Poucos artistas polarizam opiniões como Lou Reed. Dono de uma imagem marcante, voz alienante, gênio difícil e habilidade com as palavras como poucos, mexeu com o status quo da música em duas épocas distintas e de maneiras tão emblemáticas quanto.
Seu período no Velvet Underground revelaria ao mundo um artista completamente deslocado dos padrões artísticos que perduravam durante os anos 60. Reed era quase um terrorista de idéias perigosas, perto dos temas pacíficos e lisérgicos das bandas britânicas. Sexo, drogas pesadas, prostituição, homossexualismo e qualquer coisa considerada errada foram tratados de maneira crua e com uma profundidade dramática dignos de alguém que tinha como a habilidade poética um atributo tão importante quanto a habilidade musical.
Quando estourou mundialmente com o sucesso comercial de seus discos de glam rock, Reed não apenas apresentou a cartilha básica da androginia e do rock flamboyant, mas também mostrou ao mundo toda uma nova perspectiva para o rock nos anos 70. Cantando para uma geração que clamava pela liberdade de expressão sexual e por hábitos de transgressão, Lou, junto com Mark Bolan e David Bowie, se tornou a referência estética e visual para aquele período.
Em uma carreira com quase 30 lançamentos oficiais, é fácil presumir que boa parte deles ou são ruins ou ficaram abaixo daquilo que de melhor ele compôs em seu auge. Entretanto, quase todos têm algo de relevante ou diferente a dizer a seu público. Sejam suas letras sempre inspiradas, sua voz atípica ou até mesmo sua distinta habilidade com a guitarra.
Meu trabalho durante as próximas semanas é dar mais visão a seus discos, fazendo justiça a grandes peças relegadas pelo grande público, além de apresentar todo este vasto universo à pessoas que nunca sequer deram alguma chance à sua música. Nesta primeira parte, já entramos de cara em seu período áureo, aquele onde Lou alcançou suas habilidades máximas como compositor.
Lou Reed [1972]
A estreia solo de Reed acabou não agradando ninguém. Nem os executivos, que acharam o material nada digno da capacidade de Lou junto ao Velvet Underground, muito menos o próprio Reed, que criticou duramente a produção do disco, considerando-a “metálica e sem alma”. O disco acabou passando desapercebido e vendeu muito pouco na época de seu lançamento, deixando Lou em uma situação pouco confortável quanto ao seu futuro como músico. Se analisarmos quem registrou este disco, pode parecer um absurdo que ele tenha passado batido. Dividindo as guitarras com Lou, estava Steve Howe, que você deve conhecer dos tempos de Yes. Nos teclados, Rick Wakeman, também do Yes. Como nem só de bons músicos é feito um bom disco, esse pequeno detalhe acaba ficando apenas nisto: como um pequeno detalhe. Mas sendo sincero, Lou Reed não é um desastre e está longe de ser um disco descartável. Ele é resultado de uma época onde Reed buscava incessantemente se tornar um rockstar aos moldes de Mick Jagger. Tanto é verdade que em muitos momentos Reed praticamente copia os estilos, trejeitos e até os estilos de composição do mesmo. “Walk and Talk It”, por exemplo, seria uma ótima faixa dos Rolling Stones se cantada por Mick Jagger, enquanto “I Love You” é um country rock muito semelhante à composições feitas naquele mesmo período. Lou Reed não é nem de perto um destaque dentro de sua discografia. Um disco onde as melhores composições são basicamente canções “copiadas” de artistas que Reed pretendia se tornar. De qualquer forma, vale a pena conferi-lo para compreender os períodos iniciais da carreira do músico.
Transformer [1972]
Existem muitos motivos para que Transformer seja considerado o ponto máximo na carreira solo de Reed, assim como também ser considerado um clássico atemporal do rock – como ele realmente o é. Reed sempre foi um sujeito atípico que teve suas melhores ideias quando trabalhava em conjunto com alguém que o entendesse como artista e como pessoa. Os discos que compôs no Velvet Unterground funcionam perfeitamente pela química única que desenvolveu junto de John Cale. Em Transformer, Reed usou o máximo que pode da parceria com David Bowie. Bowie já havia declarado abertamente que as músicas do VU lhe inspiraram profundamente, e enxergou como uma oportunidade artística interessante produzir o segundo passo de Lou em sua – no momento – titubeante carreira solo. O resultado não poderia ser menos magistral. Reed tomou para si a ideia de uma figura performática e andrógina, à semelhança de Bowie. O resultado foi o que ficou conhecido à época como o Animal Rock n’ Roll. Semblante pálido e postado nos shows com sua guitarra semi-acústica, mais parecendo um fantasma de voz sem alma, deu vida a uma coletânea de faixas que resumem da melhor forma o auge do glam nos anos 70. Toda o fervor daquela época, somada às tendências de liberação sexual e temática LGBT estão condensadas em suas músicas mais acessíveis, bem executadas e bem produzidas – sempre enfatizando o ótimo trabalho de produção de Bowie. Elevar a magnitude de canções do quilate de “Walk on the Wild Side”, “Vicious” e “Andy’s Chest” é uma tarefa quase obrigatória na atualidade. O disco tornou-se o primeiro sucesso de Reed e realizava o sonho pessoal do mesmo: o de se tornar um rockstar. Infelizmente, Reed tinha um ímpeto pessoal: o de destruir relacionamentos e amizades que conquistava. O processo criativo deixou Bowie em um estado psicológico lamentável. Lou, uma figura dominadora e quase psicótica, influenciava no psicológico de Bowie de uma maneira absurda. Ambos se separaram logo após a produção do disco e referenciavam-se com trocas de farpas pela imprensa, encerrando de maneira prematura uma das parcerias mais certeiras da história da música.
