sexta-feira, 14 de abril de 2023

Tristany – Meia Riba Kalxa (2020)

 

Em Meia Riba Kalxa, Tristany alonga-se nos temas, sem preconceitos, compõe e canta sobre camadas rítmicas muito diferentes e mistura isso com conversas e sons de rua. Partindo do hip-hop, Tristany expande-o ao infinito, misturando-o com tudo e mais alguma coisa. Sempre com intenção.

Fazer música original é talvez um dos grandes e mais difíceis desafios de quem decide pegar em alguma coisa, seja um instrumento real, seja uma mesa de mistura, sejam técnicas de produção digitais.

Quem decide começar a fazer música tende a gostar de ouvir música, tende a ter os seus modelos artísticos, tende a inspirar-se por esses modelos. E tende a ter receio: o risco de fazer uma coisa que se diferencie de tudo o que ande a ser feito, seja pelos amigos seja pelos pares e por aqueles que se admira, é imenso.

É pela imensidão de música antiga e presente e pelo risco de procurar terrenos realmente novos, por isso movediços, que é difícil encontrar artistas e discos profundamente originais, cuja música não tenha paralelo próximo. Gente crie uma fórmula que não se encontre em mais lado nenhum.

Alegremo-nos, portanto: em 2020, a música portuguesa foi confrontada com um álbum que não só é único, diferente de tudo o resto que se anda a fazer em todos os géneros ‘cantados’, como ainda por cima não soa gratuito na subversão nem expansivo, eclético e diferente só por mera vontade de brincar com sons.

Tristany, João Tristany, um rapaz português de ascendência angolana que cresceu na Linha de Sintra e que quando editou este disco tinha 24 anos, lançou a primeira canção de Meia Riba Kalxa em 2018. O disco saiu dois anos depois e isso não é surpresa: é percetível, ouvindo-o de fio a pavio, que cada canção foi muito trabalhada, que o som é desconcertante e desarmante porque foi trabalhado ao mesmo tempo livremente e com detalhe.

Fazer uma canção com letras relativamente simples, com estrutura de verso-refrão ou fazer temas de hip-hop com a ladainha do costume (as mesmas palavras de sempre, as mesmas batidas de sempre, os discursos de sempre) não é necessariamente fácil — há quem o faça bem e quem o faça de forma desinteressante. Mas fazer um disco em que cada canção parece conter duas ou três canções dentro de si, que soa a algo que nunca ouvíramos, que consegue misturar sons de rua, gravações com o som manipulado, batidas de todos os tipos e diferentes ritmos (mais dolentes e emotivas, mais agressivas e rappadas, mais eletrónicas e cósmicas, mais ambientais e contemplativas, mais ritmadas e percussivas), em português e crioulo, é um desafio e pêras.

Tristany, que cresceu com dois pais músicos, diz sentir que não é exatamente um músico. É um músico, talvez, mas acha que não é menos um cineasta, um jornalista, um documentarista que através da música conta e canta o que viu enquanto crescia.

Acresce que Meia Riba Kalxa tem algumas canções verdadeiramente portentosas e alguns pedaços de música desarmantes. A guinada a meio de “Amor de Jinga”, por exemplo, revela uma audácia imensa. “Rapepaz” é uma das canções mais bonitas feitas e cantadas neste país nos últimos anos, perfeita do início ao fim, original da primeira à última nota, do português ao crioulo, começando como soul eletrónica e dolente, espécie de Frank Ocean movido a Xanax e tristeza, e acelerando até uma toada mística, antes de Tristany voltar a dar a primazia à palavra dorida. E deixando várias frases a reter, de “só quis ser jogador porque cantor não dá nacionalidade onde eu nasci” ou “é na Lisboa adormecida que se sentem as verdadeiras almas”.

Apesar dessa obra-prima que é “Rapepaz”, todo o disco é um abalroamento ao ouvinte. Entre rap lo-fi, canto baldeiro e arrastado com efeitos eletrónicos e distorcidos, uivos, conversas entre amigos, hip-hop e R&B enevoado e espacial, afro-dança inspirada por vários ritmos africanos, tarraxo (na senda do que se ouve na editora da Príncipe Discos), funaná, uns pozinhos jazzísticos, há de tudo. E há outras grandes canções, como a montanha-russa de ritmos “Aciclas” (com BladeJulinho KSD e Chullage), “O Menino Ke Brinkava Com Bonekas” (mais uma grande cantiga emotiva, de soul eletrónica cósmica e atmosférica), as rimas de “Mark Landerz” e “Verde 2”, a festa cheia de vozes, barulhos, rua e vida de “Naxer Du Sol”, o R&B muito próprio que se há-de tornar electrónica e rua tornada música de “Mô Kassula”, uma “Verde 1” com pratos de bateria, sopros jazzísticos, a voz de Chullage e a liberdade do free-jazz trazida para este exercício libertário crioulo e crítico das relações humanas com o “verde”, o dinheiro.

O autor diz que não quer representar nada, quer testemunhar. Talvez seja por isso que o álbum é tão inclusivo, abraçando sonoridades tão diferentes umas das outras, incorporando tantas vozes e sons de ambiente e rua. Não encontramos palavras que o definam melhor do que “livre”, “vivo”, “comunitário”, “rua”. E estão lá outras coisas: reflexões sobre a relação entre a periferia e o crime (sem moralismos nem romantismos, muito menos glorificações, mas enquadrando-o), sobre as desigualdades raciais, a forma como as desigualdades raciais originam outras desigualdades (e vice-versa).

Talvez seja impossível perceber inteiramente Meia Riba Kalxa, pese embora todas as tentativas de críticos e jornalistas. Talvez fosse preciso ter crescido na periferia, conhecer as ideias de Tristany a fundo, perceber o que quer dizer com as coisas que diz, perceber tudo o que ouviu, que conversas teve, o que gosta de ouvir e o que procura quando faz música. Talvez fosse preciso mais tempo e mais vida. Que sabemos nós, que não crescemos na periferia, não sabemos o que é viver na sua pele, não acompanhámos a construção de tudo isto a par e passo, não compreendemos sequer inteiramente todo o seu discurso? Mas se compreender pode ser inglório, apreciar não é difícil. Basta colocar a tocar, perceber que tudo isto é novo e que tudo soa único, próprio, autêntico, a sério, bom. Sem caixas nem rótulos, Tristany tornou-se um artista à parte.

Meia Riba Kalxa é sonho e lamento, festa e melancolia, tensão e distensão, agressividade e placidez. É a rua, a periferia e os sonhos de quem nela cresceu transformados num objeto artístico com drama, vida e seus diferentes ritmos, festa e tristeza, dor e conquista. Que tenha saído no ano em que o cineasta Basil da Cunha nos presenteou a todos com o espantoso O Fim do Mundo, um filme que também não romantiza a rua e a periferia mas a humaniza e a mostra na sua completude, cheia de cores e emoções e ‘andamentos’ rítmicos, é só uma coincidência feliz.


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