O primeiro e autointitulado álbum dos Secos & Molhados, lançado em 1973, foi um sucesso avassalador. Combinando elementos de rock com influências progressivas e psicodélicas, e infundindo-as na música popular brasileira, o álbum cativou o público com seu som inovador e letras poéticas. Esta mistura única, juntamente com suas performances teatrais e personas andróginas no palco, rapidamente impulsionou Secos & Molhados ao estrelato.
Seu impacto foi profundo, repercutindo profundamente no clima sócio-político do Brasil no início da década de 1970. Músicas como “O Vira” e “Sangue Latino” viraram hinos, capturando o imaginário de uma geração. Em fevereiro de 1974, seu show no Maracanãzinho quebrou recordes de público, atraindo 30 mil pessoas para dentro e deixando surpreendentes 90 mil do lado de fora. Este evento sem precedentes ressaltou a imensa popularidade e significado cultural da banda. A turnê internacional no mesmo ano sugeriu o potencial para uma carreira global.
Apesar do sucesso, as tensões dentro da banda começaram a aumentar. Disputas financeiras e diferenças criativas começaram a prejudicar os relacionamentos. Ao retornar do México, Ney Matogrosso e Gérson Conrad descobriram que seu empresário, Moracy do Val, havia sido demitido. O poeta e jornalista português João Apolinário (1924-1988), pai de João Ricardo, assumiu o controle comercial da banda e propôs um novo modelo de participação nos lucros que reduziria Ney e Gérson de sócios a funcionários, o que aumentou a insatisfação. Ney Matogrosso, revoltado, chegou a rasgar a minuta do novo contrato em sinal de protesto.
Mesmo assim, a banda entrou no estúdio Sonima em junho de 1974 para gravar seu segundo álbum. A atmosfera era tensa, marcada por desentendimentos e uma sensação palpável de mau presságio. O processo de gravação contou com algumas mudanças na formação na banda de apoio, com o baterista Norival D'Angelo substituindo Marcelo Frias. As contribuições musicais também sofreram uma ligeira mudança, com a inclusão do trabalho técnico de guitarra de Jorge Omar e do piano de Emílio Carrera, acrescentando uma textura diferente ao álbum.
Batizado como Secos & Molhados, assim como o álbum anterior, o segundo álbum do trio é também chamado de Secos & Molhados 2. Musicalmente, o álbum segue o mesmo esquema do trabalho anterior, mesclando rock, folk music, MPB, psicodelia, rock progressivo e até música flamenca.
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Secos & Molhados na antológica apresentação no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, no começo de 1974. |
Secos & Molhados 2 apresenta um repertório de canções que combinam uma profunda carga poética, reflexiva e crítica, características marcantes na obra do grupo, especialmente nas composições de João Ricardo, tanto autorais quanto em parcerias. A análise das letras revela um perfil estético e poético multifacetado, rico em simbolismo e temas existenciais.
O álbum inclui adaptações musicais feitas por João Ricardo de poemas de Fernando Pessoa (1888-1935), Oswald de Andrade (1890-1954) e Julio Cortázar (1914-1984), evidenciando uma conexão literária de alto nível. A qualidade das letras se destaca pela riqueza poética, originalidade e profundidade emocional. João Ricardo se revela um letrista talentoso, hábil em mesclar influências culturais diversas e abordar temas universais de forma inovadora e cativante. As letras das canções desse segundo álbum dos Secos & Molhados não apenas refletem a época em que foram escritas, mas também ressoam com questões e sentimentos atemporais, assegurando sua relevância contínua na música brasileira.
“Tercer Mundo” é a faixa que abre o segundo álbum dos Secos & Molhados. Com letra em espanhol cantada brilhantemente por Ney Matogrosso, a canção foi inspirada no texto "La Prosa del Observatorio", do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), publicado em 1972. A letra parece oferecer uma reflexão poética sobre a condição do "terceiro mundo" no contexto global, já que o próprio título da canção é um trocadilho sutil entre “tercer mundo” e “terceiro mundo”. A canção aborda a ideia de que as distinções entre os mundos primeiro e terceiro são ultrapassadas por uma nova consciência global. Essa nova dança da vida, que "nenhuma Izadora dançou" (referência à coreógrafa americana Isadora Duncan (1877-1927), muito provavelmente é uma alusão ao fato do termo “terceiro mundo” ser uma expressão nova na época, criada em plena Guerra Fria para classificar os países subdesenvolvidos que não eram alinhados nem ao grupo liderado pelos Estados Unidos nem ao liderado pela União Soviética.
