Bruce Springsteen tem 69 anos e é uma fraude com um truque de magia.
Durante anos cantou a vida nada fabulosa dos americanos: trabalhadores a transbordar de sonhos por cumprir, miúdos que casam cedo e que ainda mais prontamente perdem a chama, desempregados de longa duração que não conseguem pagar a hipoteca de uma modesta casa. Esta é a realidade da América de Bruce Springsteen, mas não é a sua realidade. “Nunca tive um trabalho honesto em toda a minha vida. Nunca fiz trabalho pesado. Nunca trabalhei das 9h às 17h. Nunca trabalhei cinco dias por semana até agora… Não gosto! Nunca pus os pés dentro de uma fábrica, mas foi isso a única coisa sobre a qual escrevi. À vossa frente está um homem que teve um imenso e absurdo sucesso escrevendo acerca daquilo que nunca teve a mínima experiência pessoal.” É assim que o músico se apresenta no concerto Springsteen on Broadway e quem leu a sua biografia sabe que esta é uma meia verdade.
É verdade que Springsteen nunca trabalhou nas obras. Não foi um corredor de rua (na verdade só aprendeu a conduzir dois anos antes de escrever a excecional “Racing in the Street”). Na verdade, as únicas experiências pessoais que teve só deram material para os extraordinários três primeiros discos da sua carreira. Álbuns onde se cantava sobre amores adolescentes, serenatas feitas a miúdas que até nem eram nada feias, ou sobre a vida de um jovem a passear no equivalente de Nova Jérsia ao Cais do Sodré.
Mas a partir de 1978 as canções de Springsteen mudaram. Já não eram apenas sobre rebeldia juvenil e amores difíceis. Os temas olhavam para as vidas árduas dos norte-americanos, o dia a dia daqueles que falharam o sonho americano. Começava o artifício em Springsteen, o homem começou a contar a história do seu país, dos seus conterrâneos, as pessoas que conhecia e que sentia que era seu dever ajudar. Entre estas personagens que quis cantar, estava o seu pai o homem que odiou e que amou e a quem quis imitar toda a vida. E talvez o pai do homem que escreveu “My Home Town” nunca tenha estado tão presente num disco como neste Western Stars, de Junho de 2019.
Springsteen contava em Born to Run (a autobiografia) que o seu pai tinha umas pernas enormes e parecidas com troncos, calçava botas pesadas e gostava de ir para o bar local beber até mais não. Era um homem reservado com os filhos e que tinha dificuldade em abrir-se. Um norte-americano médio que passou ao lado da revolução do flower power e que desdenhava a cultura popular. E Bruce desdenhava-o a ele. Mas ao crescer e conhecer centenas de pessoas diferentes começou a entender o pai e a fazer as pazes com este. Lembrava, no concerto da Broadway, um sonho que tivera em que saía do palco, se sentava numa das cadeiras da frente, ao lado do pai, e que se ficava a ver a atuar com a E-Street Band. Depois inclinava-se para o velhote e apontava para o jovem musculado, de cabelo aos caracóis, barba desalinhada e brinco a saltar no palco. “Está a ver pai? Aquele tipo no palco? É assim que eu o vejo.”
Imaginamos o pai de Springsteen, sentado na cozinha a ouvir Glenn Campbell e Harry Nilson e são esses músicos que Springsteen invoca neste Western Stars. Nas treze canções do disco, Bruce é muito menos Roy Orbison e muito mais uma estrela decadente do country. E são essas as melhores estrelas de country.
Ao longo de 50 minutos, Springsteen vai desfiando personagens, quase sempre em estrada, quase sempre falhadas, quase sempre reais. E existe também carinho por estas personagens na entrega que o músico faz. Na primeira canção, “Hitch Hikin’”, a personagem principal segue pela estrada, “following the weather and the wind”, apanhando uma boleia ocasional. E nessas boleias encontra velhas personagens suas: o casal “grávido de esperanças” (“The River”), um condutor de camiões (“Open All Night”) e um tipo orgulhoso da potência do seu carro (“Racing in the Street”). A entrega de Springsteen parece carregar essa mesma nostalgia de quem vai encontrando velhos amigos pelo caminho e fica feliz com isso.
E se “Glory Days” é um dos grandes hinos de Springsteen, “Western Stars” é a versão adulta dessa mesma canção. Nela, o homem de 69 anos leva o ouvinte a um qualquer set onde se grava um anúncio. Um ex-cowboy (que podia perfeitamente ser o Mikey Rourke d’O Wrestler) prepara-se para mostrar a sua satisfação com aquele “little blue pill”. O ritmo intermitente da guitarra acústica, complementado pelo uivar do oboé e da slide guitar e o pulsar bem demarcado do baixo conferem um fatalismo maior à entrega dolente e magnífica de Springsteen. Até que chegados ao fim do terceiro refrão se levanta uma parede de cordas, como que alimentada por aquele tal comprimido prometido no início da canção, preparando o caminho para o verso central. “Once I was shot by John Wayne/ Yeah, it was toward the end / That one scene has brought me up a thousand drinks / Set me up and I’ll tell it for you, friend”, canta Springsteen num tom de crooner que relembra os bons velhos tempos de glória de ter contracenado com o mais famoso actor norte-americano.
Auxiliado por dezenas de músicos que bebem mais da tradição country do que do rock, Springsteen puxa dos galões de estrela velha e tem orquestrações de cordas e de trompa dignos de um Glen Campbell com brinco na orelha esquerda e bronzeado artificial. E se em algumas canções como “Drive Fast (The Stuntman)” ou “Sundown” a adição da E-Street Band faria bem aos temas, dando-lhes uma maior pujança, a verdade é que estas orquestrações assentam que nem uma luva ao Springsteen de 69 anos.
Ouça-se por exemplo “Hello Sunshine” e percebe-se rapidamente que o piano repicado, a bateria contida e omnipresente e as orquestrações de viola de arco, violino e violoncelo permitiram a Springsteen ter tido um enorme sucesso a cantar baladas de amor country, não se tivesse agarrado ao mais barulhento dos rock and rolls.
Lembro-me da primeira vez que tive contacto com o Bruce Springsteen. Foi com o videoclipe de “Born in the USA”, transmitido na SIC Gold (entre outras canções, passava muito a “Forever Young” dos Alphaville). Não gostei daquele tipo com bandolete na cabeça, um casaco de gosto duvidoso e calças de ganga justa (mas gostei dos Alphaville…).
Mais tarde, já com os meus 12 anos comecei a descobrir os Jimi Hendrix, Queen e Led Zeppelins desta vida. E voltei a ver este homem na televisão. De novo “Born in the USA” e, tal como Ronald Reagan, não entendi a canção, só ouvi mesmo o refrão. Mas tudo mudou. O Bruce tornou-se lentamente num ser que admirava e cuja música devorei. Ouvi, li e escrevi sobre ele. Andei meses com uma cassete do Boss no carro. Quis descobrir a América profunda e decidi que um dia vou percorrê-la. Quando o fizer, levo Western Stars para ouvir ao atravessar Nashville.
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