quinta-feira, 1 de junho de 2023

“Acabou Chorare” (Som Livre, 1972), Novos Baianos






Imagine combinar a guitarra elétrica distorcida de Jimi Hendrix (1942-1970) com o bandolim de Jacob do Bandolim (1918-1969), o molejo do samba com a energia do rock. Tais combinações até o começo dos anos 1970 parecia ser inimaginável até os Novos Baianos lançarem em 1972, o seu segundo álbum, o antológico Acabou Chorare.

Moraes Moreira (voz e violão), Baby Consuelo (voz e afochê), Paulinho Boca de Cantor (voz e pandeiro) e Luiz Galvão (letras) formaram o grupo que se tornaria os Novos Baianos, em Salvador, Bahia, em 1969. Em agosto do mesmo ano, o grupo fez a sua primeira apresentação para um grande público no espetáculo Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio, no Teatro Vila Velha, em Salvador. O quarteto teve como banda de apoio, Os Leif’s, formada por Pepeu Gomes (guitarra solo), Lico (guitarra base, Carlinhos Gomes (baixo) e Jorginho Gomes (bateria). Desse encontro, nasceu o romance entre Baby Consuelo e Pepeu Gomes, que acabaram se casando e tendo vário filhos.

A banda Os Leif’s foi a mesma que acompanhou Caetano Veloso e Gilberto Gil no show de despedida dos dois tropicalistas antes do exílio em Londres, realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador, em julho de 1969. O show foi gravado e lançado em disco em 1972.

Em novembro de 1969, os Novos Baianos participaram do 5º Festival da TV Record, em São Paulo, onde defenderam a canção “De Vera”. Por incrível que pareça, como conjunto musical, Moraes, Baby, Paulinho e Galvão, ainda não possuíam um nome. No momento em que estavam prestes a se apresentarem no palco, como o grupo não tinha nome, nos bastidores, o coordenador do festival gritou: “Chama aí esses novos baianos!”. A expressão “novos baianos” se deve ao fato que até aquele momento, os tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, já eram os baianos consagrados daquela geração, enquanto que Moraes, Baby, Paulinho e Galvão eram os novatos, uma novidade. O quarteto acabou assumindo o nome Novos Baianos.

A participação dos Novos Baianos na quinta edição do Festival da TV Record foi breve, foram logo eliminados. Contudo, lançaram no mesmo ano pela gravadora RGE, o primeiro single que incluiu duas canções, “Colégio de Aplicação” e “De Vera”. No ano seguinte, lançam o primeiro álbum, É Ferro Na Boneca. O título vem de um bordão usado pelo consagrado radialista baiano, França Teixeira (1944-2013), “Ferro na boneca, minha cara e minha nobre família baiana! ”. Os Leif’s serviram como banda de apoio dos Novos Baianos nas faixas “Ferro Na Boneca”, “Eu De Adjetivos”, “Curto De Véu E Grinalda”, “Juventude Sexta E Feira” e “De Vera”.

É Ferro Na Boneca, álbum de estreia dos Novos Baianos, lançado em 1970.

Os Novos Baianos decidem migrar para o Rio de Janeiro, onde vão morar num apartamento no bairro de Botafogo. Porém, naquele momento, os Novos Baianos não se resumiam apenas a Moraes, Baby, Paulinho e Galvão. O grupo havia se tornado uma espécie de comunidade hippie, no qual, além do quarteto inicial, estava incluído uma nova banda de apoio dos Novos Baianos, que contava agora Pepeu Gomes (guitarra e violão), Dadi Carvalho (baixo), Jorginho Gomes (bateria e cavaquinho), Baixinho (percussão e bateria) e Bolacha (percussão) que atendia pelo singelo nome A Cor do Som. Somados a eles, estavam namoradas de alguns membros dos Novos Baianos e amigos. O apartamento de quatro cômodos virou uma “babel hippie”.

Foi durante a morada no apartamento em Botafogo que os Novos Baianos passariam por uma transformação que mudaria sensivelmente a orientação musical do conjunto. E essa transformação se deve a um artista: João Gilberto. Assim como Luiz Galvão, João Gilberto nasceu em Juazeiro, cidade ao norte da Bahia. Os dois já se conheciam, e como a trupe baiana estava morando no Rio, e João estava no Brasil após um tempo morando no México com a filha e esposa, as visitas do mestre da bossa nova ao apartamento dos Novos Baianos se tornaram constantes.

