Cinco soldados. Tocaram tambores. E todos dançaram, na terra. Esta adaptação livre das palavras escutadas no refrão de uma das canções do álbum “Mãe“ (1983), dos Heróis do Mar, podia ser um retrato rápido de memórias de um dos casos superlativos da história pop/rock cantada em língua portuguesa. Não o retrato único, que outros destinos e valores passaram também pela sua música, mas entre estas palavras cruzava-se a aura disco-militar que passou pela alma da banda (pelo menos na primeira etapa da sua carreira), uma noção de festa e apelo à dança (que invariavelmente cruzou grande parte dos seus singles) e uma ligação ao seu espaço e tradições, desse convívio entre uma consciência de raiz e heranças e uma visão pop que almejava a modernidade nascendo uma música que marcou o seu tempo (e deixou descendência).
A 25 de Novembro de 1981, subiam ao palco do Rock Rendez Vous para dar a conhecer não apenas a música do seu primeiro álbum (que então era editado), mas também uma proposta pop capaz de agitar e marcar o seu tempo como a emergente cena pop lusitana ainda não tinha visto. Recorde-se que estávamos a pouco mais de sete anos de distância da revolução e, depois de vivida uma etapa de protagonismo maior e natural da canção política e, depois, um renascimento do peso da canção ligeira (ainda em finais dos anos 70), só perante os alvores dos oitentas o panorama musical português acolheu, com peso e representação social, o nascimento de uma verdadeira cultura jovem (com natural protagonismo de novas expressões musicais). Se o punk fora caso quase silencioso num mapa de acontecimentos discográficos ainda longe de preparado para lhe dar devida repercussão (o que fez dos Faíscas um caso importante no contexto, mas alheado da atenção popular), e se os dias do pós-punk prepararam terreno (daí, novamente, o papel crucial da visão de uns Corpo Diplomático), aos Herós do Mar coube o “fado” de serem a banda certa na hora certa.
O seu álbum de estreia juntava uma atenção para com as formas contemporâneas a referências do espaço, cultura, vivências e língua do país. Escutando desde logo uma certa melancolia fadista (que aprofundariam mais tarde no magnífico “Fado”, de 1986) ou uma relação com heranças de África (a que regressariam, em 1988, numa parceria com Waldemar Bastos em “Africana”).
Com princípio, meio e fim durante a década de 80, a obra dos Heróis do Mar inclui o visionário “Heróis do Mar” (1981) ao som mais electrónico e arrumado, mas seu herdeiro directo em “Mãe” (1983), passa depois pelo mais experimental e novamente desafiante “Macau” (1986) e desemboca no mais sofisticado, mas menos mediatizado “Heróis do Mar”(1988), disco por vezes referido como “Heróis do Mar IV”. Muitos dos episódios desta história fizeram-se a 45 rotações, num percurso que inclui ainda o mini-LP de alma mais eléctrica “O Rapto” (1984).
Estas são notas a acompanhar por aqui ao longo das próximas semanas, à medida que for nascendo uma visão comentada da discografia dos Heróis do Mar.
ÁLBUNS
1981. “Heróis do Mar”
Lado A: Brava Dança dos Heróis / Amantes Furiosos / Magia Papoila / Salmo
Lado B: Bailai / Olhar No Oriente / Mar Alto / Saudade
Editado em Novembro de 1981, o álbum de estreia do grupo, ao qual chamaram simplesmente “Heróis do Mar”, revelou a primeira das mais desafiantes propostas entre uma nova geração que, por esses dias, “inventava” uma nova ideia pop/rock made in Portugal. Assimilando ecos do pós-punk britânico (acolhendo aí as heranças naturais do Corpo Diplomático), procurando um relacionamento entre a forma da canção pop e um fôlego rítmico que assimilava ecos do disco e, ocasionalmente, tons de marcha, escutando paisagens de uma portugalidade então à espera de ser reinventada em clima pop e integrando ainda referências à música africana, os Heróis do Mar desenharam no seu álbum de estreia uma das mais importantes e influentes experiências de uma geração que então procurava uma voz.
A iconografia que tomaram como expressão visual de identidade, a opção por uma imagem de perfil militarista e um olhar por valores e referenciais culturais (expressos na capa de António de Campos Rosado) que foram por alguns tomados então como expressão de uma agenda política fizeram da banda um “caso” então muito discutido para lá das esferas da música.
1983. “Mãe”
Lado A: Volta P’ra Mim / Cachopa / Nunca Mais / Adeus
Lado B: Portugal / Cinco Soldados / Se Fores ao Norte
Quando, em inícios de 1983 surge nos escaparates o segundo álbum dos Heróis do Mar o grupo vivia já num patamar de visibilidade e aclamação que os momentos de polémica gerados por alturas do lançamento do disco de estreia não poderiam imaginar. Atuações (com boa imprensa) em Paris (que ajudaram a abrir portas a uma edição do disco em França), a primeira parte dos King Crimson e Roxy Music, o prémio da Casa da Imprensa, o trabalho no EP de estreia de Né Ladeiras e o sucesso colossal do “Amor” (que abriu a galeria dos discos de platina entre nós), faziam do grupo um claro protagonista da cena pop/rock portuguesa daquele tempo.
