sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Cardi B – Invasion of Privacy (2018)

 


O segredo deste disco? Transbordar de personalidade. Cardi é assim: desbocada e divertida, arruaceira e frágil, fanfarrona mas verdadeira. O segredo deste disco é a própria Cardi B.

Torcemos sempre pelos underdogs. Por isso, amamos Cardi B, a miúda pobre do Bronx que “foi derrubada nove vezes, mas ergueu-se dez”. Cardi expõe-se, mostra a sua vulnerabilidade, fala da vergonha que tinha quando lhe apontavam os dentes estragados, e abre o disco com a confissão: “They gave a bitch two options: stripping or lose”. Nas entrelinhas alude também ao gangue Bloods. As meninas boas vão para o céu; as meninas más vão para todo o lado.

A sua bazófia é imensa: diz-se deusa na cama (“Pussy so good, I say my own name during sex”), que estraçalha as suas rivais com os seus saltos altos Louboutin, que o seu amor-próprio não veste menos que Prada e Yves Saint Laurent. Perdoamos, condescendentes, a fanfarronice e o materialismo. Todos queremos no fundo a mesma coisa, ser amados e respeitados, e as suas canções dizem justamente isso: levo porrada desde que nasci mas agora estou no topo e valho tanto como vocês. Se há alguém que merece bordar a sua vida com diamantes é justamente Cardi, a gata borralheira do gueto que se vê transformada em rainha do hip-hop. Foste, Nicki Minaj, podes ser mais versátil e virtuosa mas és menos verdadeira. Cardi é a “real bitch, only thing fake is the boobs”. No hip-hop, como na vida, a verdade é quase tudo.

A estética principal do disco é o trap: baixos profundos sempre à beira da distorção, pratos de choque rápidos e nervosos, sintetizadores melancólicos. Os temas mais interessantes são os que mais devem a esta sensibilidade pesada, opressiva e claustrofóbica. Numa época em que o rock já não tem o mesmo apelo, o trap acaba por ser a linguagem que os adolescentes de hoje usam para dar vazão à angst de sempre. O crescendo emocional de “Bodak Yellow” é antológico, nem Eminem conseguiria melhor. O seu sotaque nova-iorquino e hispânico, embrulhado numa voz rouca e gabarolas, acentua ainda mais a credibilidade de rua em que sempre se baseou o hip-hop.

Mas nem só de trap gingão vive Invasion of Privacy. Há também o contrário: baladas R&B onde Cardi nos mostra o seu lado mais frágil, expondo o seu coração destroçado (“Ring”, “Thru Your Phone”). Às vezes, há leite condensado a mais (o auto-tuning não ajuda, querida Kehlani) mas é esta mistura entre gaja dura do Bronx e vulnerabilidade sentimental que a torna tão humana. Quem não se compadece com o verso “poured out my whole heart to a piece of shit” tem apenas um pedregulho no peito.

Por fim, há o piscar de olho às suas origens hispânicas com o trap latino de “Be Careful” e “I Like it”. Quem tem náuseas só de pensar em reggaeton vai vomitar. Os menos fundamentalistas vão-se divertir e dançar. Todos vão sonhar com Cardi B na cama.

As letras são espirituosas, com linguagem de rua, eficaz porque económica. O flow é como mandam as regras: escorreito e pimpão. As batidas são saborosas, sabem a aqui e agora, ao mesmo tempo que não descuram a história do hip-hop. Mas mais do que palavras ou beats é a sua personalidade que a agiganta: desbocada e divertida, arruaceira e frágil, fanfarrona mas verdadeira. O segredo deste disco é a própria Cardi B.



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