Nessas visitas constantes, a música era o assunto principal nas rodas de conversa. E foi durante essas conversas que João Gilberto apresentou àquele bando de cabeludos, artistas consagrados do samba como Noel Rosa, Ary Barbosa, Assis Valente dentre outros. João incentivava ao grupo a ideia da mistura de referências musicais, da fusão do som do rock com a tradição da música brasileira. Tal ideia mudaria para sempre a música dos Novos Baianos.

João Gilberto: ícone da bossa-nova e "guru" dos Novos Baianos.

A morada no apartamento de Botafogo tornou-se insustentável, e os Novos Baianos foram morar no sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Espaçoso e bucólico, o sítio era o lugar ideal para modo de vida comunitário dos Novos Baianos. Tudo era dividido, até mesmo o pouco dinheiro que dispunham, que era colocado numa sacola atrás da porta da cozinha. A música e o futebol eram a rotina dos Novos Baianos. Ensaiavam e compunham pela manhã, e no final da tarde, jogavam futebol. Os amigos artistas como Gal Costa e o próprio João Gilberto, continuavam visitando os Novos Baianos na nova morada.

Numa dessas visitas ao sítio dos Novos Baianos, João Gilberto levou a sua filha, Bebel Gilberto, então com seis anos de idade, e que mais tarde tornou-se cantora. Brincando e correndo no chão batido do sítio, Bebel acabou caindo. A queda atraiu a atenção dos adultos que foram acudir a criança, que logo se refez do susto e disse “Acabou chorare, papai! ”. Como João Gilberto e sua então esposa, a cantora Miúcha, haviam recém mudado para o Brasil, a criança ainda não dominava o português. Porém, a frase acabaria virando uma canção e título de um dos mais aclamados discos da história da música popular brasileira em todos os tempos: Acabou Chorare.

Um outro João também acreditou no potencial musical dos Novos Baianos, João Araújo, diretor da gravadora Som Livre, pai de Cazuza, que futuramente se tornaria vocalista do Barão Vermelho nos anos 1980 e uma das maiores estrelas da história do rock brasileiro. Araújo resolveu apostar naquele bando de cabeludos: os Novos Baianos assinaram contrato com a gravadora Som Livre através da qual iriam lançar o segundo álbum. Recém-criada, a Som Livre ainda não possuía um estúdio próprio de gravação, logo, os Novos Baianos foram gravar o seu novo álbum no Somil, um estúdio de quatro canais, no Rio de Janeiro, especializado em gravação de áudio para cinema.

Mais do que um conjunto musical, os Novos Baianos haviam se tornado uma comunidade hippie.


Produzido por Eustáquio Sena e João Araújo, Acabou Chorare mostra não só uma mudança incrível na orientação musical dos Novos Baianos como também uma grande evolução da banda baiana em comparação ao primeiro álbum. O som coeso e muito bem elaborado é resultado de muito ensaio e dedicação por parte dos músicos, que quando foram ao estúdio para gravar o álbum, já estavam bem “afiados”. Em Acabou Chorare, os Novos Baianos mostram que seguiram à risca os ensinamentos do mestre João Gilberto, ao olharem para as próprias raízes musicais e conectar essas referências à música popular contemporânea. O que se ouve em Acabou Chorare é uma fusão de samba, rock, MPB, baião, choro, além da convivência harmônica entre a guitarra elétrica, baixo e bateria com cavaquinho, percussão, violão e craviola. Moraes Moreira e Pepeu Gomes ficaram responsáveis com a criação dos arranjos das faixas do álbum.

Dentre todas as faixas, apenas “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente (1911-1958), é a única que não foi composta pelos Novos Baianos. É justamente “Brasil Pandeiro” quem abre Acabou Chorare. O samba foi composto por Assis Valente para Carmen Miranda gravar, mas ela não gostou, preferindo gravar uma outra canção, “Recenseamento”. O grupo Anjos do Inferno foi quem acabou gravando “Brasil Pandeiro” em 1941. No entanto, trinta e um anos depois, o samba composto por Valente e que exalta o Brasil, a sua cultura e seu povo, ganhou uma versão definitiva com os Novo Baianos no álbum Acabou Chorare.

