Em 1970, o movimento de Canterbury tomou duas direções paralelas, mas contrastantes. Para o Soft Machine, Third , lançado em junho, levou a experimentação ao ponto do free jazz e da abstração, fragmentando suas ideias em longas e complexas suítes instrumentais. Para o Caravan, que levou dois anos para produzir uma continuação de seu álbum de estreia, If I Could Do It All Over Again, I'd Do It All Over You, da Decca, chegou em setembro como uma resposta mais brilhante e melódica. Os dois grupos compartilhavam raízes comuns, ambos emergindo do The Wilde Flowers, mas enquanto o Soft Machine se aventurou na vanguarda radical, o Caravan manteve um gosto pela composição, estrutura e um calor pop que tornou sua música imediatamente convidativa sem sacrificar a sofisticação.
Ainda liderado por Pye Hastings (guitarra, vocal), Richard Sinclair (baixo, vocal), Richard Coughlan (bateria) e David Sinclair (órgão), o Caravan se permite estender suas estruturas e brincar com contrastes: melodias claras, desvios instrumentais exuberantes, quebras rítmicas e harmonias vocais cheias de doçura.
Tudo começa com a faixa homônima, um rhythm & blues curto, animado e quase travesso. Mas, por trás dessa aparente leveza, o teclado libera um som corrosivo, quase áspero, que rompe a natureza despreocupada do ritmo suave. Pye Hastings, por sua vez, entrega um vocal despreocupado, repleto de ironia suave. O tom está definido. Aqui, sofisticação e humor se combinam.
"And I Wish I Were Stoned / Don't Worry", de oito minutos, abre com uma atmosfera contemplativa, quase enevoada, onde a voz de Richard Sinclair flutua sobre acordes suaves antes de harmonizar calorosamente com a de Pye Hastings. Aos poucos, a peça se desenvolve, muda de ritmo e estabelece uma pulsação mais firme. Esta é Canterbury em toda a sua singularidade: essa maneira única de mudar de um estado de espírito para outro sem aviso, transmitida pelo órgão de David Sinclair, que possui uma granulação tão distinta.
Entre emoção e estética, a primeira grande jornada chega com "With an Ear to the Ground You Can Make It / Martinian / Only Cox / Reprise". Quatro partes interligadas, mudanças de andamento, transições instrumentais fluidas, um diálogo constante entre órgão e guitarra. Tudo é costurado à mão, nunca forçado. Encontramos Jimmy Hastings, irmão de Pye, recém-saído da terceira sessão de Soft Machine, como convidado. Sua flauta, arejada e expressiva, às vezes evoca os traços deixados por In the Court of the Crimson King , trazendo um toque quase sinfônico à peça.
"Hello Hello" nos remete a uma música mais direta, carregada por um refrão cativante... e, um detalhe interessante, uma parte rítmica tocada com tesouras de poda, uma referência ao humor excêntrico que permeia todo o álbum. Uma pequena pausa pop que ilumina tudo, perfeita antes de mergulhar novamente em estruturas mais livres. "Asforteri 25" atua como um interlúdio misterioso, hipnótico e inquietante, um respiro antes do grande momento do álbum.
Com pouco mais de 14 minutos, o álbum atinge seu epicentro com "Can't Be Long Now / Francoise / For Richard / Warlock". A introdução, crescente e quase comatosa, se instala suavemente, carregada pela flauta reconfortante que o acompanha ao fundo. Então, a música explode! Santana encontra Soft Machine. O saxofone com toques jazzísticos de Jimmy Hastings entra em cena, adicionando uma nova e vibrante cor ao conjunto. Passagens pastorais e voos melódicos de hardcore seguem, antes de concluir com sequências metaloides de intensidade aterradora. "For Richard" rapidamente se torna um clássico da banda, feito para o palco.
Por fim, “Limits” encerra a jornada com um epílogo curto e delicado, quase melancólico, até nostálgico, como uma despedida silenciosa após uma longa jornada.
Com "If I Could Do It All Over Again, I'd Do It All Over You" , o Caravan lançou um álbum crucial, ambicioso o suficiente para abraçar o rock progressivo por completo, mas caloroso e claro o suficiente para agradar além do círculo de fãs do gênero. Em 1970, foi sem dúvida o ponto de entrada mais bonito no mundo de Canterbury, antes de obras mais ambiciosas, mas igualmente cativantes.
Títulos:
1. If I Could Do It All Over Again, I’d Do It All Over You
2. And I Wish I Were Stoned / Don’t Worry
3. As I Feel I Die
4. With an Ear to the Ground You Can Make It / Martinian / Only Cox / Reprise
5. Hello Hello
6. Asforteri
7. Can’t Be Long Now / Francoise / For Richard / Warlock
8. Limits
Músicos:
Pye Hastings: Guitarra, Vocal
David Sinclair: Órgão, Cravo, Piano
Richard Sinclair: Baixo, Tesoura de Podar, Vocal
Richard Coughlan: Bateria
+
Jimmy Hastings: Flauta, Saxofone
Produção: Terry King
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