Em um cenário consumido pela pandemia de Covid-19, corajosos foram aqueles que decidiram lançar seus trabalhos. Mesmo sem acesso a shows, de onde vem parte expressiva da renda para a maioria dos artistas, não foram poucos os representantes da cena brasileira, muitos deles iniciantes, que optaram por botar suas criações na rua. São veteranos, como Mateus Aleluia, Kiko Dinucci e Marcelo D2, e novatos, caso de Jup do Bairro, SD9 e Gabrre, que tornaram o ano muito mais sustentável com suas composições. Trabalhos que vão do R&B ao pop, do rock psicodélico ao experimentalismo eletrônico de forma sempre inventiva, ponto de partida para nossa tradicional lista de final de ano que, mesmo em formato reduzido, concentra o que há de mais significativo na produção nacional de 2020.
#30. Boogarins
Manchaca Vol. 1 (2020, OAR)
Em 2016, enquanto excursionavam pelos Estados Unidos para a divulgação deManual(2015), segundo álbum de estúdio do Boogarins, os integrantes da banda goiana pararam em Austin, no Texas, para uma residência de quatro apresentações no Hotel Vegas, conhecida casa de shows por onde passaram diferentes nomes da cena alternativa. Durante um período de seis semanas, o grupo alugou uma casa na região sul da cidade, em Manchaca Road, e mergulhou na produção de um repertório essencialmente delirante, sempre marcado por instantes de breve improviso, guitarras altamente distorcidas e vozes carregadas de efeitos. O resultado desse intenso processo criativo está na entrega dos dois últimos trabalhos de estúdio do quarteto, os cultuadosLá Vem a Morte(2017) eSombrou Dúvida(2019). Entretanto, muito se engana quem pensa que o repertório apresentado apenas nesses dois discos concentra tudo aquilo que Dinho Almeida (voz e guitarra), Benke Ferraz (guitarra, sintetizadores), Ynaiã Benthroldo (bateria) e Raphael Vaz (baixo) produziram durante a estadia em Austin. Longe dos palcos, isolada por conta da pandemia de Covid-19, a banda goiana decidiu revisitar parte do extenso catálogo de faixas que vinha se acumulando ao longo dos anos, estímulo para o fino repertório embala a experiência do ouvinte emManchaca Vol. 1.
#29. Tagua Tagua
Inteiro Metade (2020, Independente)
Mais do que um complemento estético, a colorida sobreposição de formas que estampa a imagem de capa deInteiro Metade(2020, Independente), primeiro álbum de estúdio do Tagua Tagua, funciona como um indicativo claro do som produzido por Felipe Puperi. E isso pode ser percebido logo nos primeiros minutos do trabalho, na introdutóriaMesmo Lugar. Entre guitarras ensolaradas que atravessam o rock dos anos 1970, uma linha de baixo suculenta e metais delicadamente ampliam os limites da obra produzida, composta e gravada pelo ex-integrante da Wannabe Jalva e colaborador de nomes importantes como Filipe Catto e Johnny Hooker. O mesmo resultado acaba se refletindo na segunda faixa do álbum,Só Pra Ver. São pouco menos de quatro minutos em que o músico gaúcho evoca Arctic Monkeys e Maglore no refinamento dos arranjos, contudo, sustenta no lirismo intimista um precioso traço autoral. “Eu vou até o fundo só pra ver / Que eu ando e só acabo em você / Eu vou até bem longe só pra ver / Que eu ando e só acabo em você“, confessa. Interessante perceber na canção seguinte,4AM, o mesmo romantismo agridoce, porém, partindo de uma nova abordagem criativa. São batidas eletrônicas e sintetizadores que se espalham em meio a camadas de ruídos, como um complemento às vozes detalhadas ao longo da canção. “Conto as horas pra ter voltar / Saio, ensaio minha vida em você / Deixo o vento arder no peito e me queimar / Pra ascender“, canta.
#28. Jadsa
Taxidermia Vol. 1 (2020, Balaclava Records)
A voz é a principal ferramenta de trabalho em Taxidermia Vol. 1. Primeiro grande lançamento de Jadsa Castro desde o material apresentado em Godê (2015), o registro produzido e gravado em parceria com o multi-instrumentista João Milet Meirelles ganha forma a partir da lenta sobreposição dos elementos, texturas e vozes tratadas como um precioso instrumento. Canções de base labiríntica, sempre hipnóticas, como se cada fragmento poético detalhado pela cantora e compositora baiana tivesse uma função específica dentro da obra. Uma vez imersa nesse cenário marcado pela constante ruptura e transformação dos elementos, a artista revela desde composições puramente atmosféricas, como a introdutória Sou Gente, até faixas que convidam o ouvinte a dançar, marca de Xirê. São melodias, batidas e pequenas quebras conceituais que proporcionam ao disco um frescor único, como se Jadsa preservasse a essência de diferentes clássicos da nossa música, porém, fosse capaz de ir além, garantindo ao disco um caráter quase futurístico.