Baiano de Santo Amaro da Purificação, Assis Valente é o autor de "Brasil Pandeiro". 

“Preta Pretinha”, a faixa seguinte, nasceu de uma desilusão amorosa de Luiz Galvão, quando conheceu uma garota em Niterói. Ela prometeu que iria morar com ele no apartamento junto à turma dos Novos Baianos, em Botafogo. Mas quando já estavam na barca que faz o trajeto Niterói – Rio de Janeiro, a tal garota desistiu da ideia, preferindo voltar para sua cidade natal e reatar o romance com o antigo namorado. Apesar de tratar-se de uma canção sobre o caso amoroso de Galvão, quem canta “Preta Pretinha” é Moraes Moreira, que faz a introdução com seu violão. Mais adiante, Pepeu Gomes mostra toda a sua habilidade nos solos de bandolim. A canção tem pouco mais de seis minutos, e carrega todo um clima de saudosismo.

Um solo de guitarra elétrica afiado e arrasador dá início a “Tinindo Trincando”, que conta com Baby Consuelo no vocal principal, que canta cheia de ritmo e graciosidade, em completa sintonia com a sessão percussiva da música. Em “Tinindo Trincando”, os Novos Baianos alternam durante a execução da música, rock e baião, o que mostra o quanto Moraes Moreira e Pepeu Gomes eram bastante talentosos na criação dos arranjos das canções dos Novos Baianos.

Com Paulinho Boca de Cantor no vocal principal, “Swing de Campo Grande” é um samba animado que faz referência ao Carnaval, a festa mais popular do Brasil. Campo Grande é a grande praça de Salvador, que durante o carnaval soteropolitano, é o ponto de partida do Circuito Osmar Macedo, onde os blocos carnavalescos e trios-elétricos começam os seus desfiles na área central da capital baiana.

Após a animação de “Swing de Campo Grande”, a faixa seguinte, “Acabou Chorare”, que fecha o lado A da versão LP do álbum. A canção traz um clima calmo e intimista ao ouvinte com Moraes Moreira em voz e violão. É a canção mais bonita do álbum. Aqui, nota-se a influência de João Gilberto no violão executado por Moraes. Esta é a canção cujo título foi baseado frase dita por Bebel Gilberto aos seis anos de idade (“Acabou chorare, papai!”) para não preocupar seu pai, João Gilberto, que aflito socorrê-la. Com um arranjo simples, mas bonito e acalentador, “Acabou Chorare” mais parece uma canção de ninar, feita na medida certa para uma criança. Pepeu Gomes encerra a canção com um lindo solo de craviola.

O lado B do álbum começa com a metafórica “Mistério do Planeta”, na voz de Paulinho Boca de Cantor. É provavelmente a música com a letra mais complexa dos Novos Baianos. “A Menina Dança” foi composta por Galvão e Moraes especialmente para Baby Consuelo, que canta com toda a sua graça. Numa entrevista em 2010 para a edição brasileira da revista Rolling Stone, Baby afirmou que o verso “Quando cheguei tudo estava virado”, referia-se ao fato de que à época, em meio às grandes cantoras brasileiras daquele momento como Elis Regina e Gal Costa, ela despontava como uma grande promessa, uma novidade. Seu marido, Pepeu Gomes, ratifica o seu talento como guitarrista com seus incríveis solos de guitarra.

Jimi Hendrix (esquerda) e Jacob do Bandolim (centro): as grandes influências
do guitarrista Pepeu Gomes.

“Besta É Tu” é mais um samba presente no álbum Acabou Chorare. Com Moraes Moreira na voz principal, “Besta É Tu” é uma ode à liberdade, prega que devemos aproveitar o máximo possível as coisas mais simples da vida, como por exemplo, assistir a uma partida de futebol no Maracanã ou apreciar uma bela morena passando na rua.