Evolução numa continuidade de continuidade face às propostas lançadas no disco de estreia, o álbum “Mãe” elevava a música dos Heróis do Mar a um patamar mais elaborado e polido nas formas, traduzindo uma presença mais evidente dos sintetizadores e, sobretudo, um cuidado na gravação e arranjos que conferia a cada momento um poder cénico que fazia do alinhamento um conjunto de quadros que, mesmo diferentes entre si, revelavam um sentido de coesão e narrativa. Nostalgia e portugalizada são alicerces de um conjunto de sete canções que ora aprofundam os flirts com a pista de dança em “Cachopa” ora exploram melancolia (algo fadista, embora noutras linguagens) em “Adeus” ou “Nunca Mais”, deixando para o trio de faixas no lado B uma coleção de hinos que traduzem uma vez mais o perfil de uma banda decidida a encontrar expressões de uma visão de identidade nacional através de uma linguagem urbana pop contemporânea.
1986. “Macau”
1988. “Heróis do Mar”
Mini LP
1984. “O Rapto”
Lado A: Supersticioso / Tarde Demais
Lado B: Pássaro Vermelho / Só Gosto de Ti
A edição de “Mãe” deu aos Heróis do Mar mais um momento de reconhecimento crítico mas deixou os números aquém das fasquias de popularidade já levantadas pelos singles “Amor” e, logo depois, “Paixão”. Por esses dias começam a desenhar-se vários projetos em paralelo, da criação de um álbum a solo (do qual só um single seria editado) de Carlos Maria Trindade ao lançamento do single “Rapazes de Lisboa” de Paulo Pedro Gonçalves, aventuras em nome próprio às quais se juntou então um trabalho de estúdio ao lado de António Variações naquele que seria o seu segundo e derradeiro álbum, “Dar e Receber”, editado em 1984 e, ainda, trabalhos de produção, assinados por Pedro Ayres Magalhães, para Anamar, Né Ladeiras, Luís Madureira, Doce e Delfins, quase todos eles lançados através da independente Fundação Atlântica. Na hora de voltar a reunir, os Heróis do Mar apresentaram-se com um mini-LP (expressão que pode ser discutível já que corresponde igualmente ao formato de um EP com 12 polegadas, embora se apresente a 33 1/3 rotações) no qual, mais do que nunca, e talvez por assimilação de todas estas experiências, uma ideia de diversidade circulava entre as novas canções.
Editado com o título “O Rapto”, o disco que, juntamente com o single “Alegria” (1985), antecede a criação de um momento de maior fôlego que só chegaria com “Macau” (1986), apresenta-se ainda em clima pop, mas desta vez vai para além das referências pós-punk do álbum de estreia e não vive sob um tão evidente predomínio das electrónicas como o fizera o segundo LP. Guitarras e sintetizadores, numa firme aliança com a secção rítmica, abrem o alinhamento com tempero mais elétrico em “Supersticioso”. “Tarde Demais” e “Pássaro Vermelho” herdam depois, com produção mais sofisticada, linhas captadas na evolução natural da obra do grupo (deixando para o segundo destes dois temas o episódio com travo a hino do disco). O alinhamento fecha com “Só Gosto de Ti”, que se juntaria aos singles já antes aclamados como mais um momento de êxito. Como complemento o mini LP incluiu, na sua prensagem original (e com tiragem limitada a dois mil exemplares), um single com as versões, respetivamente em inglês e espanhol, dos seus singles de maior sucesso: “Amor (Hap Happy Day)” e “Passion”.
1986. “Macau”
Lado A: Macau / Fado / Só No Mar / Os Canhões da Belavista
Lado B: Revolução / Sahida / A Noiva / A Torre, A Morte e o Amor
Uma viajem a Macau, projetada para uma semana mas que acabou por durar um mês, abriu caminho para o início de um novo ciclo na vida e obra dos Heróis do Mar. Apesar de terem já editado dois álbuns marcantes, fora através dos singles e máxis, assim como com alguns dos temas do mini LP de 1984 “O Rapto”, que o seu estatuto pop(ular) crescera, construindo uma perceção de uma relação com a música que não traduzia a totalidade do espectro de ideias que o grupo já havia levado a disco. Com um método de trabalho diferente, mais focado nos encontros em estúdio (sob produção dos próprios, com Amândio Bastos e Paulo Neves) e numa partilha criativa mais evidente do que no anterior “Mãe”, o primeiro álbum que então apresentaram por uma nova editora captava ecos diretos dessa viagem a Macau, que o instrumental de abertura desde logo colocava em cena.
Mesmo com um “Fado” (que piscava já o olho a visões a ganhar forma, em breve, nos Madredeus) e um “Só No Mar” a criar momentos de comunicação pop que chegaram a single, “Macau” é um álbum mais cheio de contrastes e surpresa do que os anteriores. Revela mais horizontes nas referências e lança desafios, sobretudo concentrados na face B do vinil. Mas de nada perde a identidade de uma banda ainda firme numa vontade em captar um certo ADN cultural que olhava sobre raízes e tempos, sem contudo procurar um terreno de nostalgia. Antes, a demanda por novos modos de, no presente, e sob uma linguagem universal (a música elétrica) procurar traduzir essas mesmas marcas de identidade coletiva. Uma ideia de fim de império passa por aqui. E da própria história de Macau e da sua geografia distante, mas com linhas ainda evidentes de ligação a Portugal, nasciam ecos e significados que traduziam ao mesmo tempo uma etapa diferente na história da própria banda que as canções então fixaram.
1988. “Heróis do Mar”
COMPILAÇÕES
1985. “A Lenda dos Heróis do Mar 1981/1984”
1992. “Heróis do Mar – Vol 1”
1992. “Heróis do Mar – Vol 2”
2001. “Paixão – O Melhor dos Heróis do Mar”
2007. “Amor”
2011. “1981-1989”
SINGLES
1981. “Saudade / Brava Dança dos Heróis”
1982. “Amor”
1983. “Paixão”
1985. “Alegria”
1986. “Fado”
1986. “Só No Mar”
1987. “O Inventor”
1988. “Eu Quero”
1989. “Africana”
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