O ano era 1988, a Legião Urbana estava em plena turnê do seu terceiro álbum, Que País É Este (1978/1987), lançado em outubro do ano anterior e que trazia músicas que estavam entre as mais tocadas no rádio como “Que País É Este”, “Faroeste Caboclo”, “Angra dos Reis” e “Eu Sei”. De norte a sul do Brasil, os shows daquela turnê eram disputadíssimos, sempre com plateia lotada. Todos queriam ver a Legião Urbana tendo à frente Renato Russo (1960-1996), vocalista que havia sido elevado pelo público e pela crítica a porta-voz daquela geração de jovens.
Tudo ia muito bem naquela turnê até o dia 18 de junho de 1988, quando a Legião Urbana se apresentou no fatídico show no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, capital do Brasil e cidade natal da banda. Desorganização por parte da empresa que promoveu o show, superlotação do estádio, indisciplina de uma parcela do público, segurança insuficiente, acabaram gerando uma das maiores confusões já ocorridas em concertos de rock no Brasil. Um fã mais alucinado chegou a invadir o palco para estrangular Renato Russo, mas logo foi retirado pelos seguranças. Parte enfurecida do público atirava objetos contra a banda, que para preserva a sua integridade física, encerrou a apresentação antes do horário previsto. A partir daí, uma batalha campal se instalou no estádio. Pessoas que estavam nas arquibancadas invadiram o gramado, outras tantas foram pisoteadas. Para controlar o cenário caótico, a polícia agiu com violência, que acabou se espalhando para as áreas externas do estádio e ruas próximas. O saldo foi de 385 pessoas atendidas pelo serviço médico, 63 pessoas presas e 64 ônibus depredados. A Legião Urbana tornou-se uma persona non grata na própria cidade onde nasceu. Foi o último show da banda em Brasília. Diante do ocorrido, todo o resto da turnê foi suspenso.
O show caótico no Estádio Mané Garrincha fez o quarteto brasilense repensar a sua orientação musical e o conteúdo do próximo álbum. A banda decidiu que para o novo álbum, a banda abandonaria o tom raivoso nas letras de temática político-social, e focaria numa musicalidade mais calma, mais amena.
Após uma vantajosa renovação de contrato com a EMI, a Legião Urbana entrou em processo de pré-produção do novo álbum. Contudo, a banda se esbarrou em novos problemas. Renato havia entrado num bloqueio criativo para escrever novas letras para o novo álbum, o que acabou de alguma maneira desmotivando os outros companheiros de banda. O produtor Mayrton Bahia, o mesmo que havia produzido os dois álbuns anteriores da Legião, desempenhou o papel de incentivador dos integrantes do grupo. Embora não tivesse mais vínculo empregatício com a EMI, pois estava trabalhando como produtor freelancer, Mayrton decidiu focar apenas na produção daquele novo álbum da banda, abrindo mão de produzir os discos de outros artistas, o que de alguma forma, era um prejuízo para ele. Mayrton estava sobrevivendo dos cachês dos discos que já havia produzido para outros artistas.
Enquanto as letras não saiam, a banda ia criando e ensaiando as linhas melódicas. Mas aos poucos, uma e outra música já prontas, iam ganhando letra à medida que novas ideias iam brotando na mente de Renato Russo, que naquele momento, vinha lendo muita coisa no campo da espiritualidade.
Mas um outro fato iria contribuir para redirecionamento musical da Legião Urbana: a saída do baixista Renato Rocha (1961-2015), que também era conhecido como Negrete ou Billy. Suas constantes ausências nos ensaios e a sua falta de compromisso com a banda naquele momento, provocaram atrasos do processo de produção do novo álbum. A situação ficou insustentável até que em janeiro de 1989, Negrete foi expulso da Legião Urbana. Negrete chegou a gravar linhas de baixo de algumas faixas do novo disco, porém foram descartadas após sua expulsão. Essas linhas de baixo foram regravadas por Renato Russo e Dado Villa-Lobos, que se revezaram no instrumento.
Renato Rocha (o primeiro à direita), expulso da Legião Urbana. |
Todos esses contratempos e a dedicação da banda em produzir um álbum com todo o cuidado possível, acabaram prolongando o período de gravação em quase um ano. Enquanto as outras grandes bandas do rock brasileiro como Titãs, Paralamas do Sucesso e Engenheiros do Hawaii, estavam lançando álbuns, fazendo turnês e aparições na TV, a Legião Urbana estava enclausurada no estúdio gravando, o que só aumentava ainda mais a ansiedade dos fãs pelo novo disco da banda brasiliense.