#27. Marcelo D2
Assim Tocam Os Meus Tambores(2020, Pupila Dilatada)
Ainda que carregue o nome de Marcelo D2,Assim Tocam Os Meus Tambores é uma obra de essência coletiva. Produto do isolamento social causado por conta da pandemia de Covid-19, o trabalho produzido e gravado em um processo aberto, em mais de 150 horas de transmissão pelo Twitch, mostra o esforço do rapper carioca em estreitar a relação com diferentes nomes da cena brasileira, mesmo distante de grande parte deles. São fragmentos de vozes, batidas, arranjos e rimas que se entrelaçam em um fluxo contínuo de pensamento, estrutura que embala a experiência do ouvinte do momento em que o álbum tem início, emBem-Vindo Meus Cria, até a derradeiraPelo Que Eu Acredito. Maior a cada nova audição, o sucessor deAmar É Para Os Fortes(2018) é um trabalho que exige tempo até ser absorvido por completo. E não poderia ser diferente. Por entre as brechas de cada canção, uma infinidade de colaboradores, interferências artísticas e até membros da própria família que surgem para assumir parte dos versos. Exemplo disso acontece na ótimaÉAmanhã (Vem), bem-sucedido encontro com o rapper cearense Don L, mas que chama a atenção pela voz doce de Luiza Machado, produtora e esposa de D2. “É manhã, vem o sol / Certo como o sol que vai nascer /Certo como o sol que vai surgir e aquecer“, canta em tom esperançoso.
#26. Pessoas Que Eu Conheço
Ideologia Chinesa (2020, 40% Foda/Maneiríssimo)
Batidas deliciosamente dançantes, sintetizadores e retalhos de vozes que se transformam em um importante componente melódico. EmIdeologia Chinesa, primeiro álbum de estúdio do produtor Lucas de Paiva como Pessoas Que Eu Conheço, cada fragmento do disco estabelece no uso de pequenos detalhes a base para grande parte das faixas. Canções que parecem pensadas para as pistas, porém, revelam ao público incontáveis camadas instrumentais, indicativo de um território mágico que se abre para a visitação temporária do ouvinte. Um misto de passado e presente, nostalgia e reinterpretação, como se o artista carioca confessasse algumas de suas principais referências criativas. Exemplo disso ecoa com naturalidade emHouse Aprovado Pelo Governo, sexta faixa do disco. São pouco mais de cinco minutos em que Paiva, colaborador de nomes como Mahmundi eClarice Falcão, passeia em meio a reverberações ensolaradas que evocam o trabalho de veteranos comoMJ ColeeLone, flerta com a obra de James Brown e ainda convida o ouvinte a mergulhar em uma piscina de ondulações cristalinas e sintetizadores sempre precisos. São pinceladas instrumentais que rapidamente capturam a atenção do ouvinte, porém, encantam pelo uso de pequenos detalhes.
#25. Olívia de Amores
Não É Doce(2020, Independente)
A vida não é doce, mas tem seus momentos menos amargos. É partindo dessa linha de pensamento, que a cantora e compositora amazonense Olívia de Amores entrega ao público o primeiro álbum em carreira solo,Não É Doce. Concebido a partir de desilusões amorosas, memórias afetivas e instantes de profunda entrega sentimental, o registro produzido em parceria com Bruno Prestes, encontra na delicadeza dos versos um contraponto à visceralidade dos arranjos. Canções que partem de vivências reais como forma de dialogar com o ouvinte, convidado a se perder pelo território particular da artista manauara. Obra de sentimentos,Não É Docediz a que veio logo no primeiros minutos, emLa Cancionera. “Pra me ver te buscar a qualquer custo / Não, não era justo, não / Agora você vai e faz o que quiser / Com outra mulher“, canta enquanto guitarras fortes se espalham em meio a ambientações latinas e flertes com o rock dos anos 1970. Um misto de passado e presente, estrutura que orienta a experiência do público até a faixa de encerramento, a extensaBrado Apocalíptico. São pouco mais de sete minutos em que a cantora preserva o lirismo confessional do restante do álbum, porém, se entrega ao uso de temas psicodélicos, lembrando as paisagens instrumentais de nomes como Queens of The Stone Age. Incontáveis blocos de ruídos que se entrelaçam em uma medida própria de tempo, sem pressa, como se a artista saboreasse cada nota compartilhada com o ouvinte.
#24. Cícero
Cosmo (2020, Independente)
O infinito emoldurado na capa deCosmo, quinto e mais recente álbum de estúdio de Cícero Rosa Lins, funciona como um indicativo claro do material entregue pelo cantor e compositor carioca no decorrer da obra. Instantes em que o artista responsável pela composição de registros como Canções de Apartamento (2011), Sábado (2013) eA Praia (2015) condensa a imensidão dos sentimentos em um curto bloco de experiências pessoais. Canções que celebram a alegria dos dias, o medo da solidão e a inevitabilidade da passagem do tempo, como uma extensão particular do repertório apresentado no antecessor Cícero & Albatroz (2017). Não por acaso, o músico carioca fez da atmosféricaFalso Azula faixa de abertura do disco. “Céu não há / Hoje foi embora / Tem, mas não tá ou não quer aparecer / Alto lá / Onde ninguém mora / Longe daqui“, canta enquanto sintetizadores climáticos e as vozes complementares de Beatriz Pessoa, Mari Milani e Leonor Arnaut correm ao fundo da canção, sem pressa. Um lento desvendar de ideias e inquietações pessoais, proposta que orienta com naturalidade a experiência do ouvinte até o último instante da obra.
