Quando canta as palavras “Caminhei, brumas densas. Atraquei / Num mar suspenso, terno, fico aqui”, Sara Correia parece dar voz à sua própria história de vida. E isso acontece logo em “Madruguei”, o solene tema escrito por Mila Dores que abre o seu novo álbum, Liberdade. Sara explica que só consegue cantar palavras em que acredita, em que se revê: “tenho mesmo que sentir uma conexão muito grande com as letras”. E isso é a constante verdade que faz do seu terceiro álbum um verdadeiro triunfo.
Sara Correia chega a 2023 com justo estatuto de fenómeno: cruzou o mundo sempre sob aplausos, lançou dois álbuns aclamados pelo público, elogiados pela crítica e premiados pela indústria, foi nomeada para um Grammy Latino e chamada a cantar Portugal perante os atentos olhos da Europa institucional, cantou Amália e fez vénias a Carlos do Carmo, reuniu à sua volta alguns dos melhores letristas e compositores da actualidade e afirmou o fado como a sua casa. “E tudo”, garante ela, “aconteceu de forma natural, sem que eu procurasse ou forçasse. Foi tudo como a vida quis”, diz Sara, como se o seu talento não fosse para aqui chamado.
“Liberdade”, explica também a fadista, é o disco exacto que queria fazer agora, um álbum que foi feito sem pressão, resultando de muitas conversas tidas com o seu produtor de sempre, Diogo Clemente. “Desenhámos um disco integralmente com linguagem melódica fadista e com portugalidade vincada”, sublinha o produtor. “Aqui a âncora fadista foi a procura dessa garantia para que em cima se pudessem vestir as melodias de arranjos distintos e sonoridades mais ecléticas, livres, sem estereótipos”. Sara concorda e confessa que este é mesmo o seu disco “mais fadista, mais eu”. O que já diz muito do que aí se escuta.
No álbum perfilam-se, sem desafiar a sorte, 13 temas, uns fundando-se no cânone tradicional – como são os casos de “Liberdade”, que tem por base o Fado Cravo de Alfredo Marceneiro, “No Fim Mentir Por Nós É Amar”, cuja música resulta da junção dos Fados Proença e Tamanquinhas, e ainda de “Tu Não Me Digas”, do grande Santos Moreira –, outros reinventando essa tradição no presente através de melodias escritas por Mila Dores, Joana Espadinha, Pedro Abrunhosa, Nuno Figueiredo, Carminho ou Tiago Bettencourt, além de Diogo Clemente, claro está.
E depois há as letras, parte importante deste trabalho que ecoa a vida de Sara Correia. Os nomes já mencionados não dão apenas provas de mestria na escrita de melodias memoráveis que assentam como requintadas luvas no timbre de Sara Correia, mas dominam igualmente de forma admirável a arte de abrir a alma na folha em branco. Sara diz que estas pessoas que escreveram para si sabem o seu “fundo”, forma bonita de admitir que elas conhecem os seus mais íntimos recantos.
Em “Chelas”, o primeiro tema revelado do alinhamento de “Liberdade”, as palavras são de Carolina Deslandes, mas a história que ali se conta é, indubitavelmente, de Sara, que nos jura, cantando, que “quem vem da rua é sempre nobre”. Ouvindo a fundura pura da sua voz, não há como não acreditar. Explica-nos Diogo Clemente que quando a sua voz aparece, “ouve-se Portugal”.
E é isso que justifica a segurança com que Sara Correia agarra numa das mais belas peças do cancioneiro maior de Zeca Afonso, a “Balada de Outono”, levando-nos a acreditar que aquela canção também é sua, que aquele sono vazio que as águas passadas do rio não vão acordar é igualmente o seu. “É um dos temas mais importantes do disco”, explica. E é mesmo, por mostrar a profundidade que esta artista é capaz de alcançar. Só que neste álbum não há temas menos importantes, todos espelham um recanto da sua alma, todos vivem com força redobrada na sua voz.
Com o som límpido e original da guitarra portuguesa de Ângelo Freire, e pontuais participações no baixo de Frederico Gato e na guitarra acústica de Tiago Bettencourt, este é um profundo trabalho de Diogo Clemente que nos diz que este é um álbum uniforme e coeso, mas tingido por muitas cores distintas e texturas que resultam de subtis experiências e influências captadas noutros géneros. Tudo isso cabe no fado de Sara Correia, tudo isso ressoa na sua alma que vive plena nesta Liberdade.
“Liberdade” de Sara Correia já está disponível. A fadista anunciou igualmente duas atuações nos Coliseus de Lisboa e Porto a 9 e 22 de março de 2024, respetivamente.
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