segunda-feira, 3 de julho de 2023
JARV IS… – Beyond the pale (2020)
O homem dos Pulp regressa com uma nova banda, novos caminhos musicais e a mestria de sempre
O último disco a solo de Jarvis Cocker, o corpo e alma dos incontornáveis Pulp, já tem mais de dez anos, mas o inglês não tem estado parado. Escreveu um disco para Nancy Sinatra, colaborou com Charlotte Gainsbourg, liderou a edição de uma colecção de livros de ficção, entrou num Harry Potter, teve um excelente programa de rádio na BBC, foi fazendo sessões de dj (incluindo da sua casa, durante o confinamento da pandemia) e, em 2017, deu-nos o fantástico Room 29, álbum clássico com Chilly Gonzales, que ficou na sexta posição dos discos desse ano, escolhidos pela redacção do Altamont.
No meio de toda esta actividade, foi deixando para trás esboços de canções. No final de 2017, foi convidado pelos Sigur Ros para cantar num festival na Islândia e, nesse momento, apercebeu-se de uma coisa muito simples: Jarvis era um músico sem uma banda. Olhando para a sua arca de temas inacabados, veio-lhe a ideia: reuniria rapidamente um grupo que poderia juntar-se-lhe no concerto e trabalhar nas músicas que haviam sido abandonadas.
Essa foi a génese dos JARV IS… e deste disco, Beyond the pale. A estrutura das músicas foi sendo completada e trabalhada em espectáculos ao vivo, incluindo um numa caverna na zona de Sheffield. Todos os concertos foram sendo gravados e parte do que se ouve em Beyond the pale são essas gravações, juntamente com trabalho de estúdio posterior.
Para algo com uma origem tão peculiar, este novo disco acaba por ser um registo estranhamente profundo e trabalhado, como se Jarvis tivesse passado os últimos anos a laborar meticulosamente nos sons que se podem ouvir nos sete temas acabados que resultam neste álbum. Beyond the pale não é um disco com um sentimento de “ao vivo” nem necessariamente de improvisação.
Aquilo que salta inicialmente à vista é a forma como Cocker conseguiu, com a sua banda – que contribuiu para as músicas – manter a sua identidade absolutamente intacta – e a sua é uma voz respeitada como poucas, no Reino Unido – e ainda assim crescer musicalmente para outros terrenos, outra forma de fazer as coisas. Os seus excelentes discos a solo habitavam o terreno pop-rock já calcorreado com tremendo sucesso pelos Pulp, mas agora os caminhos parecem ter-se multiplicado, a estrada a oferecer mais escolhas, a maturidade a proporcionar a confiança para escolher, a cada momento, o que faça sentido, mesmo que o destino seja desconhecido.
O grande destaque terá de ir para o primeiro single, “Must I evolve”, um épico de quase sete minutos que se encolhe e se estende, desenvolvendo-se e mudando de ritmo, com toques tribais, sintetizadores espaciais e um sentimento quase de jazz alucinado, aqui e ali. sempre ao serviço de um grande canção pop, que é a sua imagem de marca. Também em termos de imaginário, nunca antes víramos Jarvis atacar um tema destes: a evolução do homem, desde o Big Bang até ao futuro.
É um grande tema e que deixa o resto do material em apuros para conseguir acompanhar o nível. Há outras pérolas que se destacam, como o minimalismo de “Save the whale”, a lembrar um Leonard Cohen menos sério, ou a calma e bonita “Am I missing something”, passando pelo new wave sintetizado de “House music all night long”. Mas há também a electrónica tensa e negra de “Sometimes I am pharoah”, cujo ritmo final nos lembra que Jarvis sempre foi um raver aprisionado num corpo e numa mente de um bibliotecário; o tom esparso, lento e quase a lembrar David Sylvian de “Swanky modes”; e, para fechar, “Children of the echo”, onde o registo mais improvisado finalmente dá um ar da sua graça, com as duas vocalistas do grupo a insinuarem subtilmente um ar de Stereolab despenteado.
Com apenas sete temas e 40 minutos, Beyond the pale é um disco algo desigual, e só a voz e as palavras de Jarvis nos vão conduzindo com segurança por um caminho que conhecemos e que tanto amamos. Mas é também um registo que desbrava novos terrenos, experimenta novos exercícios, e nos mostra – se dúvidas houvessem – que a habilidade de composição e de escrita deste cinquentão de Sheffield tem sempre a capacidade de nos envolver e de nos surpreender.
Jarvis continua único, continua a estar-se nas tintas para o estatuto de lenda do defuntíssimo britpop, continua à procura de comunicar connosco, naquele seu registo íntimo que mistura os grandes temas da vida com as pequenas misérias prosaicas da mesma.
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