Um lindo e emocional solo de piano abre a faixa “Flores Astrais”, uma parceria de João Ricardo com o seu pai, João Apolinário, evocando imagens e temas cósmicos, explorando a relação entre a terra e o cosmos, entre o micro e o macro, mostrando como todos os elementos do universo estão interligados. O grito das estrelas e a luz que o repete sugerem um universo vivo e vibrante, cheio de energia e movimento. A proliferação de cores e flores astrais indica a criatividade infinita e a beleza do cosmos, enquanto o verme na lua cheia traz um elemento de humildade e cotidianidade, mostrando que mesmo as criaturas mais simples estão imersas no grande espetáculo do universo.
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O escritor argentino Julio Cortázar: seu texto "La Prosa del Observatorio", inspirou a canção "Tercer Mundo", dos Secos & Molhados. |
Em “Não, Não Digas Nada”, Ney Matogrosso canta acompanhado apenas por um violão dedilhado e uma flauta. A canção é uma adaptação de João Ricardo de um poema do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), assinado sob o heterônimo Ricardo Reis. A letra começa pedindo silêncio: “Não, não digas nada / Supor o que dirá / A tua boca velada / É ouvi-lo já”. Os belos versos adaptados por João Ricardo do poema de Fernando Pessoa parecem uma crítica velada à censura estabelecida pelo regime ditatorial que governava o Brasil à época. Nesse caso, "Não, Não Digas Nada" guarda um parentesco com a canção “Fala”, do álbum anterior, que também é uma crítica à censura imposta pela ditadura militar.
“Medo Mulato” é rica em imagens e simbolismos que exploram o tema do medo, especialmente aquele que surge à noite e está enraizado no imaginário cultural e popular: "No meio da noite / No meio do medo / Aos olhos insones / Os fantasmas passeiam". A cena se passa à noite, um tempo tradicionalmente associado ao desconhecido e ao medo. Toda essa alegoria apresentada na canção poderia ser uma alusão à ditadura militar e ao seu sistema de inteligência que seguia os passos daqueles contrários ao regime ditatorial. Qualquer um poderia estar sob a vigilância da inteligência da ditadura sem perceber, correndo o risco de ser preso, torturado e, por fim, morto: “O escuro esconde / Zumbis, lobisomens / Os bichos do mato / O medo mulato / E a morte passa / Num calafrio que corre / Dos pés à cabeça tapada”. Seriam os censores, os torturadores e todo regime opressor da ditadura os “zumbis, lobisomens e os bichos do mato” citados na canção?
“Oh! Mulher Infiel” surpreende ao trazer um Ney Matogrosso cantando num tom mais grave. A letra explora temas sobre traição, desejo e decepção em um relacionamento amoroso. O eu lírico está preso entre a dor da infidelidade e a atração física e emocional que sente pela mulher. Ele reconhece a eficiência dela em seduzir e consumir sua vida, tanto nos momentos de paixão quanto nas interações mais transacionais. A repetição do lamento "oh! mulher infiel" enfatiza a angústia e a decepção sentidas pelo eu lírico, sugerindo uma tensão entre a atração irresistível e a dor da infidelidade.
Encerrando o lado 1 do álbum, "Voo" faz uma série de comparações entre uma ave e uma nave para explorar o tema do voo de maneira poética e metafórica. Cada parte da ave (bico, olhos, coração, asas) é associada a uma parte correspondente da nave, destacando como a natureza e a tecnologia compartilham características essenciais para o voo. No final, a comparação da alma da ave com a alma do homem sugere que o desejo e a capacidade de voar são algo inerente ao espírito humano. O voo, portanto, é não apenas um feito tecnológico, mas uma manifestação do espírito humano, simbolizando liberdade, exploração e a união entre o homem e a natureza.
