sexta-feira, 19 de maio de 2023

“American Beauty” (Warner, 1970), Grateful Dead

 


O Grateful Dead entrou para o imaginário do rock como uma banda formada por doidões, pelos shows que podiam durar horas regados a improvisos intermináveis, e pelos fãs apelidados de “deadheads”, em sua maioria hippies com a cabeça “encharcada” de LSD, capazes de ir aonde quer que a banda fosse. Eram os tempos do flower power, da contracultura, do “verão do amor” daquele conturbado final dos anos 1960.

Liderado pelo vocalista e guitarrista Jerry Garcia (1942-1995), o Grateful Dead era muito bom de palco naquela época, fazendo apresentações ao vivo memoráveis que envolviam o público. No entanto, a banda californiana não conseguia empregar toda essa energia nos seus discos de estúdios. Geralmente eram discos de medianos para fracos, cheios de improvisações e experimentalismos, tornando-os pouco atraentes.

Essa situação mudou em 1970, quando o Grateful Dead decidiu tomar um novo caminho musical, deixando de lado o experimentalismo e as longas e sonolentas improvisações psicodélicas para mergulhar nas raízes da música norte-americana. A folk music, a country music, o blues, o ragtime e o bluegrass passaram a fazer parte do “cardápio musical” do Grateful Dead no lugar do rock lisérgico que praticava. O Grateful Dead passou a valorizar mais a sonoridade eletroacústica, a simplicidade, as canções mais curtas, e sobretudo, as harmonizações vocais, revelando nesse aspecto uma clara influência de Crosby, Stills, Nash & Young.

Embora psicodélico, o álbum Aoxomoxoa já dava pequenos indícios do novo direcionamento musical que o Grateful Dead tomaria, como fica evidente no blues rock eletroacústico “Cosmic Charlie”, última faixa daquele álbum. Com Workingman’s Dead, lançado em junho de 1970, o Grateful Dead estava completamente mudado, nem de longe lembrava aquele som que arrebatava uma legião de hippies cabeludos chapados de ácido. O Grateful Dead se aproximava do que Bob Dylan, Crosby, Stills, Nash & Young, The Band, The Byrds e Flying Burrito Brothers praticavam em termos de música.

Grateful Dead em 1970, da esquerda para a direita: Bill Kreutzmann,
Rob "Pigpen" McKernan, Bob Weir, Mickey Hart e Phil Lesh.
Ao centro, em primeiro plano, Jerry Garcia.

Naquele ano, a banda vivia um momento fértil de criatividade e inspiração para criar novas canções. A parceria Jerry Garcia e Robert Hunter (1941-2019) estava rendendo ótimos frutos. Hunter era membro da banda, mas apesar de também ser músico, seu papel no Grateful Dead era de compositor, capaz de escrever canções com uma incrível sensibilidade poética.

Se por um lado a banda vivenciava um momento artisticamente rico, por outro, amargava uma dívida com o alto custo de gravação do álbum Aoxomoxoa. Além disso, o Grateful Dead enfrentava consequências de uma apreensão de drogas durante uma turnê em Nova Orleans. 

Apesar dos problemas, o processo de mudança musical do Grateful Dead seguia em frente, e se consolida com o álbum American Beauty, lançado em novembro de 1970, cinco meses depois de Workingman’s Dead. A produção de American Beauty ficou por conta do próprio Grateful Dead e a co-produção de Steve Barncard.

American Beauty foi no Wally Heider Studios, em San Francisco, Estados Unidos, nos meses de agosto e setembro de 1970. Durante as sessões de gravação, o Grateful Dead recebeu nos estúdios a visita de amigos ilustres como Paul Kantner e Grace Slick (ambos do Jefferson Airplane), Carlos Santana e o grupo Crosby, Stills, Nash & Young. E por falar no quarteto de folk rock, existe uma história de que Jerry Garcia, Bob Weir e Phil Lesh teriam aprendido a fazer harmonizações vocais com David Crosby e Stephen Stills. Houve uma espécie de acordo: Jerry Garcia teria tocado pedal steel guitar em “Teach Your Children”, canção do álbum Déjà Vu (1970), do Crosby, Stills, Nash & Young, em troca deles ensinarem harmonização vocal ao Grateful Dead.

Na época das gravações de American Beauty, alguns membros do Grateful Dead viviam dramas pessoas. O pai do baixista Phil Lesh, travava uma batalha contra um câncer terminal. Em agosto de 1970, bem no início das gravações de American Beauty, a mãe de Jerry Garcia sofreu um grave acidente de carro, em San Francisco. Nos intervalos das gravações, Garcia ia visitar a mãe no hospital. Ela acabou morrendo em setembro de 1970.

O quarteto Crosby, Stills, Nash & Young foi a grande inspiração para as
harmonizações vocais do Grateful Dead em American Beauty.
Na foto, Neil Young é o primeiro à esquerda.

Dando prosseguimento ao caminho musical aberto com Workingman’s Dead, em American Beauty, o Grateful Dead vai mais fundo na simplicidade dos arranjos. A banda explora ainda mais as possibilidades das harmonizações vocais, que neste álbum, estão mais apuradas do que no trabalho anterior. Os solos de guitarra perdem espaço, enquanto que há um emprego maior do pedal steel guitar reforçando a sonoridade da country music nas canções do Grateful Dead.

