segunda-feira, 22 de maio de 2023

Sérgio Godinho – Domingo no Mundo (1997)

 

Godinho mergulha num disco feito de colaborações com outros artistas, muitos deles mais jovens vindos do rock, uma tendência que viria a acentuar-se nos anos seguintes

A década de 90 não foi tão profícua como as anteriores da carreira de Sérgio Godinho, no que toca à edição de discos de originais, algo que veio para ficar. Mas isso não significa que a relevância do músico tenha minguado. Esses foram os anos em que a redescoberta por uma geração mais jovem se começou a afirmar, algo que nunca desapareceu nos anos seguintes, até hoje.

Em 1995 recebe do Blitz o Prémio Carreira, a juntar aos que já tinha. Estava montado o cenário para o reconhecimento nacional definitivo de um dos artistas mais adorados por públicos de todas as gerações. A aproximação ao universo do pop-rock contemporâneo de então teve vários protagonistas, como os Sitiados ou os Da Weasel, através da colaboração com Pacman, na compilação Espanta Espíritos. Godinho era um ídolo para uma geração nova que crescera com a sua música e que o assumia sem preconceitos. O próprio, apesar do estatuto, sempre recusou viver no alto da montanha ou numa cátedra universitária bafienta, e aproveitou a oportunidade para estabelecer pontes com uma garotada enérgica e reverente.

Este caminho tinha várias vantagens. Uma de relevância pública e até comercial, uma vez que apresentava Godinho a um público mais jovem. E outra, a que lhe interessava mais, permitia-lhe experimentar novos caminhos, novas linguagens, novas luzes às quais ver as suas músicas, novas e antigas.

É nesse contexto que surge Domingo no mundo, em 1997, que talvez seja o último grande disco da carreira de Sérgio Godinho. O plano era simples de enunciar mas louco de concretizar: arranjar um músico para tratar dos arranjos de cada canção, e gravar tudo em três semanas. Com Manuel Faria (ex-Trovante) a assegurar a produção, foram escolhidos os nomes, cruzando os pretendidos e os disponíveis. E na ficha técnica de Domingo no mundo temos gente que vai de Kalu (Xutos & Pontapés) a José Mário Branco, passando por Flak (Rádio Macau), Tito Paris ou João Aguardela (Sitiados).

É também neste contexto que aparece Nuno Rafael no caminho de Sérgio Godinho. Este guitarrista, dos Peste & Sida e Despe & Siga, veio pela mão de Kalu, e foi esse o início de uma relação longa, profícua e marcante com Sérgio Godinho, até aos dias de hoje.

O desafio, para além do logístico, era de que arranjadores diferentes trouxessem as suas ideias e a sua sensibilidade mas que Domingo no mundo não fosse uma coisa incaracterística e desequilibrada. E isso foi conseguido, graças ao trabalho de Manuel Faria e à força da linguagem de Godinho, que continuou a servir de cola entre materiais à primeira vista diferentes.

Não sendo um disco “rock”, é o primeiro a trazer uma aproximação mais consequente a este universo, mostrando que o mundo de Sérgio era capaz de viver no século XXI que se aproximava a passos largos.

Domingo no mundo conta com vários grandes temas: desde o poderoso e imagético single “Domingo no mundo”, falando poeticamente da questão do trabalho infantil; “Não respire!”, versando sobre a dependência de drogas duras; a lindíssima e delicada balada “Correio Azul”; “Ser ou não ser”, que abre o disco com a sua electrónica discreta, anunciando um “novo Godinho”; o manifesto de tolerância que é “As armas do amor”; a pop fresca de “É a vida (o que é que se há de fazer?)”; ou o bolero “afadistado” de “Dias úteis”.

Sérgio Godinho passaria as décadas seguintes a aprofundar esta relação com as gerações mais novas e outros artistas (como os Silence 4 e, sobretudo, os Clã). Domingo no mundo é a primeira prova desse novo caminho e o seu fruto mais gostoso.



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