#23. Gabrre
Tocar Em Flores Pelado (2020, Honey Bomb Records)
EmTocar Em Flores Pelado, primeiro álbum de estúdio do cantor e compositor gaúcho Gabriel Fetzner, o Gabrre, cada fragmento do registro estabelece no lirismo confessional um importante componente criativo para o fortalecimento da obra e imediato diálogo com o ouvinte. São delírios lisérgicos, o tédio que consome o cotidiano, romances e a permanente busca por libertação. Canções que partem da mente inquieta do músico original de Gramado, no Rio Grande do Sul, mas que parecem capazes de se adaptar ao contexto de qualquer jovem adulto, efeito direto do lirismo honesto que serve de sustento ao fino repertório entregue pelo artista. “Todos os dias são iguais / Aqui em Gramado / Mas se és jovem e ainda еstás me ouvindo / Tens sorte por que / É verão de novo“, canta na introdutóriaVerão de Novo. Síntese poética de tudo aquilo que Fetzner desenvolve ao longo da obra, a canção incorpora e antecipa uma série de elementos que serão melhor explorados até o último instante do trabalho. Da constante sensação de deslocamento do eu lírico ao olhar curioso, sempre em busca por novas possibilidades, tudo funciona como uma representação poética e sentimental das experiências vividas por Gabrre. É como se o artista fosse capaz incorporar a mesma melancolia e isolamento explícito nas imagens e roteiro deOs Famosos e os Duendes da Morte (2009), também ambientado no Sul do país, porém, em um sentido ainda mais amplo e emocional.
22. Joana Queiroz
Tempo Sem Tempo (2020, YB Music)
O movimento ruidoso das teclas, o sopro abafado, quase sem forma, e a captação crua, como se um clarinete fosse mastigado em nossos ouvidos. Com a escolha deO Barcocomo faixa de abertura emTempo Sem Tempo, Joana Queiroz sutilmente apresenta todas as regras – ou não regras –, do quarto e mais recente álbum de estúdio em carreira solo. Canções que vão do jazz ao samba em uma linguagem sempre inexata, torta, como uma extensão natural de tudo aquilo que a musicista tem produzido em seus últimos registros autorais, caso de Boa Noite Pra Falar Com o Mar (2016), Diários de Vento (2016) eUma Maneira de Dizer (2012). Conhecida pelo trabalho como integrante do coletivo Quartabê, com quem lançou há dois anos o delicadoLição #2: Dorival (2018), além de colaborar com nomes como Hermeto Pascoal, Arrigo Barnabé e Gilberto Gil, Queiroz transporta para dentro de estúdio parte da essência marítima do repertório apresentado ao lado de Maria Beraldo, Mariá Portugal e Rafael Montorfano. São canções sempre misteriosas que parecem acompanhar o movimento das ondas, crescendo e encolhendo em uma medida própria de tempo. Um lento desvendar de ideias, ritmos e experiências sensoriais que parecem dançar na cabeça do ouvinte.
#21. Jonathan Tadeu
Intermitências (2020, Geração Perdida)
Intermitências não é um disco sobre quarentena. Ainda que produzido e gravado durante o período de isolamento social, o quinto e mais recente trabalho de estúdio de Jonathan Tadeu estabelece em recordações de um passado distante a base para grande parte das músicas apresentadas pelo cantor e compositor mineiro. Canções de essência nostálgica que resgatam memórias da infância, esbarram em conflitos intimistas e estabelecem em reflexões amargas sobre a vida adulta o principal componente criativo para a formação dos versos. Um precioso exercício de entrega sentimental, como um avanço claro em relação a tudo aquilo que o artista tem incorporado desde a estreia com Casa Vazia (2015). Não por acaso, o músico fez deÉramos Jovens Emocionadosa primeira composição do disco a ser apresentada ao público. Da formação dos versos, consumidos por uma temporalidade torta e conflitos existencialistas, passando pela construção dos arranjos, sempre adornados pelo uso de sintetizadores melancólicos, cada fragmento funciona como uma síntese instrumental e poética para o restante da obra. “Eu olho ao meu redor / E lembro de quando eu era vivo / Sentir saudades de ser jovem / Deve ser um sinal que eu tô ficando velho“, reflete enquanto prepara o terreno para o doloroso refrão: “Eu sou tudo o que eu via nos adultos quando era criança“.
#20. Nill
Good Smell Vol. 2 (2020, Sound Food Gang)
O futuro, ainda que distópico, é feminino. Dois anos após o lançamento do primeiro capítulo da série Good Smell (2018), o rapper Nill continua a se aventurar pelo cenário pós-apocalíptico onde 30% da humanidade, em sua maioria homens, foi dizimada. Com Lilith, uma jovem negra como protagonista, o artista de Jundiaí discute conceitos como empoderamento, conquistas pessoais e negritude de forma sempre sensível, íntima do ouvinte. A principal diferença em relação aos antigos trabalhos do produtor, como o cultuado Regina (2017), está no maior refinamento melódico e uso direcionado das batidas durante toda a execução da obra. São canções que se apropriam de elementos extraídos de diferentes exemplares da música brasileira, como no sample de Velho Parente, de Arthur Verocai, em Rosetta Tharpe, porém, partindo de uma linguagem completamente atualizada. Um misto de passado e presente, resgate e transformação, estrutura que parte das rimas e batidas assinadas pelo alterego do artista, O Adotado, mas que se completa e cresce pela presença de nomes importantes como Alt Niss, em Evelyn Dove, e Bivolt, em Dandara.