American Beauty abre com “Box Of Rain”, uma das principais faixas do álbum e parceria entre Phil Lesh e Robert Hunter. Lesh havia feito a melodia e pediu para que Robert Hunter escrevesse uma letra para a canção. Com o pai em estado terminal por causa de um câncer, Phil Lesh queria cantar uma canção para ele, e incumbiu que Hunter escrevesse a letra, que é de uma grande beleza poética. Embora seja dedicada a alguém que está morrendo, “Box Of Rain” não é uma canção triste e nem seus versos são melancólicos. Muito embora fale até de chuva, a letra é iluminada, solar, leve, sob medida para alguém que está indo embora desta vida e precisa fazer a sua passagem com leveza, luminosidade e desprendimento: “Look out of any window / Any morning, any evening, any day / Maybe the sun is shining / Birds are winging / Or rain is falling from a heavy sky / “Friend Of The Devil” (“Olhe para fora de qualquer janela / Em qualquer manhã, qualquer tarde, qualquer dia / Talvez o sol esteja brilhando / Pássaros cantando / Ou a chuva esteja caindo de um céu carregado”). A faixa conta com a participação especial de David Nelson fazendo solo de guitarra elétrica.

“Friend Of The Devil” é um bluegrass sobre um um fora da lei perseguido por um xerife e que tem várias esposas. Os solos de bandolim são executados por David Grisman, músico convidado. Composta por Bob Weir e Robert Hunter, o country rock “Sugar Magnolia” teria sido inspirada numa namorada de Weir; e é o próprio Bob Weir quem canta esta canção que fala sobre a beleza e o caráter de uma mulher capaz de fazer qualquer homem feliz. “Operator” é a única faixa do disco em que todos os membros da banda tocam. A faixa é cantada pelo tecladista e gaitista Ron “Pigpen” McKernan, autor da música, e traz os dois bateristas da banda tocando: Mickey Hart toca percussão, enquanto que Bill Kreutzmann toca bateria.

Embora fosse músico e considerado um membro do Grateful Dead,
Robert Hunter não subia ao palco e nem gravava os discos da banda.
Sua atuação do grupo era apenas como compositor. 

Fechando o lado A do álbum, “Candyman”, uma balada country de ritmo lento com acento bluesy, conta com a participação de músicos convidados como Ned Lagin no piano e Howard Wales no órgão.

Abrindo o lado B do álbum, outra balada country, “Ripple”, uma canção com belas harmonizações vocais e que traz David Grisman fazendo notas rápidas no bandolim. “Brokedown Palace” é uma balada folk com uma incrível harmonização vocal e que trata sobre despedida através de versos que mostram como Robert Hunter era um letrista bastante talentoso e sensível. Seguem o folk rock “Till The Morning Comes”, “Attics Of My Life” - e seus versos de um lirismo poético fantástico - e finalizando o álbum com o blues rock “Truckin”, única faixa de American Beauty que traz alguns solos de guitarra e que remete ao Grateful Dead de antes da sua mudança musical.

Lançado em 1º de novembro de 1970, American Beauty teve uma boa recepção por parte da crítica. O colunista Andy Zwerling, em seu artigo para a revista Rolling Stone, em dezembro de 1970, afirmou que American Beauty “é uma extensão alegre” de Workingman's Dead, e teceu elogios ao trabalho vocal dos membros da banda no álbum. American Beauty alcançou o 30º lugar na parada da Billboard 200. Seu desempenho comercial foi modesto, vindo a conquistar disco ouro pela vendagem de 500 mil cópias somente em 1974, o disco de platina por 1 milhão de cópias em 1986, e o duplo de platina em 2001 pelos 2 milhões de cópias vendidas.

American Beauty foi o último álbum de estúdio do Grateful Ded pela gravadora Warner. Os três lançamentos seguintes da banda californiana por essa companhia foram álbuns gravados ao vivo para cumprir o contrato que previa nove discos. Em 1973, a banda criou o seu próprio selo, a Grateful Dead Records. Nesse mesmo ano, no mês de março, a banda perdia Ron “Pigpen” McKernan, que faleceu vítima de uma hemorragia gastrointestinal causada pelo seu vício em bebida alcoólica, aos 27 anos de idade.

Em 2003, American Beauty foi classificado em 258º lugar na lista dos 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos da revista Rolling Stone, e em 261º na lista revisada em 2012.

 

Faixas

Todas as canções foram compostas por Jerry Garcia e Robert Hunter, exceto as indicadas.

Lado 1

  1. "Box of Rain" (Phil Lesh, Robert Hunter)
  2. "Friend of the Devil" (Garcia, John Dawson, Hunter)
  3. "Sugar Magnolia" (Bob Weir, Hunter)
  4. "Operator" (Ron McKernan)
  5. "Candyman" 

Lado 2

  1. "Ripple"
  2. "Brokedown Palace" 
  3. "Till the Morning Comes"
  4. "Attics of My Life" 
  5. "Truckin'"  (Garcia, Lesh, Weir, Hunter)  


Grateful Dead: Jerry Garcia (guitarra, violão, banjo, pedal steel , piano e vocais), Bob Weir (guitarra, violão e voz), Phil Lesh (baixo, violão, piano, voz), Ron “Pigpen” McKernan (gaita e vocais), Mickey Hart (percussão), Bill Kreutzmann (bateria) e Robert Hunter (letrista).

 

Ouça na íntegra o álbum American Beauty.


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