sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Maravilhas do Mundo Prog: Mutantes - Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets [1972]

 




Sem sombra de dúvidas, uma das maiores bandas do rock progressivo nacional foi o Mutantes de Sérgio Dias, que teve suas origens a partir de 1973 com a saída da eterna Tia do Rock Rita Lee. Em dois álbuns na década de 70 (Tudo Foi Feito Pelo Sol - 1974, e Ao Vivo - 1976) e o lançamento de uma obra inédita em 1992 (O A E O Z, gravado originalmente em 1973), o grupo fincou sua bandeira como um expoente do estilo no país, fazendo grandes shows e auxiliando no alavancamento de nomes como Terreno Baldio, O Terço, entre outros.

Mas engana-se quem pensa que a banda viveu do progressivo somente pós-Rita Lee. Aqui mesmo já mostramos a Maravilhosa "Mande Um Abraço Pra Velha", lançada em um compacto que levou o grupo para participar do VII Festival Internacional da Canção em 1972, e que faz jus a uma das maiores Maravilhas da música mundial. Naquele texto, contei um pouco da história da banda desde suas origens até 1972, complementando o Podcast dedicado ao grupo.

Dinho Leme, Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias e Liminha

O que poucos se dão de conta que meses antes, a primeira Maravilha Prog feita pelo quinteto Rita Lee (flauta, vocais, teremim, percussão), Sérgio Dias (guitarra, vocais, cítara), Arnaldo Baptista (teclados, órgão, moog, vocais), Liminha (baixo) e Dinho Leme (bateria) já havia sido concebida.

As experimentações com o rock progressivo haviam começado em 1971, com o álbum Jardim Elétrico. Ali, "Technicolor" já dava sinais dos novos caminhos que o quinteto iria seguir. Claramente, o grupo vinha com uma pegada bastante diferente em relação aos seus três álbuns antecessores (Os Mutantes - 1968; Mutantes - 1969; A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado - 1970). Se antes, a fanfarra e as orquestrações do maestro Rogério Duprat eram dominantes, em Jardim Elétrico a banda começava a se apresentar como banda, fruto de uma soberana passagem pela Europa ainda em 1970, que culminou com a gravação do álbum Technicolor (lançado somente em 2000) e o contato com toda a cena progressiva que começava a surgir com força pela terra do Velho Mundo.

Capa dupla da versão original em vinil

Na volta ao Brasil, o grupo migrou para a serra da Cantareira, vivendo como uma comunidade a base de ácidos, ervas e música (não nessa ordem). Com o passar do tempo na Cantareira, os Mutantes começaram a compor novas canções, registradas no quinto e mais controverso álbum da banda, Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets, lançado em maio de 1972. O álbum já começou a ter problemas de cara com a censura, que podou a faixa "Cabeludo Patriota", a qual teve o nome alterado para "A Hora e a Vez do Cabelo Nascer". Além disso, mostra os Mutantes influenciados diretamente por Yes e Pink Floyd.

O rokzão "Posso Perder Minha Mulher, Minha Mãe, Desde Que Eu Tenha o Meu Rock 'N' Roll", cantada por Arnaldo, abre o álbum, lembrando muito as primeiras canções da banda. Segue "Vida de Cachorro", onde Rita está mais sensual do que nunca com sua voz. "Dune Buggy", outra cantada por Arnaldo, traz o mesmo pilotando um moog que havia adquirido há algum tempo. "Cantor de Mambo", também com Arnaldo, é um mambozão mesmo, tentando seguir a linha de "El Justiciero" em canções latino-americanas, e com uma letra tão sacana quanto. "Beijo Exagerado" é outro rockzão de primeira e "Todo Mundo Pastou" encerra o lado A debochando de todos aqueles que criticavam a banda, ou seja, vai todo mundo pastar.

O lado B já abre com mais uma clássica, "Balada do Louco". Considerada por muitos a obra-prima de Arnaldo, essa canção virou símbolo dos estudantes e músicos contra a ditadura brasileira. Uma pérola que com certeza deve estar entre as melhores letras da música brasileira. Mais um "metal" surge em nossos ouvidos, agora com "A Hora e a Vez do Cabelo Nascer", que viria a ser regravada anos depois pelo Sepultura no álbum Sanguinho Novo. "Rua Augusta", de Hervé Cordovil, é uma versão debochada para o clássico da pompeia paulistana, famosa na voz de Celly Campello.

Dinho Leme, Rita Lee, Arnaldo Baptista, Liminha e Sérgio Dias

Então, chegamos na Maravilha de hoje, "Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets". Com seus mais de dez minutos de muita doideira, a faixa abre com o longo solo de órgão de Arnaldo, como um "Fantasma da Ópera", preenchendo lenta e agonizantemente os canais do ouvinte. A guitarra de Serginho surge, soltando agudos cavernosos entre acordes agressivos do órgão, e então, após uma barulheira infernal do órgão, baixo, guitarra e órgão começam um riff massacrante, que é o riff principal da canção, junto da bateria e do baixo. Aqui já se passaram dois minutos da nossa Maravilha, e estamos aflitos para saber o que virá.

