Fazer uma análise de uma discografia extensa é um desafio em si. Quando o artista focalizado é alguém que passou por tantas fases diferentes na carreira a ponto de ser chamado de “Camaleão”, aí o negócio se torna ainda mais complicado. Após resenhar as boxes de Bowie que cobriam sua carreira até o princípio do século XXI, fazer uma discografia comentada foi uma escolha natural. E essa discografia já tinha sido coberta antes aqui na Consultoria, mas infelizmente faz parte das postagens perdidas no passado por culpa do provedor.
Mr. David Robert Jones, então um moleque de 17 anos, juntou um grupo chamado The King Bees e em maio de 1964 gravou um single com “Liza Jane” e “Louie Louie Go Home” (cover da banda Paul Revere and The Raiders). Creditado a Davie Jones and The King Bees, a composição do próprio Bowie sairia em 5 de junho de 1964 pelo selo Vocalion (afiliado à Decca Records). Embora o single tenha tido boa exposição nas rádios, vendeu pouco. E por três anos o moço iria ralar, formando e desfazendo bandas, lançando mais singles sem sucesso, até que, já como David Bowie, teria seu primeiro LP nas lojas em 1967. Daí em diante ele construiria uma extensa discografia, até sua morte
em 2016. No meio disso tudo, ele encontrou tempo para formar um grupo, Tin Machine, em que os demais músicos eram colocados em pé de igualdade com ele, inclusive com o baterista Hunt Sales assumindo o vocal solo em algumas músicas.
Para fazer esta discografia comentada decidi incluir dois álbuns póstumos: The Gouster, que foi engavetado e, com algumas músicas trocadas, virou Young Americans em 1975, e Toy, uma coleção de regravações de músicas antigas que a gravadora tolamente optou por não lançar oficialmente à época – e com isso perdeu Bowie.
David Bowie (1967)
Após lançar vários singles (disponíveis em várias coletâneas semioficiais) entre 1964 e 66, Bowie lançou seu álbum de estreia em 1º de junho de 1967 pelo selo DERAM – dedicado aos artistas mais revolucionários da Decca. Com músicas cheias de orquestrações e ritmos vaudevilleanos, o álbum é um artefato próprio de um artista talentoso e voltado a múltiplas expressões (a música é perfeita, em alguns momentos, para uma peça de teatro ou um espetáculo de dança). Mas se não fosse um disco de David Bowie, hoje estaria esquecido. No todo, o disco não me agrada, mas há coisas boas como “Love You Till Tuesday”, “Silly Boy Blue”, “She’s Got Medals”, “Sell Me a Coat”. Por outro lado, há várias músicas dispensáveis, como a estranha “We Are Hungry Men”, a tenebrosa “Please Mr. Gravedigger” e a infantil “There is a Happy Land”. Em 1970 a Decca lançou a compilação The World of David Bowie, com repertório escolhido pelo próprio, documentando esse período de sua carreira; em 1973, Images 1966-67 traria grande constrangimento a Bowie ao promover a infame “The Laughing Gnome” como o “novo” single do cantor. Voltando ao disco original, para quem quiser tê-lo recomenda-se a Deluxe Edition que traz no CD1 as versões em mono e estéreo, e no 2 os singles, BBC sessions e algumas versões inéditas – este traz “Let Me Sleep Beside You”, “London Bye Ta-Ta” e “In the Heat of the Morning”, músicas que estão à altura do que se fez de bom na época e são muito superiores às que formaram o álbum de estreia. Ou, para quem quiser gastar menos, The Deram Anthology 1966-68.
David Bowie (1969), A.K.A. Man of Words/Man of Music (EUA, 1970), A.K.A. Space Oddity (1972)
Após ser dispensado da Decca, Bowie conseguiu um contrato com a Mercury e deixou de lado as influências do primeiro disco. A história de “Space Oddity”, a música, é bem conhecida: após ter assistido “2001”, o cantor se inspirou a compor uma música sobre o espaço. O single fez sucesso, e o segundo LP a ser simplesmente batizado com o nome do cantor – relançado em 1972 com uma capa que remetia a Ziggy Stardust e com o single como título – mostra a impressionante evolução de David Bowie como compositor em pouco tempo. O álbum – lançado em novembro de 1969 na Inglaterra e no começo de 1970 nos EUA com outro título – abre com a própria “Space Oddity”, em que ele usa um instrumento musical chamado stylophone para narrar a história do major Tom. Em seguida, uma série de composições meio folk, meio psicodélicas, que incluem uma bela canção para a ex-namorada, “Letter to Hermione”, as ambiciosas “Cygnet Committee” e “Wild Eyed Boy from Freecloud”, a divertida “Janine”, e a “Hey Jude” (por causa da extensa coda repetindo uma frase) de Bowie, “Memories of a Free Festival” – uma música em que ele apostava muito e não fez sucesso como single. Sem dúvida, um álbum muito superior ao primeiro, mas ainda abaixo do que Bowie alcançaria: ele precisava de arranjos que valorizassem sua veia rock. Além disso, como apontam vários especialistas no seu trabalho, Bowie aqui estava desesperadamente tentando soar como seu ídolo Anthony Newley, um ator-cantor-compositor-escritor que era a última bolacha do pacote para o nosso amiguinho. Fãs deste período precisam recorrer à fantástica box set “Conversation Piece”, que documenta em cinco CDs boa parte do que David Bowie fez durante o período que levou a este segundo álbum.