#19. Julico
Ikê Maré(2020, Toca Discos)
Ikê Maré é um álbum que diz a que veio antes mesmo que a primeira música tenha início. Com a impactante imagem de capa que estampa o disco, uma fotografia de Victor Balde, Julico Andrade, guitarrista, compositor e vocalista do grupo sergipano The Baggios, sintetiza parte dos elementos que definem a essência do primeiro registro em carreira solo. O brilho do Sol, a força turbulenta das águas e a firmeza da terra. Elementos que não apenas funcionam como um precioso pano de fundo conceitual para o artista, como garantem ritmo, movimento e força ao trabalho. Histórias que se convertem em corredeiras, curvas e quebras bruscas, orientando a experiência do ouvinte até o último segundo da obra. E não poderia ser diferente. Nascido de uma imersão do músico no interior da Bahia, pouco dias após o lançamento deVulcão(2018), último álbum de estúdio do The Baggios,Ikê Maré parte desse componente geográfico como estímulo para a formação dos versos e temas instrumentais, porém, estabelece em conflitos e experiências reais vividas pelo próprio artista um importante elemento de transformação. Mesmo a infância no município de São Cristóvão, banhado pelas águas, exerce enorme impacto no processo do formação do disco, conceito que se reflete no uso de nome de rios para batizar algumas das principais composições que recheiam o trabalho.
#18. BK
O Líder Em Movimento (2020, Pirâmide Perdida)
O Líder Em Movimento, como tudo aquilo que Abebe Bikala, o BK,tem produzido desde a estreia comCastelos & Ruínas(2016), é um trabalho marcado por contrastes. Instantes de doce celebração que antecedem momentos de maior melancolia. A diferença em relação ao álbum que revelou músicas comoQuadros, Sigo na SombraeCaminhosestá no discurso cada vez mais amplo e ainda consistente do rapper fluminense. Enquanto antes o artista parecia mergulhar nas próprias inquietações (“Eu conheci o mal, confesso que eu gostei / Minha visão mudou, quem eu sou? Me perdi“), hoje o direcionamento passa a ser outro. São fragmentos poéticos que passeiam por diferentes aspectos da nossa sociedade, como um avanço claro em relação ao material entregue no antecessorGigantes(2018). “Eles mataram Pac, mataram Big / Eles querem matar um mano que resiste“, dispara logo nos primeiros minutos do disco, emMovimento, faixa que aponta a direção seguida até o último instante da obra. São versos sempre marcados pelo forte discurso político, crueza das rimas e personagens que tiveram suas vidas ceifadas quando deram voz às próprias inquietações. “Pense no preço que é fazer alguém pensar / Num mundo onde botam um preço na cabeça de quem pensa“, questiona mais à frente, estabelecendo pequenos diálogos com a história de Marielle Franco, Martin Luther King, Malcolm X e outros líderes de movimentos negros que foram assassinados pelo caráter contestador de suas ideias.
#17. Fabiano do Nascimento
Prelúdio (2020, Now-Again Records)
Na ausência de palavras, um mundo de histórias narradas pelo violão. Três anos após o lançamento de Tempo dos Mestres(2017), obra em que confessa algumas de suas principais referências criativas, o violonista carioca Fabiano do Nascimento está de volta com um novo trabalho de estúdio:Prelúdio. Marcado pela minúcia dos elementos, o trabalho de essência detalhista passeia em meio a incontáveis paisagens instrumentais, fragmentos extraídos de diferentes campos da produção brasileira e memórias musicais, conceito que tem sido explorado pelo artista radicado em Los Angeles desde a estreia com Dança do Tempo (2015). Obra de detalhes, o registro produzido em parceria com Mario Caldato, Jr. (Beastie Boys, Marcelon D2) e Luther Russell, parceiro desde o primeiro álbum de estúdio, diz a que veio logo nos primeiros minutos, na introdutóriaRio Tapajós. São pouco menos de três minutos em que o violão de Nascimento segue em meio a curvas e formas sempre imprevisíveis, convidando o ouvinte a se perder em um cenário de essência labiríntica, por vezes misterioso. É como se cada novo movimento tingisse com incerteza a experiência do ouvinte, ampliando tudo aquilo que o músico havia testado no disco anterior.
#16. Hot & Oreia
Crianças Selvagens (2020, Independente)
Para além da rima debochada que embala as canções deRap de Massagem(2019), um mundo de novas possibilidades. Pouco mais de um ano após o lançamento do primeiro trabalho de estúdio, Hot e Oreia estão de volta com um novo disco de inéditas:Crianças Selvagens (2020, Independente). Musicalmente refinado quando próximo do registro que o antecede, o álbum que conta com direção artística de Daniel Ganjaman (Criolo, BaianaSystem), amplia de forma significativa tudo aquilo que a dupla mineira havia testado há poucos meses. Canções que vão da poesia política ao sexo em uma criativa colagem de tendências, ritmos e temas. Marcado pela criativa sobreposição de ideias, o álbum que conta com produção de Rafael Fantini e batidas compartilhadas entre Tropikilaz, Vhoor, Coyote e Deekapz, vai de um canto a outro sem necessariamente se apegar a um conceito específico. Um ziguezaguear temático que tem início na discussão sobre masculinidade tóxica, na introdutóriaVírus(“É, dói quando a ficha cai / Mãe, não quero ser meu pai / Tô precisando de um conselho“), e segue em meio a questões existencialistas (“A gente ama e odeia e carrega na veia / A vida que é uma passagem“), declarações de amor (“Você é a coisa mais linda que eu já vi / Mas é difícil entender, tipo os livro que eu não li“) e pequenas conquistas pessoais (“Hoje eu me sinto bem, juro / Tenho grana, já não tô duro“).
