Das cinzas de um projecto falhado, nasce o despretensioso Who’s Next, tão imaginativo como Tommy e Quadrophenia mas sem o seu peso conceptual. O favorito dos fãs menos virados para as óperas rock.
Na sua fase inicial (mod, feedback e anfetaminas), os Who são uma banda de singles. “My Generation”, “I Can’t Explain” e “Substitute” são alguns dos deliciosos 45 rotações com os quais a Swinging London se enfeita (três minutos bastam para fazer um homem feliz). Na corrida de fundo dos LPs, o caso muda de figura: My Generation (1965) e A Quick One (1966) terão os seus encantos mas não são Rubber Soul ou Revolver, longe disso.
Em 1967, cansados da estreiteza do formato single, fazem o seu primeiro grande álbum (e primeiro disco conceptual). Falamos do psicadélico The Who Sells Out, embrulhado como se fosse um programa de rádio, com jingles publicitários entre as canções e falsos reclames na própria capa (uma terna homenagem à magia das rádios piratas). The Who Sells Out é um triunfo estético mas um flop comercial. Ainda não é desta que conseguem pagar as despesas das guitarras destruídas em palco…
Se um disco conceptual, por si, não é suficiente para conquistar o público, Townshend avança para o trunfo seguinte: inventa a ópera rock. Na mouche: Tommy (1969) é um sucesso retumbante, extravasando o próprio nicho da música pop (fãs menos informados dizem amar os Tommy e o seu disco “The Who”). Mais importante, entram no cobiçado mercado americano. Agora, sim, ascendem à primeira divisão das maiores bandas de rock do mundo (só os Stones e os recém-chegados Zeppelin lhes farão verdadeira concorrência).
O sucesso não faz, porém, bem ao discernimento de Pete Townshend. Não achando Tommy suficientemente grandioso, quer fazer o ainda mais monumental Lifehouse, um conceito multimédia de tal forma abstruso que ninguém percebeu patavina. Exasperado pelo sentimento de incompreensão, Pete colapsa mentalmente (chegou a alucinar com homens-sapo, tentando fugir pela janela!). Chegado a esta situação-limite, Townshend desiste da megalomania de Lifehouse. O produtor Glyn Johns persuade-o, porém, a não deitar o bebé fora juntamente com a água do banho. Escolhendo apenas o lote mais inspirado das canções, transformou-se um álbum-duplo conceptual que ninguém entendia num único – e belíssimo – disco não narrativo. Who’s Next, portanto.
O curioso é que das cinzas de um projecto falhado nasce aquele que muitos consideram ser a obra-prima dos Who. Tommy e Quadrophenia também são incríveis mas a sua natureza operática ofende as sensibilidades mais despretensiosas. Who’s Next tem a mesma imaginação melódica mas ganha pontos pela sua abordagem menos teatral.
Who’s Next foi um dos primeiros discos pop a experimentar à bruta com a electrónica (Music of My Mind de Stevie Wonder só chegaria no ano seguinte). O hipnótico sintetizador com que o disco abre – um arpejo obsessivo e cintilante – é de um futurismo estranhíssimo para a época (os Kraftwerk ouviriam “Baba O’ Riley” em repeat, suspeitamos). Townshend intui, de imediato, a essência da música electrónica: não é para trabalhar melodias que se recorre à maquinaria de ponta mas para gerar novas texturas e ambiências, o som pelo poder físico do som. O seu mestre avant-garde Terry Riley, homenageado no título da canção de abertura, conseguira passar o testemunho.
Who’s Next pode não ter um conceito unificador mas um tema pulsa debaixo de algumas canções: a morte dos sixties. Não há propriamente amargura porque Pete Townshend nunca esteve iludido: o idealismo das flores no cabelo sempre lhe pareceu pueril. A má experiência com LSD certamente não ajudou: no regresso a casa pós-Monterey, Pete tem uma bad trip durante a viagem de avião (a hospedeira de bordo transforma-se num porco e em angústia da morte!) Quando em ’69 vão tocar a Woodstock odeiam a experiência: horas à espera no trânsito e no backstage, chá contaminado com ácidos (triparás, quer queiras, quer não), um activista interrompendo a actuação com uma declaração política, Townshend usando a sua guitarra-baioneta para o expulsar do palco, um público embrutecido pelo LSD aplaudindo tudo só porque sim. Quando em “Baba O’Riley” desabafam “it’s only teenage wasteland, they’re all wasted”, descrevem Woodstock não como o paraíso na terra das hagiografias mas como um imenso lamaçal de adolescentes fritos pela drogaria.
No tema que encerra o álbum, “Won’t Get Fooled Again”, a catarse ainda é mais sofrida: os sintetizadores robóticos vão acumulando tensão até Daltrey extravasar todo o desencanto de uma geração num imenso grito de raiva e de dor. Sobram depois os versos amargos “o novo patrão é igual ao novo patrão”, a contracultura dos sixties como um orwelliano triunfo dos porcos.
A balada épica “The Song is Over” – em teoria, uma canção de amor – adquire neste contexto um significado diferente: os sonhadores anos 60 morreram, paz à sua alma. A icónica capa do disco, onde um monolito à 2001 é usado como urinol, tem a mesma ambiguidade: statement contra o cinzentismo do mainstream ou crítica às contradições da própria contracultura?
Apesar de tudo, o corte de Townshend com os sixties não foi total. Como muitos da sua geração, Pete transitou do LSD para a espiritualidade oriental (o rock elevando os espíritos enquanto culto congregador). Esse sentido aguçado de transcendência atravessa Who’s Next.
Pete Townshend, o cérebro criativo por detrás da máquina Who, compôs todos os temas do disco com excepção de “My Wife”, escrito por John Entwistle. Se a voz do baixista é menos carismática, o humor da letra é delicioso: “murdered in cold blood is what I’m gonna be / I ain’t been home since friday night / And now my wife is coming after me”.
Em Who’s Next os quatro magníficos estão no topo da sua forma. O chanfrado baterista Keith Moon recusa-se à vulgaridade de marcar o ritmo, solando permanentemente com a sua selvagem espontaneidade. John Entwistle, discreto em temperamento, nutre o mesmo desprezo pelo metrónomo, tecendo inventivas contra-melodias (o baixista mais virtuoso da sua geração). Com uma secção rítmica tão insubordinada, não resta outra opção a Townshend se não preencher esse vazio, assinalando o tempo com os seus violentos power chords (quando também Pete ousa solar só uma cumplicidade musical invulgar impede a banda de cair no caos total).
Roger Daltrey é um intérprete cada vez mais refinado, conseguindo encarnar as pessoalíssimas canções de Townshend com uma surpreendente autenticidade. Na balada “Behind Blue Eyes” (a melodia mais bonita dos Who, morte aos Limp Bizkit pela profanação), Daltrey revela uma inesperada subtileza expressiva: vulnerável nos versos iniciais, acusador em “and I blame you”. Muitos temas são cantados também por Pete, enriquecendo-as com o contraste dos timbres (a voz de Daltrey: espessa e áspera; a voz de Townshend: doce e frágil).
Se a programação de sintetizadores é modernista para a época, temas como “Love Ain’t For Keeping” e “Going Mobile” têm uma toada quase country. É essa tensão permanente entre contrários que engrandece Who’s Next: experimental e revivalista, roqueiro e delicado, cínico e místico. Bem-vindos aos estranhos anos setenta, parecem-nos dizer…
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