Berlin [1973]
Para alguém de fora, pensar que Lou Reed ficou insatisfeito com Transformer pode parecer algo impensável ou uma mentira absurda. Mas esta foi a realidade. Apesar de muito fã de sua trajetória, uma coisa eu não posso negar: Lou Reed foi, na melhor das hipóteses, uma pessoa completamente detestável, manipuladora e psicologicamente instável. Nunca esteve plenamente satisfeito com suas conquistas, por maiores que elas fossem, e constantemente acabou se auto sabotando por puro ciume. Sem exageros, Berlin é um produto direto da vida insana que vivia. Seu casamento com Bettye Kronstadt ia de mal a pior (duraria apenas um ano). Não raro, Reed espancava sua mulher e declarava publicamente seu desprezo por ela, como neste trecho de entrevista concedida por ele em 1973:
“Minha esposa era um verdadeiro pé no saco. Mas eu precisava de uma mulher pé no saco para me fortalecer; precisava de uma sicofanta que pudesse rebater de lá para cá, e ela se encaixava no perfil… E ela chamava isso de ‘amor’, há!”
Fora esse pequeno detalhe matrimonial, Reed começava a afundar cada vez mais em seu vício em anfetamina. Lou não admitiu esse vício a princípio. Tanto que simulava injetar anfetamina em alguns de seus shows usando uma seringa falsa e fazendo torniquete com o cabo do microfone.
David Bowie, peça fundamental para o sucesso de Transformer, havia sido cortado dos planos de Lou logo no começo da produção de Berlin, para o desespero dos executivos da RCA, que queriam a volta de Bowie para repetir o sucesso comercial do disco anterior. Logo após o outono de 1972, Reed e Bowie foram se distanciando, não demorando tanto para que ambos trocassem farpas publicamente. Bowie acusou Reed de usurpar toda sua indumentária e posição glitter, enquanto que Reed retribuía as acusações com ofensas verbais das mais diversas.
Berlin, o produto final, representa exatamente essa época de exageros, loucura e desesperança com toda a cena glam rock que ele próprio ajudou a consagrar. Liricamente, o disco conta os passos de um casal de viciados norte-americanos vivendo seus piores tempos na capital alemã. O nível de excelência poética contido aqui só seria igualado muitos anos depois em um disco que também geraria muita polêmica. A forma obscura e cínica com que Lou conta a história é de um sentimentalismo capaz de levar pessoas mais sensíveis às lágrimas. O corpo instrumental que acompanha Reed em sua jornada de depressão poética vira as costas quase completamente para o passado glam e investe em arranjos sofisticados, passagens sombrias e uso mais farto de influências de jazz e música clássica. Os músicos envolvidos na gravação deste disco são dos mais competentes com quem Reed trabalharia. Bob Ezrin, Jack Bruce, Tony Levin e Steve Winwood estão entre alguns dos que tiveram participação aqui. Quando lançado, Berlin foi um completo fracasso comercial, não agradou os fãs de sua fase glam e muito menos os executivos da RCA, que esperavam, no mínimo, um desempenho comercial similar ao de Transformer. O tempo tratou de elevar Berlin ao patamar de clássico, fazendo de canções como “Lady Day”, “Caroline Says” e “The Kids” — se você conseguir ouvir essa música sem chorar, pode-se considerar uma pessoa sem alma — algumas das peças mais sofridas e bem interpretadas da história da música.