#15. O Nó
Resquícios Cromáticos (2020, Independente)
Do uso destacado dos sintetizadores, passando pelo tratamento dado às batidas, melodias e vozes sempre empoeiradas, cada fragmento do primeiro álbum de estúdio do grupo paulistano O Nó,Resquícios Cromáticos, parece pensado para causar sensações ao ouvinte. São retalhos instrumentais e poéticos que dançam pelo tempo, coletando e reinterpretando conceitos que vão do pop nostálgico dos anos 1980 ao uso de temas psicodélicos típicos da última década. Um misto de conforto e permanente agitação criativa, proposta que tinge com ineditismo uma série de elementos há muito consolidados por diferentes realizadores vindos dos mais variados campos da música. Declaradamente inspirado pelo sophisti-pop oitentista, as criações do músico japonês Haruomi Hosonoe as obras do pintorDavid Hockney, a estreia de Alexandre Drobac (guitarra e vozes), Matheus Perelmutter (sintetizadores e vozes), Rodolfo Almeida (baixo e vozes) e Mateus Bentivegna (bateria) nasce da colorida sobreposição de ideias, ritmos e referências. Composições consumidas pelo peso memória e paisagens tão reais quanto oníricas, conceito que dialoga diretamente com a imagem de capa do álbum, um co-criação de Drobac e Almeida, mas que acaba se refletindo em cada mínimo componente que serve de sustento ao disco.
#14. Tantão e os Fita
Piorou(2020, QTV)
Nada é tão ruim que não possa piorar. E Carlos Antônio Mattos, o Tantão, parece entender bem isso. Pouco mais de um ano após o lançamento do caótico Drama (2019), o artista carioca está de volta comPiorou, terceiro registro da parceria com Abel Duarte e Cainã Bomilcar, os Fita, e um misto de sequência e fina desconstrução de tudo aquilo que tem sido produzido desde a estreia com Espectro (2017). São fragmentos de vozes, texturas e batidas trabalhadas de forma sempre inexata, torta, tratamento que se reflete tão logo o álbum tem início, emIntrodução ao Pirou, e segue de maneira deliciosamente insana até a música de encerramento,Tênis. Pensado para que o ouvinte se perca dentro dele,Piorou, assim como o registro que o antecede, parte de uma base reducionista, porém, cresce na criativa sobreposição de cada elemento apresentado ao longo da obra. São poemas curtos que se espalham em meio a vozes picotadas, glitches e sintetizadores, como uma turbulenta colisão de ideias que parece ganhar vida própria. Exemplo disso acontece logo nos nos momentos iniciais da obra, na faixa-título do álbum. Pouco mais de dois minutos em que o lirismo pessimista da canção parece retorcido pelo uso das batidas e bases labirínticas.
#13. Carabobina
Carabobina (2020, OAR)
Camadas de guitarras, vozes tratadas como instrumentos e instantes de doce improviso. Uma vez dentro dohomônimo debute do Carabobina, dupla composta pelo cantor e compositor goiano Raphael Vaz, o Fefel da Boogarins, e a multi-instrumentista, cantora e engenheira de som venezuelana Alejandra Luciani, cada fragmento da obra revela ao público um colorido mosaico de pequenos detalhes. São experimentações crocantes, delírios e melodias tortas que se entrelaçam de maneira sempre imprevisível, como um labirinto conceitual de formas e sentimentos que não apenas exigem ser absorvidos, como desvendados pelo ouvinte. Naturalmente íntimo do som produzido por outros representantes da psicodélica cena brasileira, o trabalho de nove faixas substituí o caráter etéreo de outros exemplares do gênero para investir em uma seleção de músicas marcadas pelo reducionismo dos arranjos e inserções sempre pontuais. É como se Luciani e Vaz despissem o álbum de todo e qualquer excesso, fazendo de cada componente do disco, mesmo o mais inexpressivo, um precioso objeto de destaque. São texturas de sintetizadores, batidas inexatas, vozes e ambientações picotadas que avançam em uma medida própria de tempo, proposta que tinge com incerteza cada novo movimento da dupla dentro de estúdio.