O baixo de Liminha passa a solar sobre uma base macabra, junto a percussão de Dinho. Arnaldo pisoteia os pedais de seu moog e do órgão, solando magistralmente sobre a base de baixo e percussão, encerrando a série de solos de Arnaldo com a repetição de oito vezes de uma série de notas entre baixo e órgão.

"Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets" muda totalmente a partir disso, virando um jazz agitado e inimaginável, mas não para o quinteto, abrindo com um mais um grande solo de órgão, deste que é um dos mais injustiçados tecladistas nas listas referentes aos músicos que tocam esse instrumento. As escalas velozes e o ataque as teclas é o principal mérito do breve solo de órgão, e então é a vez de Sérgio relembrar o velho Slam Stewart, solando sua guitarra e acompanhando o solo com a voz. O solo começa devagar e vai pegando força, até o guitarrista despejar potência no wah-wah, imitando cada nota com uma vocalização acima do perfeito, e não há nada a ser dito para isso do que FENOMENAL em letras garrafais!

Arnaldo Baptista

Após a magnífica participação de Serginho, a música começa a viajar, com Arnaldo mais uma vez destruindo no órgão, viajando com barulhos sinistros sobre a mesma base macabra que havíamos ouvido anteriormente, e também com a guitarra de Sérgio fazendo seus delírios musicais. O êxtase é atingido  com a entrada de um órgão de igreja, de forma muito amena, e então Sérgio, Rita e Arnaldo passam a entoar a letra de "Tempo no Tempo", versão da banda para "Once Was a Time I Thought" (The Mamas & The Papas), que foi registrada no primeiro álbum do grupo, Os Mutantes.

O riff principal retorna assustadoramente, intercalado por passagens de órgão, e a Maravilha de hoje é concluída com um furioso solo de guitarra e muito barulho, em um dos melhores orgasmos musicais que o rock progressivo brasileiro já forneceu para seu ouvinte.

Capa dupla interna da versão original em LP

Ainda temos mais uma versão para "Todo Mundo Pastou", e Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets encerra-se com uma inquestionável qualidade que vem sendo descoberta ano após ano por novos e velhos fãs do grupo. 

O título possui duplo sentido. Inicialmente, ele parece ser uma paródia para Bill Haley and his Comets, onde a gíria “bauretz” significa algo como um “barato”. Porém, a outra interpretação é aquela referente a "baura", apelido carinhoso para maconha. A capa-dupla da edição original apresenta uma linda pintura na capa interna, obra do artista plástico Alan Voss, que tentou transferir para o desenho o significado da palavra Mutante. Posteriormente, os relançamentos apresentaram a capa somente no formato simples.

O grupo começou a promover o álbum com uma apresentação no famoso Teatro do Tuca (teatro da Universidade Católica) . Depois disso, e de muitas experimentações na Serra da Cantareira, decidem se embrenhar em uma turnê pelas cidades do interior de São Paulo, munidos de seus instrumentos e de um ônibus. Esses shows, a maioria ao ar livre, começaram em Guararema, onde foram tiradas as fotos que aparecem no segundo álbum solo de Rita, Hoje É O Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, lançado também em 1972 e contendo a Maravilhosa "Superfície do Planeta", e depois, passou mais algumas cidades.

Algumas semanas após a turnê, Rita foi tirar férias na Inglaterra, onde conheceu o músico Ritchie. Os dois formaram uma grande amizade, com Ritchie vindo morar no Brasil, tornando-se famoso primeiro formando a Vímada, e depois, com o mega-sucesso "Menina Veneno". A gravadora Polygram exigiu o segundo lançamento solo de Rita, o já citado Hoje É O Primeiro Dia do Resto de Suas Vidas, gravado com os demais Mutantes, mas o clima entre o quinteto não era o mesmo.

Mutantes defendendo "Mande Um Abraço Pra Velha" no VII FIC (1972)

Em 17 de setembro de 1972, no VII Festival Internacional da Canção, o mesmo que revelou O Terço e Raul Seixas aos brasileiros, ocorre a última participação de Rita com os Mutantes, através da Maravilhosa "Mande Um Abraço Pra Velha" citada no início do texto. 

Rita saiu (foi despedida?) e montou parceria com a guitarrista Lúcia Turnbull, registrando posteriormente seu terceiro álbum solo, Atrás do Porto ... Tem Uma Cidade, além de criar uma briga interminável com Arnaldo (seu ex-marido) e Sérgio. Os detalhes dessa briga são desnecessários, até por que cada um tem seu ponto de vista sobre o que aconteceu, e as injúrias permanecem até os dias de hoje.

Voltando para a música, os Mutantes seguiram como um quarteto, registrando em 1973 o álbum duplo O A E O Z, que acabou sendo recusado pela gravadora da banda. Arnaldo saiu e foi lançar Lóki!?, um dos melhores discos da história da música, também em 1974, e sobrou para Sérgio Dias seguir com o grupo em ação, reformulando a banda e ainda, em 1974, lançando mais uma Maravilha Prog, como veremos daqui há quinze dias por aqui.







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