sexta-feira, 29 de julho de 2022

POEMAS CANTADOS POR RUI VELOSO


 Fado Pessoano

Rui Veloso


O fado, já diz Fernando Pessoa

Não é canção má nem boa

Não é alegre nem triste

Não é de Coimbra ou Lisboa

É um ser estranho, uma pausa

Que a alma portuguesa deu ao mar

Quando tudo desejava

Sem força para desejar


Toda a canção é um poema ajudado

Que diz o que a alma não tem

E a isso não escapa o fado

Porque é um poema ajudado também


O fado é fadiga duma alma forte

É uma espécie de olhar

Que viu o sorriso da morte

Nos brancos espelhos do mar

É um olhar quase de desprezo

A um Deus que desertou

Quando mais Dele precisava

Quem duvidar nunca ousou


Toda a canção é um poema ajudado

Que diz o que a alma não tem

E a isso não escapa o fado

Porque é um poema ajudado também


No fado todos os Deuses se juntam

A cantar lá nas alturas

Trazidos pelos avós

Na poeira das lonjuras

E esses Deuses estão em nós

Espalham-se pela mesa

Convocados pela voz

E só por acaso soam a tristeza


Guadiana

Rui Veloso


Corre nobre guadiana

Espelho de moura formosa

Vai ficando uma ribeira

Pela terra sequiosa


Nunca pensei assisti

À tua dor na charneca

É como um deus a cair

Ante a barbárie da seca


Corre corre guadiana

Pela terra alentejana

Pudesse dar-te esta canção

A vertigem dos caudais

Dar-te o farto aluvião

Das águas primordiais


E ver-te com dignidade

A correr entre os campos

Como o rio que tem um caminho

Desde o começo dos tempos


Ouve as pedras do teu leito

A pedir que não as deixes

Ouve os barcos parados

Ouve os homens ouve os peixes


Corre corre guadiana

Por essa terra raiana

Que eu faço um apelo aos lagos

Convoco no céu as fontes

Teço três meadas de água

Dos fios perdidos nos montes


Guardador De Margens
Rui Veloso

Enquanto a cidade inteira vai digerindo o seu jantar
E todas as ruas e praças se lavam com essência de luar
Enquanto as estátuas famosas bebem brandies e aveledas
E as tílias se entreolham meigamente nas alamedas

Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim

Enquanto a meia-noite encerra mais uma sessão
E o senso-comum ressona tranquilo e pesado no colchão
Enquanto a cidade inteira lava os dentes e faz toilete
E os taxistas recolhem as sombras que restam da noite

Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim

Enquanto a luz do promontório ensina a costa ao barqueiro
E arde o rum forte no zimbório e traz lucidez ao faroleiro
Vou pondo malha sobre malha com o labor dum tapeceiro
Palavra, acorde, som, a talha e a devoção dum mestre-oleiro

Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim

Enquanto a cidade inteira vai feliz na sua faina
E o sol boceja na ladeira ao som do martelo e da plaina
Saúdo a bruma e o orvalho e a luz do dia madrugado
Guardo as cartas no baralho meu sono é enfim chegado

Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim



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