#12. Thiago Nassif
Mente(2020, Gearbox Records)
Você pode passar horas debruçado sobre as criações de Thiago Nassif e, ainda assim, ser surpreendido em uma das inúmeras esquinas deMente. De essência multidisciplinar, como tudo aquilo que o cantor, compositor e multi-instrumentista residente no Rio de Janeiro tem produzido desde os inaugurais Práxis(2011) eTrês (2016), o trabalho que conta com co-produção do experimentalista Arto Lindsay (Caetano Veloso, Marisa Monte) alcança um ponto de equilíbrio entre os delírios autorais e algumas das principais inspirações do músico. Frações poéticas e instrumentais que partem de uma arquitetura esquelética, porém, sutilmente revelam nervos, músculos, pele e forma dentro de uma atmosfera deliciosamente inexata. “Você tem me feito soar estranho“, repete Nassif, como um mantra sujo, na introdutóriaSoar Estranho. Escolhida para para apresentar o disco, a canção de quase cinco minutos ganha forma em um labirinto de sons, vozes, batidas e quebras rítmicas que jogam com a percepção do ouvinte durante toda sua montagem. São ecos de Prince, no desenho torto das guitarras, ambientações acinzentadas, íntimas dano wave de Lindsay, e momentos de parcial conforto, como se mesmo no cenário caótico que embala a experiência do público, o músico criasse pequenos refúgios conceituais. Um misto de acolhimento e constante provocação.
#11. CESRV
Brime! / Bela Vista / The Underground (2020, Beatwise Recordings)
Quem há tempos acompanha o trabalho de César Augusto Pierre, o CESRV, sabe que o co-fundador do selo Beatwise Recordings não economiza no número de lançamentos. São dezenas de composições que se acumulam desde o início da década passada, vide o material apresentado nos ótimos One Thousand Sleepless Nights (2013) e South (2017). Entretanto, mesmo nesse catálogo de grandes obras, poucas vezes antes o produtor paulistano se mostrou tão inventivo e criativamente provocador quanto na sequência de registros apresentados nos últimos meses. Do encontro com Febem e Fleezus, no colaborativo Brime!, trabalho que já nasce como um novo clássico do rap nacional, passando pelo aspecto revisionista de Bela Vista, ao movimento das batidas em The Underground, sobram instantes em que o artista brinca com as possibilidades, manipulando a experiência do ouvinte a cada nova batida. Canções que vão do grime ao funk, de Dizzee Rascal a Cassiano de maneira nada usual, tratamento que preserva a identidade dos antigos trabalhos de CESRV, porém, longe de qualquer traço de previsibilidade.
#10. Tatá Aeroplano
Delírios Líricos (2020, Independente)
Sexto e mais recente álbum de Tatá Aeroplano em carreira solo,Delírios Líricosé um trabalho que começa pela capa, na melancólica imagem de Luiz Romero. Acompanhado apenas de um cachorro, o músico paulistano posa em um ambiente consumido pela passagem do tempo. São restos de uma antiga construção, o sofá destruído, uma cadeira de balanço vazia e a vegetação rasteira que parece colorir parte desse cenário marcado por memórias de um passado ainda recente. Uma interpretação visual para o território poético que o artista desbrava de forma contemplativa até o último instante do disco, na delicada O Silêncio das Serpentes. Uma vez imerso nessa atmosfera marcada pela força dos sentimentos e arranjos cuidadosamente trabalhados pelos parceiros Dustan Gallas, Junior Boca, Bruno Buarque e Lenis Rino, Aeroplano se divide entre criações recentes e faixas compostas há quase duas décadas. É o caso da comoventeTrinta Anos Essa Noite. Escrita no início dos anos 2000, a canção se espalha em meio a versos embriagados, medos e momentos de doce conformismo, como se o músico paulistano se entregasse à própria solidão. “Eu sigo o meu caminho / Pra sempre sempre ser sozinho“,canta. São versos intimistas que se espalham em uma trama de guitarras empoeiradas, evocando Roberto Carlos em obras comoO Inimitável (1968).
#9. Jup do Bairro
Corpo Sem Juízo(2020, Independente)
O que pode um corpo sem juízo? A pergunta lançada por Jup do Bairro logo nos primeiros minutos do disco funciona como um indicativo do universo de pequenas incertezas que serve de sustento ao primeiro trabalho de estúdio da multiartista paulistana. Composições que transitam por entre gêneros, temas e colaboradores sem necessariamente perder a própria coerência. São versos políticos, delírios românticos, medos e conflitos intimistas, conceito reforçado tão logo o álbum tem início, na atmosférica Transgressão, mas que acaba se refletindo até a derradeira faixa-título, música que cresce na bem-sucedida participação do rapper Mulambo. Um espaço onde tudo e nada pode acontecer ao mesmo tempo. Exemplo disso está na forma como a cantora/rapper muda de identidade a cada nova composição, proposta que vai do pop eletrônico e R&B, em All You Need Is Love, encontro com Rico Dalasam, Linn da Quebrada e BadSista, ao hard rock dePelo Amor de Deize, colaboração com Deize Tigrona. Canções que se entrelaçam de forma não linear, jogando com a experiência do ouvinte durante toda sua execução.
