dez minutos de duração, mas com a sensação de uma aventura completa. O restante do disco também tem vários climas progressivos, com flautas, violinos, órgão, piano forte e até mesmo um som que lembra o Theremin, mas na realidade é apenas a voz de um dos cantores.
Milyavin, na segunda metade dos anos 70, também se rendeu aos álbuns conceituais. Passou a estudar a obra do poeta e escritor Ivan Daminikavich Lutsevich,  que escrevia sob o pseudônimo de Yanka Kupala, considerado um dos maiores escritores belarus do século XX, e compôs duas óperas-rock baseadas em seus poemas. A primeira delas, Pesnia pra Doliu (A Canção do Destino), de 1976, teve algumas apresentações ao vivo e nunca foi lançado em LP. Eu ouvi no Youtube e achei muito Broadway para o meu gosto. Já Gusliar (O Tocador de Gusla, um instrumento de cordas típico da região dos Balcãs), lançada em LP em 1979 e baseada no poema “Kurgan”,  e também na música do compositor Igor Luchenok, é uma das mais incríveis experiências progressivas que meus ouvidos já viveram.
Andei lendo por aí algumas comparações entre o som de Gusliar e os trabalhos de grupos prog italianos como Banco del Mutuo Soccorso, Premiata Forneria Marconi, Bloco Mentalle e Alusa Fallax. Até pitadas de Ennio Morricone e Jesus Christ Superstar enfiaram no meio. Bobagem. Algumas pessoas parecem necessitar de pontos de referência confortáveis para compreender qualquer coisa estranha ou inexplicável. Como se cortar em tiras a foto de um boi ajudasse a explicar melhor a sensação de comer um bom bife.  E tem também o fato de que eu duvido que Vladimir conhecesse essas bandas na época. Gusliar é um épico ambicioso e soa muito original. 

Do que eu entendi do enredo, o tocador de gusla é convidado a tocar no casamento de uma princesa e não se contém enquanto não denuncia o estado de extrema pobreza em que vive o povo. O rei então o condena a ser enterrado vivo. Mais tarde, sobre o túmulo do músico nasce um carvalho cujas folhas jovens, sopradas ao vento, vão contando a história do tocador de gusla. São quase trinta e sete minutos de tensão dividida em dezenas de texturas. Temos piano interagindo com metais, bateria duelando com o baixo, moog em vôos kamikaze, vocais em acapela e corais suntuosos. O som é assombroso, por vezes étnico, no limite da opressão, mas meticulosamente construído emocional e melodicamente. Não me arrisco a ir além nesta descrição porque adjetivo nenhum é capaz de fazer justiça à surpresa que é ouvir Gusliar pela primeira vez. E tem razão quem acha que eu exagero. Sou completamente apaixonado por esse disco.

O Pesniary fez ainda mais sucesso nos anos 80 e 90, mas seu som ganhou roupagens mais pop. Teve inúmeras trocas em sua formação e permaneceu vivo mesmo após a morte trágica de seu líder. Hoje existem três Pesniary diferentes em atividade na Bielorrússia. É que o legado de Vladimir Mulyavin é muito grande para ser carregado sozinho.
As músicas do Pesniary tratadas no texto:
Perapyolachka
Gusliar” (completo) 
Alguns vídeos do começo da carreira do Pesniary
1971 

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