The Man Who Sold the World (1970)
O segundo álbum (e terceiro no total) de Bowie pela Mercury saiu após a primeira mixagem (intitulada Metrobolist, um trocadilho com o filme “Metropolis”) ter sido recusada (eventualmente, ela sairia em 2020). A capa britânica, com Bowie de vestido, causou bastante controvérsia na época. O álbum traz a estreia de Mick Ronson e Woody Woodmansey, que o acompanhariam pelos próximos três anos e, como Space Oddity, é produzido por Tony Visconti, que tocou baixo (muito bem, aliás) e flauta doce. David Bowie chegou à beira do heavy metal com “The Width of a Circle” e “Black Country Rock”, e, na faixa-título, entregou um clássico atemporal que se tornaria muito mais famoso nos anos 90 por causa da versão do Nirvana no Unplugged. Bowie estava progredindo rápido, pois este disco é superior ao seu antecessor em todos os aspectos, mas não causou grande comoção nas paradas (o caminho para o estrelato seria mais difícil do que ele imaginava) – aliás, foi lançado na Inglaterra bem depois de nos EUA (em que a capa usada era a mesma de “Metrobolist”) – e acabou tendo pouca promoção, com poucos shows. Mas sem dúvida é um ótimo disco, que na carreira de qualquer outro artista estaria entre os seus melhores (mas estamos falando de David Bowie aqui), e o CD duplo “The Width of a Circle” documenta a trajetória do cantor no ano de 1970, sendo obrigatório para quem gosta do período. Metrobolist, em 2020, recuperou a arte de capa usada nos EUA, mas musicalmente não vejo tanta diferença em relação à versão lançada originalmente.
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Hunky Dory (1971)
Da primeira fase da carreira de Bowie (que vai até Ziggy), este é o melhor disco, na minha opinião. Primeiro disco lançado pela RCA, gravadora em que ele permaneceria até o início dos anos 80, Hunky Dory foi produzido por Ken Scott e pelo próprio cantor (Tony Visconti foi produzir Marc Bolan e o T-Rex); o álbum abre com “Changes” e segue com “Oh! You Pretty Things” – dois clássicos absolutos, obrigatórios em qualquer antologia de David Bowie. Como se não bastasse, ainda traz “Life on Mars”. Trevor Bolder se juntou ao grupo, e um jovem tecladista participou das sessões; convidado para se tornar músico permanente da banda de apoio, Rick Wakeman agradeceu, mas preferiu aceitar o convite do Yes para substituir Tony Kaye. O álbum inclui outras músicas excelentes, como “Andy Warhol”, “Song for Bob Dylan” (em que Bowie soa como Ian Hunter imitando o homenageado) e “The Bewlay Brothers”, primeira composição dele a abordar a homossexualidade. Também traz a animada “Queen Bitch”, para dar direito ao grande Mick Ronson de brilhar, a homenagem ao filho recém-nascido em “Kooks”, e após três discos autorais, a primeira cover que Bowie gravou como artista maduro, “Fill Your Heart”, de Biff Rose, que eu – e possivelmente você que lê este texto – nunca ouvi falar, mas Bowie adorava (infelizmente, ela entrou no lugar da composição original “Bombers”, incomparavelmente superior). Este álbum também foi objeto de uma box set que documenta o período de sua gravação, Divine Simmetry, com 4 CDs e um Blu-Ray Audio recheados com gravações ao vivo, BBC sessions, demos, mixagens alternativas, e acompanhada de um belo livreto detalhando as gravações e um bônus: a reprodução de um caderno de notas manuscritas com letras de músicas, desenhos, anotações das sessões de gravação e set lists da época.