Intitulado As Quatro Estações, o quarto álbum de estúdio da Legião Urbana finalmente foi lançado em 26 de outubro de 1989, para deleite de milhões de fãs. Numa entrevista para a revista Bizz, em junho de 1989, Renato Russo havia dito que o título se referia às quatro estações do ano, à renovação de ciclos.
O primeiro single do álbum foi “Há Tempos”, seguidos pelos singles de “Pais E Filhos” e “1965 (Duas Tribos)”. A capa prateada do álbum apresenta a Legião Urbana em sua nova versão, em formato de trio.
Musicalmente, a sonoridade da banda se mostra mais leve, serena e melódica, essencialmente voltada ao folk rock, gênero musical que a Legião Urbana já acenava desde o álbum Dois, por meio da canção “Quase Sem Querer”. Os arranjos são mais elaborados e os temas abordados giram em torno do amor, da família, da homossexualidade e da espiritualidade. As letras com teor político-social também estão presentes no álbum, porém, mais metafóricas e dotadas de lirismo poético, diferente das de Que País É Este (1978/1987), mais cruas e diretas.
A faixa “Há Tempos” é quem abre o álbum As Quatro Estações. Segundo o encarte do álbum, o segundo verso de “Há Tempos” foi retirado de um texto antigo encontrado numa igreja em 1600: “Muitos temores nascem do cansaço e da solidão”. No entanto, os últimos versos da música estão entre os mais emblemáticos já escritos por Renato Russo: “Disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade é ter coragem / Lá em casa tem um poço / Mas a água é muito limpa”.
“Pais E Filhos” tem um início lento e delicado, com uma levada de violão inspirada em “Fast Cars”, de Tracy Chapman. A beleza melódica e agradável do início da canção, emoldura os primeiros versos que descrevem claramente o suicídio de uma garota, o que provavelmente fez muita gente não prestar a atenção na cena trágica descrita pela letra da música. Por muito tempo, Renato Russo demonstrou revolta com o público por cantar a letra da canção sem reparar no trágico detalhe. Apesar da tragédia retratada nos primeiros versos, a canção em si aborda a relação familiar, o choque de geraçóes entre pais e filhos. O refrão da canção é daqueles que fazem multidões cantarem em coro nos shows a plenos pulmões: “É preciso amar as pessoas / Como se não houvesse amanhã / Porque se você parar pra pensar / Na verdade não há”.
Única faixa do álbum gravada em inglês, “Feedback Song For A Dying Friend” teve a sua letra escrita por Renato Russo escrita em 1985. Sua gravação para o álbum As Quatro Estações foi dedicada ao fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe (morto em junho de 1989, aos 42 anos, vitimado pela AIDS) e a Cazuza, que na época, travava uma batalha contra a AIDS, mas que acabaria morrendo em julho de 1990, aos 32 anos. Em meio a tantas canções que trilham entre a folk music e o folk rock, “Feedback Song For A Dying Friend” destoa musicalmente de todo o contexto do álbum por ter um arranjo pesado, mais voltado ao hard rock. Apesar do som pesado e agressivo, seus versos são rebuscados, com inspirações em Shakespeare. O encarte do álbum traz uma tradução da letra da música para o português, feita pelo jornalista Millôr Fernandes (1923-2012). Renato Russo tinha um sonho de um dia ter um texto seu em inglês traduzido para o português por Millôr. Na tradução, o título da canção traduzida para o português virou “Canção Retorno Para Um Amigo À Morte”. Curiosamente, a faixa termina num ritmo de música indiana.
Renato Russo dedicou "Feedback Song For A Dying Friends" a Robert Mapplethorpe e Cazuza. |
A faixa seguinte, “Quando O Sol Bater Na Janela Do Teu Quarto”, foi inspirada num livro que Renato Russo leu num quarto de hotel, A doutrina de Buda, de Bukkyo Dendo Kyokai. Os versos da canção são carregados de mensagens de otimismo e esperança. A canção é um folk rock leve e solar, e que se encerra bem ao estilo dos Byrds, com Dado Villa-Lobos fazendo um solo de guitarra bem melódico numa guitarra Rickenbacker de 12 cordas.