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Secos &Molhados em 1974: João Ricardo (sentado), Gérson Conrad e Ney Matogrosso. |
"Angústia" abre o lado 2 do álbum tratando de temas existenciais, refletindo sobre a busca de significado em meio ao caos da vida moderna. A canção expressa a frustração e a dor dessa busca, capturando a luta contínua do ser humano para encontrar sentido em sua existência. Os versos "Na madrugada os sonhos se confundem / E a dor domina o amanhecer" evidenciam essa sensação de deslocamento e frustração.
A faixa seguinte é mais uma adaptação de um poema presente neste segundo álbum dos Secos & Molhados. “O Hierofante” é um poema de Oswald de Andrade (1890-1954), poeta e escritor modernista brasileiro, escrito por ele para a sua peça teatral A Morta, de 1937, e que foi musicado décadas mais tarde por João Ricardo para o segundo e homônimo álbum dos Secos & Molhados. A letra apresenta um tom de alienação, desconfiança e simbolismo, misturando elementos surrealistas e poéticos. A letra de "O Hierofante" reflete uma visão profundamente pessimista e isolacionista sobre a convivência humana. O eu lírico se sente alienado e desconfiado, incapaz de se conectar com qualquer grupo de pessoas. A imagem do escaravelho pintado de vermelho e os rumos tingidos da madrugada adicionam uma camada de simbolismo, sugerindo transformação, proteção ritualística e a mudança do destino. Com os Secos & Molhados, o poema virou um rock vibrante, destacando-se a vigorosa performance do baterista Norival D'Angelo.
“Caixinha de Música do João” é uma faixa instrumental, mas que traz Ney fazendo vocalizações acompanhado pelo piano de Emílio Carrera. O arranjo é delicado e remete ao som de uma caixinha de música.
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O Secos & Molhados musicaram o poema "O Hierofante", do poeta modernista Oswald de Andrade (foto), escrito por ele para a peça teatral A Morta, de 1937. |
A canção "O Doce e o Amargo" apresenta uma poética reflexão sobre a condição humana, a natureza e a busca por significado em um mundo marcado por contrastes e dificuldades. "O Doce e o Amargo" reflete sobre a condição humana em um ambiente de dificuldades e contrastes. A segunda parte da canção sugere uma aceitação dos contrastes da vida, uma atitude de beber tanto o doce quanto o amargo, e de tentar extrair sentido mesmo das impossibilidades. Os versos finais expressam uma esperança de transformação, mesmo em uma "terra morta" de um "povo triste". A letra, portanto, aborda a luta humana contra a adversidade, a aceitação dos contrastes da vida, e a esperança de transformação e renovação mesmo nas condições mais árduas.
"Preto Velho" faz referência a um dos personagens mais populares do imaginário cultural brasileiro e uma figura carregada de simbolismo e significado espiritual dos cultos afro-brasileiros como a Umbanda. Os versos começam descrevendo um "preto, tão preto", enfatizando a cor da pele da figura central, que é um homem negro, idoso, com uma barba branca. A repetição de "tão preto" sublinha a intensidade da cor, enquanto a "barba branca" contrasta com a pele, possivelmente sugerindo sabedoria e idade avançada. Os Secos & Molhados provavelmente utilizam essa figura para comentar sobre questões sociais e raciais no Brasil. O preto velho serve como um símbolo de resistência, resiliência e sabedoria cultural africana no contexto brasileiro.
Com seu viés blues, “Delírio” toca em temas como desesperança e autossuficiência, rejeitando expectativas tradicionais e aceitando os paradoxos da vida: “Não busco a esperança / Nem a felicidade". A canção celebra a individualidade e a imaginação, refletindo uma consciência madura das complexidades existenciais.
Fechando o álbum, "Toada & Rock & Mambo & Tango & etc." traz versos que parecem tratar da aceitação das limitações do conhecimento humano. Mas, ao mesmo tempo, levando-se em conta o estado de patrulha e autoritarismo em que se encontrava o Brasil em tempos de regime ditatorial, os versos podem sugerir o desespero do eu lírico em negar qualquer tipo de envolvimento com grupos opostos à ditadura, temendo sofrer prisão e tortura.
