O ano que todos amaldiçoamos, mesmo assim, tem-nos dado coisas boas. Falamos de música, é claro, e do inesperado rendez-vous entre Luke Haines e Peter Buck. O resultado é o curioso Beat Poetry For Survivalists.
Vamos às apresentações. Sumárias, que é para não nos alongarmos mais do que o necessário. Luke Haines é o pequeno génio que se foi escondendo por detrás dos The Auteurs (belíssima banda de rock alternativo que se fez ouvir nos anos 90), Baader Meinhof ou Black Box Recorder. Depois desses tempos, que duraram até ao início dos anos 2000, Luke Haines passou a fazer música em nome próprio e conta já com mais de uma dúzia de discos de inegável interesse, alguns dos quais já fomos dando nota por aqui. Quanto a Peter Buck, os mais esquecidos precisam da informação que os mais atentos prescindem: foi apenas o enorme guitarrista dos saudosos R.E.M. Conta a história recente que Peter Buck comprou um quadro de Luke Haines (sim, para além de músico também pinta e escreve), um retrato de Lou Reed, para sermos mais precisos. Conheceram-se. Por essa via, e por certas elegâncias do destino, juntaram-se para que um disco de ambos fosse gravado. Nunca tocaram juntos em estúdio, ao que consta, mas o álbum fez-se mesmo assim. Ponto final.
Agora que já todos sabemos quem são os artistas maiores de Beat Poetry For Survivalists, convém esclarecer (ir ao engano é sempre uma coisa terrível) que neste recente álbum quase não se nota a marca distintiva da guitarra de Buck, tantas e tão boas vezes ouvidas desde Murmur (1983) até Collapse Into Now (2011). Sim, é uma dura verdade, mas não faz mal. Convenhamos: Peter Buck nunca foi um homem exibicionista dos seus dotes. Já Luke Haines, esse, continua o mesmo excêntrico, misturando tudo o que lhe vier à cabeça. Desta vez, são assuntos Jack Parsons (célebre engenheiro que se destacou na propulsão a jato, químico e oculista), os sinistros acontecimentos poltergeist de Enfield, Inglaterra, dos finais dos anos 70, Aleister Crowley, Big Foot, o político cambojano Pol Pot, Andy Warhol e uma rádio apocalíptica que apenas passa discos de Donovan. Conhecendo Luke Haines como conhecemos, nada de extraordinário há a apontar. O seu incessante delírio permanece intacto.
Musicalmente falando, Beat Poetry For Survivalists é um álbum que dispara para vários lados, mas com um certo rumo, mesmo assim. Será, porventura, um breve manual da arte de fazer garage-rock, por vezes mais narrativo do que cantado (Haines a ser Haines, pois claro), com psicadelismos quanto-baste, algumas boas guitarradas e as alucinações sonoras típicas dos trabalhos do músico inglês. O disco, aliás, soa bem mais a Haines do que a Buck. Se esperavam o contrário, desenganem-se.
Vamos às boas canções, que as há em razoável quantidade. A melhor de todas é a que abre o disco. “Jack Parsons” é daqueles temas que poderíamos cantarolar se pudéssemos, nos tempos que correm, andar pelas ruas ao sol de março, livremente, sem as restrições que nos fazem ser, todos nós, parte daquela “lonely people” que os Beatles cantam em “Eleanor Rigby”. “Beat Poetry For Survivalists” é outro tema bem esgalhado, com bom groove, se o soubermos escutar. “Witch Tariff” tem também o seu encanto, algo misteriosa, mas bastante cativante. “Andy Warhol” é, no seu estilo mais cortante, outro belo momento de rock. “Bobby’s Wild Years”, quase a fechar os quarenta minutos do disco, é outro momento a reter. E a fechar, a mais pálida “Rock’ N’ Roll Ambulance” é perfeita para colocar um ponto final a Beat Poetry For Survivalists.
O disco, como se sabe, junta uma estrela do rock (Peter Buck) a um lutador e sobrevivente dessa mesma causa. Vale bem a pena ouvir (uma ou duas vezes não bastam, fica o aviso) as dez canções nele propostas. Beat Poetry For Survivalists não é um extraordinário álbum, mas fará em nós o seu caminho se lhe dermos a chance que merece.
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