Fechando o lado A da versão LP de As Quatro Estações, “Eu Era Um Lobisomem Juvenil”, uma canção sobre transformações, mudanças. A própria vida de Renato passou por grandes mudanças, como na adolescência, quando teve que superar o problema de epifisiólise, e na vida adulta, quando assumiu a sua homossexualidade. E são sobre essas transformações na sua vida que a letra trata, ainda que de maneira subjetiva. O lobisomem, um ser que na mitologia é um homem que se transforma em lobo, é usado por Renato como uma metáfora para simbolizar essas transformações pelas quais passou o cantor.
“1965 (Duas Tribos)”, abre o lado B da versão LP do álbum, e é cheia de referências de quem vivenciou a infância no Brasil entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, como Renato Russo. Um tempo em que o país estava sob regime da ditadura militar. A letra faz citação sobre a tortura empregada pela ditadura militar brasileira contra aqueles que reagiam contra ela: “Cortaram meus braços / Cortaram minhas mãos / Cortaram minhas pernas / Num dia de verão (...) Podia ser meu pai / Podia ser meu irmão”. Há citações que remetem à infância da época como o autorama, desenhos animados da Hanna-Barbera que passavam na TV, e os brinquedos Revell, fabricante de réplicas em miniaturas para montar de carros, aviões, navios e veículos de combate.
“Monte Castelo” é uma canção que remete aos antigos trovadores. O tema da canção é o amor, e para tratar sobre ele, Renato Russo fez uma interessante conexão entre um poema do português Luiz Vaz de Camões (1524-1580), “Soneto 11”, também conhecido como “Amor É Um Fogo Que Arde Sem Se Ver” (“O amor é o fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer”), e uma passagem da Bíblia. O refrão da canção é inspirado em 1 Coríntios 13:1, da Bíblia, e faz referência exclusivamente sobre o amor. O título por sua vez, é baseado no nome do local onde a Força Expedicionária Brasileira (FEB), venceu uma importante batalha na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.
"Bíblia" e Camões: inspirações para "Monte Castelo". |
A paixão homossexual por alguém que está distante é o assunto da faixa “Maurício”. Já “Meninos E Meninas”, fala de bissexualidade: “Acho que gosto de São Paulo e gosto de São João / Gosto de São Francisco e São Sebastião / E eu gosto de meninos e meninas / Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre / Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente”. “Sete Cidades” refere-se sobre a dificuldade em amar alguém que está fisicamente distante. O amor é tratado na letra da canção em versos simples, diretos, sem metáforas.
Fechando o álbum, “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar", onde amor e espiritualidade são abordados numa mesma canção. A espera por um grande amor é tratada na canção, mas os seus últimos versos são inspirados no Evangelho de João: “Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós / Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz”.
O álbum As Quatro Estações foi bem recebido pela imprensa. Jornalistas do meio musical ressaltaram positivamente o redirecionamento que a Legião Urbana tomou, ao afastar-se dos rocks corrosivos de contestação para investir numa sonoridade mais eletroacústica, serena e mística. O crítico musical, Tom Leão, em sua coluna no jornal O Globo, classificou As Quatro Estações como um disco de amor, que vai além do “João ama Maria”. André Forastieri, da Folha de S. Paulo, afirmou que nesse álbum, a Legião abandonou os ares militantes. Bia Abramo, na edição de janeiro de 1990 da revista Bizz, apontou que a Legião Urbana poderia tomar dois caminhos a partir daquele álbum: o lado mais raivoso e agressivo, com as guitarras cortantes de “Feedback Song For A Dying Friend”, ou o extremo oposto, a sutil delicadeza, quase sacra, de “Monte Castelo”.
Após dois anos, os fãs finalmente puderam desfrutar de um novo álbum da Legião Urbana. O cuidado da banda com as letras e os arranjos das canções, e a produção do álbum que levou cerca de um ano, valeram a pena. A resposta do público foi mais do que satisfatória: a tiragem de 450 mil cópias de As Quatro Estações se esgotaram rapidamente. Das onze faixas, nove viraram sucesso nas emissoras de rádio de todo o Brasil. “Pais E Filhos” entrou para a trilha sonora da novela Rainha da Sucata, da TV Globo, em 1990. O sucesso radiofônico de quase todas as faixas de As Quatro Estações levou o álbum em menos de um ano a ultrapassar a marca de 750 mil cópias vendidas. No total, o quarto álbum da Legião Urbana chegou à casa de 2,6 milhões de cópias vendidas, tornando-se o álbum mais vendido da discografia da banda brasiliense.