Sally Can’t Dance [1974]
Reed sempre foi extremamente crítico com muitos de seus trabalhos. Chegou a encarar Sally Can’t Dance como um projeto medíocre, mal produzido e que o compôs apenas para cumprir com a cota de discos “comercialmente viáveis” para a RCA. As críticas contra a produção são realmente justificáveis. Extremamente metálica, ríspida e enaltecendo além da conta os naipes de metais e sopros usados nas canções, tiram muito corpo e alma de músicas com potencial evidente. Mas levando em conta que Reed sempre foi um sujeito excêntrico — para não dizer maluco –, as duras críticas pessoais a este disco são desmedidas. Comercialmente, Sally Can’t Dance é até a data um de seus maiores êxitos. Isso foi um fato que acabou desagradando Reed, que mostrou-se descontente com a aceitação de sua fase Animal Rock n’ Roll, já que o mesmo alegava que aquele não era realmente a representação de suas intensões artísticas e que só continuou naquela faceta para que o material do VU fosse lançado de maneira digna. Liricamente, o disco carrega consigo algumas de suas letras mais intimistas, como a incisiva “Kill Your Sons”, onde Reed relata seu sofrimento nos tempos de adolescência, quando sofria sessões semanais de eletrochoque em uma tentativa desesperada de seus pais controlarem seus comportamentos homossexuais. Outros momentos marcantes são constatados na ótima faixa título, grudenta e com melhor do apelo pop que Reed podia oferecer em seu auge, “Baby Face”, um rock n’ roll simples e sutil, mas memorável, e “N.Y. Stars”, outro momento stoniano de sua primeira fase. Este é um de seus materiais mais acessíveis e o indico àqueles que querem mais amostras do glam rock sedutor de Transformer. Tirando o fator da produção extremamente aguda, um ótimo registro com bons momentos pops e canções bem estruturadas.
Metal Machine Music [1975]
Fuja dessa atrocidade. Com a intensão de sacanear a RCA por conta de obrigações contratuais com mais um disco, Reed teve a não-brilhante ideia de registrar 65 minutos de uma guitarra ressoando entre amplificadores, onde tinha apenas o trabalho de comandar a guitarra por pedais de distorção. O resultado é uma tortura. Você certamente vai achar por aí gente doida o suficiente para chamar isso de música vanguardista ou coisas semelhantes. Eu chamo isso de uma coisa só: lixo. As vendas relativamente expressivas do disco vinham da incredulidade das pessoas. Ninguém conseguia acreditar que alguém poderia ter ouvido “o pior disco já gravado”. Quem comprou a versão em vinil da época e teve bagos suficientes para chegar até o lado B teve a péssima surpresa em descobrir que o disco possuía uma abertura em um dos sulcos do vinil que faziam com a agulha não se erguesse, tocando o disco infinitamente. Sua fama prevalece ainda hoje como um dos discos mais curiosos de todos os tempos. Aconselho que fique apenas nisso: na curiosidade, e nada mais. Como pequeno complemento, deixo um trecho do livro Transformer: A História Completa de Lou Reed, escrito pelo biógrafo Victor Bockris, onde o mesmo relata um trecho do que foi o planejamento de Metal Machine Music:
A única coisa que os executivos da RCA sabiam sobre Lou era que seus três últimos álbuns — Sally Can’t Dance, Rock n’ Roll Animal e Lou Reed — haviam sido sucessos comerciais. A companhia tinha grandes esperanças de que ele entregasse mais um. Como resultado, em uma série de reuniões sobre Metal Machine Music, deixaram Lou assumir o comando. Após convencer a equipe da RCA a apresentar esse produto extremamente incomum, Lou disse a amigos que precisou correr ao banheiro para explodir em risos adolescentes: “Eu disse a eles que o disco era um ‘violento assalto contra os sentidos'”, continuou o executivo da RCA. “Jesus Cristo, era música de tortura, porra! Havia algumas cadências interessantes, mas ele estava preparado para interpretar à sua maneira tudo que eu dissesse. Eu o fiz acreditar que não era um trabalho tão ruim, porque eu não podia me comprometer. Disse: ‘Vou lançá-lo no selo Red Seal*’, e então o presenteei com vários álbuns de música erudita com esperanças de que ele escrevesse algo melhor da próxima vez.”
Todos na empresa ficaram horrorizados com a nova esquisitice de Lou Reed. Frank O’Donnell, um executivo de marketing , lembrou: “Cerca de vinte de nós estávamos sentados em volta de uma mesa de conferências de mogno para uma reunião mensal de novos lançamentos. O representante da A&R na reunião tocou a fita e a sala foi preenchida por um ruído bizarro. Todos estavam se entreolhando; as pessoas diziam: ‘Que diabos é isso?!’. Alguém expressou essa indagação e recebeu como resposta: ‘É o novo álbum de Lou Reed, Metal Machine Music. Seu contrato determina que temos de lançá-lo'”.
Depois de seu ataque anti-comercial, Lou Reed foi, de certa forma, obrigado a entregar um material que fosse realmente considerado minimamente comercial para a RCA. No mesmo ano de ’74, Reed começava a preparar as composições para aquele que viria a ser um de seus discos mais aclamados. Esta parte da história, e seus desdobramentos, serão detalhados na segunda parte desta matéria.
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