#8. Kaatayra
Toda História pela Frente / Só Quem Viu o Relâmpago à Sua Direita Sabe (2020, Independente)
Nascido de um processo de transformação pessoal e busca do multi-instrumentista Caio Lemos por maior qualidade de vida e melhora na própria saúde mental, o Kaatayra é uma banda de um homem só que fez de caminhadas pelas matas a base para dois dos trabalhos mais sensíveis e turbulentos da cena brasileira nos últimos meses. De um lado, o versátil Só Quem Viu o Relâmpago à Sua Direita Sabe, registro que transita por entre ritmos e vai da percussão tribal ao black metal atmosférico, do samba ao canto sertanejo de forma delirante. No outro, Toda História pela Frente, álbum de três faixas extensas que convidam o ouvinte a se perder em um território marcado pela incerteza e permanente corrupção das ideias. São canções que partem de uma base acústica, sempre detalhista e acolhedora, porém, crescem na inserção de novos elementos, ritmos, camadas e quebras bruscas. É como se diferentes obras fossem condensadas dentro de cada canção, conceito reforçado com naturalidade em músicas como O Castigo Vem à Cavalo e Miséria da Sabedoria, essa última com quase 30 minutos de duração. Um exercício pessoal, mas que a todo momento estabelece pequenos diálogos com o ouvinte.
#7. Andrio Maquenzi
Contracorrente(2020, Independente)
“Eu também já fui um babaca completo / Hoje eu acredito ser um pouco menos“. A autorreflexão proposta por Andrio Maquenzi logo nos primeiros minutos deBabaca, terceira faixa de Contracorrente, funciona como um indicativo claro de tudo aquilo que o cantor e compositor gaúcho busca desenvolver no do primeiro álbum em carreira solo. São versos em que discute a passagem do tempo, a necessidade de seguir em frente e o amadurecimento imposto pela chegada da vida adulta. Canções que preservam a habitual leveza e jovialidade típica dos primeiros registros do músico, ex-integrante da Superguidis, mas que ganham novo direcionamento lírico e estético dentro do presente disco. Sem pressa, como uma propositada fuga da crueza explícita em clássicos como Malevolosidade, O Raio Que o Parta eNão Fosse o Bom Humor, Maquenzi investe em um material de essência reducionista, porém, imenso em seu significado. São delicadas paisagens instrumentais, ambientações acústicas e melodias que surgem e desaparecem de forma discreta durante toda a execução da obra, conceito que muito se assemelha à transição de J Mascis, guitarrista e líder do Dinosaur Jr., durante a produção do primeiro álbum em carreira solo, o também sensível Several Shades of Why (2011).
#6. Zé Manoel
Do Meu Coração Nu (2020, Joia Moderna)
Você já teve a sensação de ser acolhido por um disco? Mesmo imerso em doce melancolia e versos que escancaram o que há de mais doloroso nas histórias e vivências relacionadas ao cotidiano brasileiro, principalmente quando voltadas ao povo preto, sobrevive nas canções do atmosféricoDo Meu Coração Nu, novo álbum de Zé Manoel, uma beleza comovente, capaz de envolver e confortar o espectador. Composições que utilizam do reducionismo dos arranjos como estímulo para a formação das letras, sempre regidas por experiências reais, memórias e sentimentos conflitantes que deixam de pertencer ao músico pernambucano para se relacionar de forma sensível com todo e qualquer ouvinte. Não por acaso, o autor de obras comoCanção e Silêncio(2015) eDelirio de um Romance a Céu Aberto(2016) inaugura o álbum comHistória Antiga. Esperançosa, ainda que sóbria, a música aponta o caminho seguido pelo cantor, compositor e pianista de Petrolina até a derradeiraAdupé Obaluaê. São versos que escancaram o peso do racismo a violência policial sofrida pela população negra, porém, vistos de um futuro distante e imaginativo, onde tamanha repressão há muito ficou para trás. “Houve um tempo em que a canção não impedia / Mais um jovem negro de morrer / Por conta da sua cor / Uma história tão antiga em 2019 / De uma civilização antiga de 2019“, canta enquanto pianos sofisticados correm ao fundo da canção, ressaltando cada fragmento de voz, mesmo o mais sutil.
#5. Rico Dalasam
Dolores Dala Guardião do Alívio(2020, Independente)
Como pode tamanho sentimento caber dentro de um registro tão curto? Primeiro trabalho de inéditas de Rico Dalasam em três anos,Dolores Dala Guardião do Alívio estabelece na força das rimas, romances e vivências acumuladas pelo artista paulistano a passagem para uma de suas obras mais sensíveis. Um misto de dor e alívio, recolhimento e transformação, conceito reforçado logo nos primeiros minutos do EP, no delicado texto de abertura – “não falaria de alívio se não tivesse doído tanto. Tanto que eu não pude ser o mesmo ou o mesmo de antes“–, mas que acaba se refletindo durante toda a execução do material. Com produção dividida entre Mahal Pita (BaianaSystem), Dinho Souza e o próprio artista, o trabalho de cinco faixas nasce como um produto das memórias e experiências pessoais que tumultuaram a vida de Dalasam nos últimos anos. Um respiro aliviado e evidente busca por recomeço após oimbróglio judicial envolvendo direitos autoraissobre a músicaTodo Dia, colaboração com Pabllo Vittar, e uma tentativa estúpida, por parte do público, em “cancelar” o trabalho do rapper. “Porque a melhor versão de nós nunca foi na agonia, na confusão dos ódios, na distração dos brancos … E a gente ainda é a parte viva do mundo“, reforça na introdutóriaDDGA.