Única faixa instrumental do álbum Acabou Chorare, “Um Bilhete Pra Didi” é uma bem-sucedida mistura de rock com baião. A grande surpresa nesta faixa é Jorginho Gomes, o autor dela, que além de baterista, mostra as suas habilidades no cavaquinho. Na primeira metade da música, Jorginho faz solos no seu cavaquinho muito bem executados. A partir da segunda metade da música, quando ela ganha um ritmo mais acelerado, é Pepeu Gomes quem se destaca fazendo solos ágeis com a sua guitarra dando a estética rock ao baião. É interessante perceber que se trata de um baião feito com baixo, bateria e guitarra, três instrumentos comuns do rock, mais um cavaquinho. No entanto, os Novos Baianos não usaram a sanfona, instrumento tradicional do baião. O triângulo, tocado por Baby Consuelo, é o único instrumento comum do baião presente nesta versão roqueira do gênero musical do nordeste brasileiro.

Fechando o álbum, uma reprise de “Preta Pretinha”, numa edição mais curta (pouco mais de três minutos), feita para ser executada nas emissoras de rádio. Curiosamente, diferente do que imaginava a gravadora, a versão mais longa de “Preta Pretinha” foi a mais veiculada nas rádios de todo o Brasil na época.

Logo que foi lançado, Acabou Chorare não foi uma grande unanimidade da crítica. No entanto, o álbum foi conquistando a opinião do público e da crítica gradativamente. A faixa “Preta Pretinha” foi um grande sucesso nas rádios de norte a sul do Brasil, ajudando a impulsionar as vendas de Acabou Chorare que alcançou a marca de 150 mil cópias, o que fez do álbum um dos mais vendidos do ano de 1972 no país. “Brasil Pandeiro”, “Tinindo Trincando” e “Besta É Tu” foram as outras músicas do álbum que também caíram no gosto do público.

O sucesso de Acabou Chorare não se restringiu ao campo musical. A capa do álbum recebeu na época o prêmio de melhor produção gráfica do ano. O trabalho da arte gráfica e a fotografia são de autoria de Antônio Luiz Martins. A imagem da capa mostra uma mesa de madeira feita por Pepeu Gomes, com pratos, talheres, panelas farinha espalhados sobre ela.

Ao longo do tempo, Acabou Chorare alcançou um status elevadíssimo dentro da música brasileira. Tornou-se um dos álbuns mais influentes da música popular brasileira, uma referência para os mais diversos artistas e tendência que se propuseram a fazer fusões entre a música da tradição popular do Brasil e a música pop internacional. A axé music e o mangue beat seriam exemplos de movimentos recentes da música brasileira contemporânea que tiveram os Novos Baianos e seu Acabou Chorare como uma de suas referências.

A partir dos anos 1990, desde que a imprensa musical começou a formular as listas dos maiores discos da música brasileira de todos os tempos, Acabou Chorare é uma presença constante em todos as elas. Em 2007, Acabou Chorare figurou em 1º lugar na lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasileira da edição brasileira da revista Rolling Stone.   

Faixas

Lado A
  1. "Brasil Pandeiro" (Assis Valente)      
  2. "Preta Pretinha" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
  3. "Tinindo Trincando" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
  4. "Swing de Campo Grande" (Paulinho Boca de Cantor - Moraes Moreira - Luiz Galvão)
  5. "Acabou Chorare" (Moraes Moreira - Luiz Galvão) 

Lado B
  1. "Mistério do Planeta" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
  2. "A Menina Dança" (Moraes Moreira - Luiz Galvão)
  3. "Besta É Tu" (Pepeu Gomes - Moraes Moreira - Luiz Galvão)
  4. "Um Bilhete para Didi" (Jorginho Gomes)
  5. "Preta, Pretinha" (reprise) (Moraes Moreira - Luiz Galvão)


Novos Baianos: Moraes Moreira (vocais e violão), Baby Consuelo (vocais, afochê, triângulo e maracas), Paulinho Boca de Cantor (vocais e pandeiro), Luiz Galvão (letras), Bolacha (bongôs). Banda A Cor do Som: Pepeu Gomes (guitarra elétrica, violão e craviola), Dadi (baixo), Jorginho (bateria, cavaquinho e bongô) e Baixinho (bumbo e bongôs).


Ouça na íntegra o álbum Acabou Chorare



"A Menina Dança" (videoclipe original)



"Mistério do Planeta" (videoclipe original)



"Brasil Pandeiro" (video)


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