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Capa da edição 268 (20 a 26 de agosto de 1974), do jornal O Pasquim, publicou entrevista com o empresário do trio, Moracy do Val, que contou detalhes do fim dos Secos & Molhados. |
Secos & Molhados 2 foi lançado em agosto de 1974, pouco antes do anúncio oficial da dissolução da banda. Embora incluísse a faixa "Flores Astrais", que obteve grande sucesso nas paradas, o álbum não conseguiu repetir o impacto comercial do álbum anterior. A ausência de uma entrevista coletiva de imprensa e de uma turnê de lançamento ressaltava a crise dentro do grupo. As gravações dos videoclipes de "Flores Astrais" e “Tercer Mundo” para o programa Fantástico, da TV Globo, foram as últimas aparições públicas do grupo antes do fim.
No dia 11 de agosto de 1974, o Fantástico anunciou a dissolução dos Secos & Molhados, marcando o fim de uma era. O rompimento foi noticiado oficialmente um dia antes pelo Jornal da Tarde, destacando a saída de Ney Matogrosso e focando na discórdia interna da banda. A separação foi um choque para os fãs e até mesmo para os músicos da banda de apoio dos Secos & Molhados, causando turbulência emocional, principalmente para o guitarrista John Flavin.
Cada integrante seguiu para suas carreiras solo, com João Ricardo, Gérson Conrad e Ney Matogrosso lançando seus próprios álbuns em 1975. Ney Matogrosso, em particular, encontrou grande sucesso e construiu uma carreira solo muito bem-sucedida, solidificando seu lugar na história da música brasileira.
Em 1978, João Ricardo retomou os Secos & Molhados com uma nova formação, lançou o Secos & Molhados 3, que chegou a ter uma das faixas, “Quem Fim Levaram Todas As Flores?”, a alcançar algum sucesso. Essa formação não durou muito tempo. João Ricardo fez outras tentativas, mas todas fracassaram, nenhuma delas chegou perto da fama da primeira e mais famosa formação do grupo.
Os Secos & Molhados deixaram um impacto duradouro na cultura musical brasileira, lembrados tanto pela sua música inovadora quanto pelo drama de sua dissolução. O segundo álbum é um símbolo desse legado complexo, capturando tanto o auge criativo quanto as tensões que levaram ao fim de uma das bandas mais icônicas do Brasil. A combinação de elementos acústicos e elétricos, a exploração de novos timbres vocais por Ney Matogrosso e as composições ricas em poesia de João Ricardo continuam a ressoar, mostrando que, apesar dos conflitos, a arte criada pelos Secos & Molhados permanece vibrante e relevante na música brasileira.
Faixas
Lado A
1."Tercer Mundo" (João Ricardo/Julio Cortázar)
2."Flores Astrais" (João Ricardo/João Apolinário)
3."Não: Não Digas Nada" (João Ricardo/Fernando Pessoa)
4."Medo Mulato" (João Ricardo/Paulinho Mendonça)
5."Oh! Mulher Infiel" (João Ricardo)
6."Voo" (João Ricardo/João Apolinário)
Lado B
7."Angústia" (João Ricardo/João Apolinário)
8."O Hierofante" (João Ricardo/Oswald de Andrade)
9."Caixinha de Música do João” (João Ricardo)
10."O Doce e o Amargo" (João Ricardo/Paulinho Mendonça)
11."Preto Velho" (João Ricardo)
12."Delírio" (Gérson Conrad/P. Mendonça)
13."Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc" (João Ricardo/Luhli)
Secos & Molhados: Ney Matogrosso (vocal), João Ricardo (violões de 6 e 12 cordas, harmônica de boca e vocal), Gérson Conrad (violões de 6 e 12 cordas e vocal).
Músicos convidados
Norival D'Angelo (bateria, timbales e percussão)
Sérgio Rosadas (flauta transversal e flauta de bambu)
John Flavin (guitarra elétrica e violão de 12 cordas)
Willi Verdaguer (baixo elétrico)
Triana Romero (castanholas)
Jorge Olmar do Nascimento (violões e viola)
Emílio Carrera (piano e teclados)