#4. Mateus Aleluia
Olorum (2020, Selo Sesc)
Em um cenário de pandemia, caos político e intolerância religiosa,Olorum, terceiro álbum de Mateus Aleluia em carreira solo, nasce como um precioso refúgio. “Olorum / sai do seu reino e vem nos ver / Olorum / Seu povo está cansado“, canta em um misto de oração e súplica ao ser supremo da mitologia Yorubá, grande responsável pela existência humana e a criação dos orixás. Instantes em que o músico de 76 anos preserva e ao mesmo tempo amplia tudo aquilo que tem sido produzido desde a década de 1970, quando atuou como integrante d’Os Tincoãs, revolucionando a música brasileira ao incorporar cânticos de candomblé, filosofias africanas e a força ritualística dos terreiros ao samba e outros ritmos locais. Sequência ao material entregue emCinco Sentidos(2010) eFogueira Doce (2017), Olorum, assim como os registros que o antecedem, se divide com naturalidade entre a celebração e momentos de doce recolhimento. Vem justamente desse primeiro bloco a passagem para o lado mais festivo da obra. É o caso de Nganga Njila, bem-sucedida colaboração com a cantora e compositora moçambicana Lenna Bahule e uma síntese das experiências acumuladas por Aleluia durante mais de duas décadas atuando como pesquisador em Angola. Uma criativa colagem de ritmos que vai da fluidez das guitarras ao uso minucioso da percussão, estrutura que se revela de forma cada vez mais grandiosa à medida em que a canção avança.
#3. Luedji Luna
Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água(2020, Independente)
Corpos, versos, batidas, melodias e sentimentos. EmBom Mesmo É Estar Debaixo D’água, segundo e mais recente trabalho de estúdio da cantora e compositora baiana Luedji Luna, cada fragmento do registro floresce em um vívido arranjo de formas sempre detalhistas, porém, deliciosamente irregulares. São inserções minimalistas, vozes pequenas quebras conceituais que preservam a essência do material entregue no introdutório Um Corpo no Mundo(2017), porém, partindo de um novo direcionamento estético. Um misto de sequência e fina desconstrução de tudo aquilo que a artista havia testado em algumas de suas principais criações, comoBanho de Folhas,AsaseAcalanto. Feito para ser absorvido do primeiro ao último instante, sem pausas, o trabalho que conta com produção minuciosa de Kato Change, guitarrista queniano que já trabalhou com nomes como Aloe Blacc e Seun Kuti, faz de cada composição um estímulo para a faixa seguinte. São batidas e vozes que se espalham em um labirinto de formas plurais, como se diferentes obras fossem condensadas dentro de um único registro. Canções que preservam a essência tribal, memórias e celebração à negritude que define o álbum que o antecede, mesmo incorporando uma linguagem parcialmente distinta.
#2. Kiko Dinucci
Rastilho (2020, Independente)
“Quem canta é a madeira“. A frase extraída dotexto de apresentação de Rastilho, segundo álbum de Kiko Dinucci em carreira solo, funciona como um indicativo claro do caminho percorrido pelo músico paulistano durante toda a execução da obra. Livre da urgência, personagens escusos e ambientações urbanas que marcam as canções do antecessorCortes Curtos (2017), o guitarrista do Metá Metá e colaborador de nomes como Elza Soares eJards Macalé passeia em meio fórmulas pouco usuais e paisagens sertanejas, fazendo do violão solitário e lirismo psicodélico das vozes ecoadas a ponte para um universo fantástico, como um refúgio conceitual que costura passado e presente de forma sempre delirante. Não por acaso, Dinucci escolheu a instrumentalExu Odara como música de abertura do disco. De essência atmosférica, a faixa aponta a direção seguido durante toda a produção do trabalho. São movimentos calculados do violão, como se cada nota disparado pela mão direita do artista arrastasse o ouvinte para o núcleo da obra. Exemplo disso está na sertanejaMarquito, composição que une forma e movimento de maneira detalhista, gerando a imagem de um ambiente árido, como um passeio pelo sertão nordestino, experiência que se reflete até o último instante do disco.
#1. SD9
40º.40(2020, On-Retainer)
Não se deixe enganar pelo suíngue da guitarra e sonoridade abrasiva que toma conta dos primeiros segundos de40º.40. Passado o breve respiro em Jukebox, SD9 sustenta na letra descritiva da canção um indicativo claro da dualidade e poesia crua que será explorada até o último segundo do trabalho. “Amarelo do Sol, azul do mar / Cinza asfalto quente, vermelho do sangue“, detalha em um misto de canto e rima, ambientando o ouvinte no cenário urbano e paradisíaco do Rio de Janeiro. Composições que revelam personagens, cenas e acontecimentos de forma sempre detalhista, fazendo do contraste entre a celebração e o permanente contato com a morte o principal componente criativo para a formação dos versos. Regido pela minúcia das batidas e ambientações sintéticas típicas do grime, o trabalho de essência minimalista se divide em duas porções bastante distintas. Na primeira delas, a crueza das rimas e a realidade estampada em cada fragmento poético detalhado pelo rapper natural de Bonsucesso, bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. “Se fosse tu, no meu lugar / Tu tava fodido / É muita treta e muita merda / Resolve rapidinho/ E se não for no desenrolo / Nóis resolve no tiro“, anuncia enquanto prepara o terreno para o restante da obra, como uma extensão do material entregue no último ano, durante o lançamento do também cirúrgicoAM/PM EP (2019).
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