segunda-feira, 8 de maio de 2023

N.W.A. – Straight Outta Compton (1988)

 

Straight Outta Compton é o Never Mind the Bollocks do hip-hop: niilista, escandaloso e efervescente.

O hip-hop nasceu no Bronx no final dos anos 70, depressa transbordando para os outros bairros nova-iorquinos. Na sua primeira década, todos os grandes nomes do hip-hop (Run-D.M.C.LL Cool JPublic EnemyEric B & RakimBeastie Boys) provinham da cidade-mãe. Até que em ’88 os N.W.A. (Niggaz Wit Attitudes) deslocam o centro de gravidade do hip-hop para Los Angeles, com o sucesso comercial – e terramoto mediático! – de Straight Outta Compton. “Fuck the Police” censurado nas rádios, FBI à perna, os miúdos brancos comprando o disco às escondidas dos pais, Nancy Reagan à beira de um AVC… Está inaugurado oficialmente o gangsta rap.

Claro que a bazófia agressiva de macho alfa sempre esteve implícita no hip-hop desde o seu primeiro dia (que o digam Schooly D e Ice T) mas o gangsta como programa estético total e fenómeno de massas, vendendo milhões e escandalizando muitos mais, foi – para o bem e para o mal – uma criação dos N.W.A..

Ice Cube é o ideólogo da coisa, arrastando os outros MCs da banda para a sua visão: descrever a realidade dura da rua, usando o calão da rua, a partir do ponto de vista amoral da rua (um sobrevivente não se pode dar ao luxo de ser bonzinho). O sentimento de injustiça é difuso, pós-ideológico, um grito de raiva contra tudo e contra todos (polícia à cabeça), sem qualquer apelo ao activismo ou à solidariedade de classe.

Quando criticam a violência e misoginia das suas rimas, Cube argumenta que não inventa nada, apenas escreve sobre o que está à sua volta. E o que vê não é bonito: viciados em crack arrastando-se como zombies; gangues chacinando-se por meio metro de território; polícias racistas entrando com tanques de guerra pela sala de jantar, pintando a spray nos escombros: “LAPD rules!”.

Todos os N.W.A. cresceram nestes bairros tramados (Compton, South Central), cumprindo assim a grande lei não escrita do gangsta: falar do que se conhece em primeira mão. Easy-E ganha um bónus adicional de credibilidade por ter sido dealer, vendendo erva nas ruas de Compton (mesmo assim, era um menino: nunca matou ninguém, nunca vendeu crack). Com o dinheiro dos seus proveitos ilegais, financiou o projecto dos N.W.A.. Não era um rapper de raiz mas com a ajuda dos seus companheiros depressa aprendeu os ossos do ofício. A sua voz esganiçada, imediatamente reconhecível, transborda de humor e carisma.

Dr. Dre também rima quando é preciso mas é na produção que se destaca (com o apoio de DJ Yellow no scratching). Uns anos depois inventaria o G-Funk (um corte radical com a estética da Costa Este) mas em Straight Outta Compton ainda é notória a influência dos nova-iorquinos Bomb Squad (os magos que produziam os Public Enemy). Falamos não só da agressividade hardcore da produção mas também das batidas densas, tipo massa folhada. Veja-se o caso do tema-título, em que por cima de um breakbeat clássico se vão sobrepondo camadas em cima de camadas (baixos reforçados com uma caixa de ritmos, linha nervosa de pratos de choque, uma só nota de saxofone tensa como uma sirene de um navio, guitarra funky acrescentando inquietude). Todas estas matrioskas sonoras cumprem um objectivo: acumular tensão. Como quem estuga o passo numa rua escura de Compton.

Com o big-bang deste disco, o hip-hop democratiza-se: outros guetos noutras cidades correm a partilhar as suas histórias locais (espelho mágico, espelho meu, haverá bairro mais lixado do que o meu?).

Os boçais supremacistas brancos esfregam as mãos de contentes: “vêem, tínhamos razão, os niggers são todos depravados, bandidos e assassinos”. Intelectuais progressistas como Spike Lee também franzem o sobrolho: “na geração anterior, um miúdo negro que falasse um inglês articulado, e fosse bom na escola, era elogiado por todos. Agora, é ridicularizado como um white boy“. Tudo por aqui tem uma moralidade invertida, onde a crueldade é uma virtude e a compaixão uma fraqueza. Straight Outta Compton é mais capitalista do que o capitalismo: enriquecer depressa, esmagando os mais fracos, é a sua mensagem. As mulheres são tratadas como bitches, pouco mais do que gado sexual. Não se trata apenas da forma politicamente incorrecta, é o próprio conteúdo que é moralmente repugnante.

E depois? Nunca devemos cair na armadilha de julgar objectos estéticos através de critérios morais. Só a forma interessa: a criatividade, a energia, o prazer. Ora Straight Outta Compton transborda de vitalidade e humor. É cinematográfico, parece mesmo que estamos lá, no meio das balas e sirenes. É irreverente, falando com a boca cheia, pondo o cotovelo na mesa. É tudo aquilo que MC Hammer não é. A história do hip-hop a acontecer…


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Toad - Tomorrow Blue (1972 Switzerland, fantastic hard/blues rock - Japanese reissue)

01 Thoughts 02 Tomorrow Blue 03 Blind Chapman's Tales 04 Vampires 05 No Need 06 Change in Time 07 Three O'Clock in the Morning 08 Fl...