Em abril de 1990, já com álbum As Quatro Estações estourado no mercado, a Legião Urbana partiu para uma grande turnê nacional, algo que não acontecia desde 1988, quando aconteceu a turnê de Que País É Este 1978/1987. Pela primeira vez, a Legião partiu para uma turnê sem o baixista Renato Rocha, que fora expulso. Outro fato inédito até em tão com a banda brasiliense, é que ela contou com músicos de apoio: Fred Nascimento (violão e guitarra base), Bruno Araújo (baixo), e Mu Carvalho (teclados), ex-A Cor do Som.
Legião Urbana como um trio, durante as sessões de fotos para a capa do álbum As Quatro Estações. |
Para evitar os transtornos da turnê anterior, a Legião tomou todo cuidado com a nova turnê. Além dos músicos de apoio, a banda contou com uma estrutura de palco mais arrojada e segura, e um serviço de segurança redobrado. O repertório da turnê de As Quatro Estações foi formado por 24 músicas, entre sucessos dos discos anteriores e canções do novo álbum. Nos dias 11 e 12 de agosto de 1990, a Legião Urbana se apresentou no estádio Parque Antártica, em São Paulo, cujos shows foram gravados, mas só lançados em 2004 no álbum duplo As Quatro Estações Ao Vivo.
Na edição de junho de 1990, a revista Bizz publicou uma entrevista com Renato Russo na qual confessou publicamente a sua homossexualidade. A confissão, que para muita gente, não era uma novidade, dividiu opiniões: houve quem se revoltasse, mas também houve quem apoiasse o vocalista da Legião Urbana.
Mas a entrevista polêmica não freou a popularidade da Legião Urbana alcançada naquele ano, graças ao sucesso estrondoso de As Quatro Estações. As vendas do álbum superaram as dos álbuns recentes dos Titãs e Paralamas do Sucesso juntos. Em outubro de 1990, Renato Russo foi capa de uma das edições da revista Veja, que trazia o título de matéria “O novo rei do rock”. Uma matéria do Jornal do Brasil, em novembro do mesmo ano, colocou a Legião Urbana entre os maiores vendedores de discos do Brasil, ao lado de Roberto Carlos e Chitãozinho & Chororó.
Contudo, em meio a todo o sucesso da Legião Urbana, uma notícia abala Renato Russo em dezembro de 1990. Durante uma internação do vocalista numa clínica de reabilitação no Rio de Janeiro, ele passou por um exame de HIV, o vírus da AIDS, cujo resultado, infelizmente foi positivo. Renato havia contraído o vírus através de um namorado norte-americano que recém havia retornado aos Estados Unidos.
A vida de Renato Russo passaria por uma nova transformação que também afetou a Legião Urbana. A crise econômica que o Brasil passava, a dependência química de Renato Russo e a descoberta recente de que era portador do vírus da AIDS, refletiram no perfil do álbum seguinte, V, de 1991, um trabalho mais denso, lento e pesado, bem diferente da leveza e a espiritualidade de As Quatro Estações.
Faixas
Todas as faixas foram compostas por Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, exceto a indicada.
Lado A
1 – “Há Tempos”
2 – “Pais E Filhos”
3 – “Feedback Song For A Dying Friend”
4 – “Quando O Sol Bater Na Janela Do Teu Quarto”
5 – “Eu Era Um Lobisomem Juvenil”
Lado B
6 – “1965 (Duas Tribos)”
7 – “Monte Castelo” (Renato Russo)
8 – “Maurício”
9 – “Meninos E Meninas”
10 – “Sete Cidades”
11 – “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”
Legião Urbana: Renato Russo (vocal, baixo, guitarra, violão, gaita e teclados), Dado Villa-Lobos (guitarra, violão, baixo e bandolim) e Marcelo Bonfá (bateria, gaita e percussão).
“Há Tempos” (Videoclipe oficial)
“Pais E Filhos”
“Feedback Song For A Dying Friend”
“Quando O Sol Bater Na Janela
Do Teu Quarto”
“Eu Era Um Lobisomem Juvenil”
“1965 (Duas Tribos)”
“Monte Castelo” (Renato Russo)
“Maurício”
“Meninos E Meninas”
“Sete Cidades”
“Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”
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