The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972)
Aqui tudo entrou em seu lugar: a banda estava perfeita, Bowie achou sua voz e as músicas eram atraentes. Trevor Bolder, que fazia um bico como cabeleireiro antes de se dedicar integralmente à música, cortou o cabelo do cantor e o tingiu de vermelho, e Ziggy nasceu – mas na capa ele ainda aparece louro. No álbum, Bowie incorporou toda a receita do glam rock, com guitarras pesadas, teatralidade, uma veia roqueira (sem excessos), e acrescentou suas letras controversas. Ziggy… finalmente levaria o cantor ao sonhado estrelato, e várias de suas músicas são presença obrigatória em coletâneas, como a música que deu nome ao personagem, “The Jean Genie”, “Five Years”, “Moonage Daydream”, “Star”, “Hang On To Yourself”, “Sufragette City”. Rick Wakeman diz “presente” em “It Ain’t Easy”, única cover do disco (de autoria de Ron Davies), sobra das gravações de “Hunky Dory”. Ao longo dos anos, muitas edições, com ou sem bonus tracks, foram lançadas, e a box set Five Years traz duas versões deste álbum, uma remasterização de 2012 e uma remixagem de 2003 feita pelo coprodutor Ken Scott. Da turnê de lançamento há um álbum ao vivo, Live in Santa Monica 72, gravado originalmente como um especial de rádio. Altamente recomendado, embora o último show dos Spiders, lançado originalmente em 1983 e recentemente relançado em áudio e vídeo completo pela primeira vez, seja melhor. Por muito tempo, Ziggy … foi meu álbum favorito de Bowie, embora não o seja mais, mas ainda é um dos discos que recomendaria para quem quer começar a ouvi-lo. Recentemente foi anunciada a box set “Rock’n’Roll Star”, cobrindo o período de gravação de Ziggy Stardust, mas ainda não tive oportunidade de ouvi-la.
Aladdin Sane (1973)
Com Ziggy fazendo sucesso, Bowie colocou seu alter ego mais famoso na capa do disco, e o raio vermelho e azul no seu rosto se tornaria uma imagem icônica. Os Spiders From Mars ganharam o reforço do brilhante pianista Mike Garson, bem como de dois saxofonistas e três backing vocals. Garson, os saxofonistas Ken Fordham e Brian Wynshaw, além do vocalista G. A. MacCormack e o guitarrista John “Hutch” Hutchinson (estes dois velhos companheiros de Bowie) formariam com Ronson, Bolder e Woodmansey a banda que acompanharia o cantor na que seria a última turnê de Ziggy. Quanto ao álbum, “Watch That Man”, “Time”, “The Prettiest Star” e a cinquentista “Drive-In Saturday” soam quase como sobras de “The Rise and Fall…”, mas “Aladdin Sane” aponta para novas direções, com seu icônico solo de piano; um dos maiores destaques do disco, sem dúvidas. “The Jean Genie”, embora também deva muito ao disco anterior, tem um riff de guitarra surpreendente, e a versão de “Let’s Spend the Night Together” é quase um prelúdio do álbum seguinte (Pin Ups) – Bowie andava ouvindo muito Rolling Stones, e “Panic in Detroit” e “Cracked Actor” remetem ao quinteto do Mick Jagger. “Aladdin Sane” é um álbum que saiu por pressão da gravadora, que queria surfar nas ondas do sucesso de Ziggy, mas atesta que como compositor Bowie estava passando por uma boa fase. Um ótimo álbum, que sempre esteve entre os meus favoritos.
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Pin Ups (1973)
O álbum de covers (uma jogada incomum à época) é o mais fraco dos que Bowie lançou nos anos 70, e já não traz os Spiders, ainda que Mick Ronson e Trevor Bolder participem (Woody Woodmansey foi substituído por Ainsley Dunbar), reforçados por Mike Garson, Ken Fordham e G. A. MacCormack. O disco não é ruim – os outros é que são muito melhores. Aqui Bowie apenas interpreta músicas dos anos 60 que ele apreciava e o inspiraram em seus primeiros anos como músico, fazendo versões do The Who, The Kinks, Pretty Things, Them, The Yardbirds, Pink Floyd (resultado de sua fascinação pela figura de Syd Barrett) e outras bandas. Tal como “Aladdin Sane”, “Pin Ups” (cuja capa traz Bowie com a famosa modelo Twiggy) liderou a parada britânica, mas não chega a ser a primeira escolha quando se pede para indicar discos do Camaleão. Na minha opinião, as melhores versões são para “See Emily Play”, “Sorrow”, “I Can’t Explain” e “Where Have All the Good Times Gone”, mas, no todo, o álbum não chega a empolgar muito. David chegou a sofrer uma ameaça de processo por parte de Bryan Ferry, que estava gravando seu próprio disco de covers, “These Foolish Things”, mas o cantor do Roxy Music acabou não vendo muitas semelhanças entre os dois projetos; Bowie teria pedido permissão de Ferry para regravar uma música do Roxy, mas não parece ter levado a ideia em frente – quando a Rykodisc relançou o álbum em CD nos anos 90, uma versão para “Growin’ Up” (de Bruce Springsteen) e a cover de “Amsterdam” foram acrescentadas (embora essa última apareça em Re:Call 1, na box Five Years, a música de Springsteen não).
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