sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Tracy Chapman – Tracy Chapman (1988)


 

Passados mais de  30 anos, continuamos a precisar de falar de Tracy Chapman, e do excelente disco que nos deixou.

Nos anos oitenta acreditava-se piamente que a música podia salvar o mundo – entre Live Aid“We Are the World”“Do They Know It’s Christmas?”, a missão de ajudar os pobres de África era o tema quente na agenda, tipo o aquecimento global da altura. Sendo os maiores influencers os músicos, nada como concertos massivos, transmitidos para todos os cantos do mundo (ou vá, todos os cantos que tivessem televisão) para potenciar o impacto e fazer passar a mensagem e a importância de lutarmos por um mundo melhor. Nada errado nisso, obviamente, mas olhando para trás é fácil concluir que tudo não passou de uma bonita ilusão.

Já mais perto do final da década, este formato foi também utilizado para um acto claramente político – pressionar a libertação de Nelson Mandela. Utilizando-se como ocasião o festejo do 70º aniversário do ícone maior do continente africano, foi organizado um concerto num estádio de Wembley lotado e transmissão para 600 milhões de pessoas, com um cartaz cheio de nomes sonantes como Sting, Phil Collins, Bee Gees, Bryan Adams, Joe Cocker, Peter Gabriel, Whitney Houston, Dire Straits, entre muitos outros. Lá pelo meio, apareceu uma tal de Tracy Chapman, só ela e sua guitarra. As imagens falam por si – Tracy, que andou durante anos a tocar por ruas e pequenos cafés em Cambridge, Massachusetts, estava completamente fora da sua zona de conforto. Ainda assim, e após um curto set de 3 músicas, foi chamada novamente para substituir o que seria a aparição surpresa de Stevie Wonder e a sua simplicidade foi conquistadora. Este álbum, homónimo, que tinha sido lançado apenas dois meses antes, disparou no top de vendas e é hoje um dos mais vendidos de sempre, com cerca de 20 milhões de cópias.

É difícil explicar as razões por trás da sucesso de Tracy Chapman no longíquo ano de 1988 – a indústria era rainha e senhora do panorama musical e terá sido um glitch no sistema a permitir que uma rapariga negra, sozinha com a sua guitarra e a falar de temas vividos pelas margens da sociedade chegasse ao mainstream. Em boa hora chegou e em boa hora conquistou com a única coisa que no fundo interessa – a qualidade musical. Quiçá pelo traquejo ganho nas ruas, Chapman moldou um disco bastante despido, cru, sem artifícios, indo assim em sentido perfeitamente contrário ao que existia no mercado. Falando do dia a dia de pessoas reais, das suas dificuldades e sonhos impossíveis (“The life I’ve always wanted/I guess I’ll never have/I’ll be working for somebody else/Until I’m in my grave”), do ambiente onde cresceu em bairros segregados de grandes cidades americanas (It won’t do no good to call/The police always come late/If they come at all”), do racismo (“Choose sides/Run for your life/Tonight the riots begin/On the back streets of America/They killed the dream of America”) chegou ao coração de um vasto público.

Hoje, passados que estão mais de 30 anos, e sem nunca ter-se aproximado minimamente nos anos subsequentes do seu álbum de estreia, Chapman é vista com um certo desdém. Injusto a meu ver, porque um disco que tem músicas como “Talkin’ bout a Revolution” (a esperança, sempre a esperança num futuro melhor), “Fast Car” (portento de narração de uma vida possível, tão próxima mas ao mesmo tempo tão distante), “Baby Can I Hold You Tonight” não merece ser menosprezado. Pela pertinência e pela actualidade que ainda se pode encontrar em Tracy Chapman. Talvez não tivéssemos uma Lauryn Hill (e outras mais à frente) não fosse pelas portas abertas por Chapman e só isso é de um valor inquestionável.



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